Opinião   Editorial  

Editorial julho/agosto | "The Madness Issue" (and the madness around it)

16 Jul 2020
By Sofia Lucas

A loucura, a que dedicamos esta edição, a loucura no seu sentido lato, está presente na vida de todos nós - na Arte, na Moda, nas nossas atitudes, nas nossas escolhas, no nosso comportamento, nas relações, no nosso choro e no nosso riso, e sem dúvida nunca esteve tão presente no nosso léxico diário.

Fotografia: Ricardo Santos
Fotografia: Ricardo Santos

“Tenho fé que algo de bom sairá disto tudo no final, tal como a fénix renasceu das cinzas. Mas, entretanto, é quase impossível saber como planear para o futuro. As coisas aqui estão tão boas quanto se poderia esperar, mas sob tamanha pressão, nunca sabes quando é que as pessoas vão enlouquecer! Às vezes, tenho o estranho pressentimento que as coisas que acontecem no mundo ao meu redor são, de uma forma peculiar, reflexos do que acontece nas profundezas da mente de cada um. É como se o mundo se acalmasse desde que tu te acalmes também, e vice-versa. Ao mesmo tempo, seria absurdo imaginar que alguém poderia controlar o desenvolvimento das coisas desta forma, porque isso implicaria acreditar que só um é real e todos os outros um produto do pensamento. Mas fico cada vez mais convencido que há um universo dentro de cada um, que contém Hitler e todas as formas de loucura humana, tanto quanto amor e beleza.”

Carta de Allan Watts aos seus pais, no momento em que a Segunda Guerra Mundial estava a engolir o mundo. O jovem aspirante a escritor, e filósofo em ascensão, tentava entender o terror e a tragédia, esforçando-se por manter o que mais precisamos, mas que mais facilmente abandonamos em tempos sombrios: parar para refletir no que todos nós somos, enquanto seres humanos, e como cada um de nós contém um universo interior que contribui para o universo exterior. Atravessamos tempos difíceis e uma crise mundial a todos os níveis, que inevitavelmente nos afeta a todos, nas emoções, nos comportamentos, na sanidade mental, sem exceção. E se alguém está convencido do contrário, só pode ser louco.

Fotografia: Alex Blonde
Fotografia: Alex Blonde

A loucura, a que dedicamos esta edição, a loucura no seu sentido lato, está presente na vida de todos nós - na Arte, na Moda, nas nossas atitudes, nas nossas escolhas, no nosso comportamento, nas relações, no nosso choro e no nosso riso, e sem dúvida nunca esteve tão presente no nosso léxico diário. E o que é a loucura? A cada um de nós caberá uma definição diferente, mas numa certeza temos todos de nos encontrar: loucura não é o mesmo que doença mental. Esta edição da Vogue sai para as bancas envolta em polémica. E a polémica trouxe também desinformação. Esta edição não é sobre saúde mental; conta, entre todo o conteúdo, com vários artigos sobre e relacionados com saúde mental, e conta com a colaboração de profissionais da área da neurociência, da psiquiatria, da psicologia e da sociologia. Infelizmente, os diagnósticos de doenças mentais aumentam vertiginosamente e diretamente, ou indiretamente, tocam-nos a quase todos. No meu caso pessoal, tenho a minha mãe que sofre de demência a viver comigo e com a minha filha. Convivo e cuido de alguém com diagnóstico de doença mental, diariamente, e conheço por dentro as dificuldades, a falta de apoios, e até a falta de informação que existe. Combater o estigma é também trazer esse assunto para a ordem do dia e uma revista como a Vogue, cuja força e visibilidade do título, bem como o empenho de toda uma equipa, tem essa responsabilidade acrescida. Fazer com que se fale abertamente é abrir debate. Nunca pretendemos mais do que isso, sobretudo num assunto onde a própria ciência ainda tem tanto por desbravar.

As quatro capas que compunham esta edição queriam ser uma representação artística de um todo, de todos nós. A loucura no amor, na fantasia surrealista, no verão mais insano de que a maioria de nós tem memória. Todos nós, num mundo atual. A capa retirada, fotografada num antigo hospital psiquiátrico, em funcionamento até há sete anos, representa uma mulher a ser cuidada e banhada por duas enfermeiras. A imagem de capa - mais dura por ser a que remete de uma forma mais gráfica para um lado mais pesado na história da doença mental, as instituições de internamento - revela também amor: a modelo Simona Kirchnerova é fotografada com a sua mãe e a sua avó, simbolizando que não está sozinha, bem como a evolução humana que há nesse campo. Mas a imagem tocou numa ferida ainda não sarada, exatamente porque tudo está longe de estar bem. Há ainda um longo caminho a fazer no que diz respeito ao apoio e às instituições, a acabar com o estigma, porque a boa vontade não é o bastante. Mas o mundo hoje em dia move-se à velocidade da luz, não há tempo para contemplar e interiorizar os possíveis significados de uma imagem. A polémica desviou toda a atenção para a Vogue em si mesma e não para o assunto tão urgente, em Portugal e no mundo, da saúde mental. O assunto é demasiado sério para dividir as pessoas. Pelo contrário, temos de nos unir com amor, compreensão e empatia à volta desta temática. Serão sempre cometidos erros, que só não se cometem não fazendo nada, e esse sim, é o pior dos erros.

Fotografia: Debora Brune
Fotografia: Debora Brune

Esta edição sai para as bancas sem uma das suas capas impressas e sem o seu editorial fotográfico, inspirado em imagens de reportagens reconhecidas, de profissionais da agência Magnum, sobre várias instituições psiquiátricas ao longo dos últimos anos. Sabendo o impacto que a imagem da capa teve, e do facto de a imagética ter ofendido a sensibilidade de tantas pessoas, não quisemos perpetuar a divisão. Com exceção do editorial de capa, a revista mantém todo o seu conteúdo original, incluindo todos os artigos que se relacionam com saúde mental. Na nossa decisão, prevaleceu o respeito pela não dispersão de atenção do que aqui mais importa. Acredito que grandes mudanças não se façam sem agitar águas, sem divergência de opiniões. Do mau, espero sempre que nasça algo de bom e que agora comece a conversa saudável necessária e construtiva numa sociedade que precisa urgentemente de mais amor. E se há assunto onde o amor é muitas vezes posto à prova é este.

Gostava de convidar a quem quiser partilhar os seus casos pessoais, que envie o seu testemunho para a Vogue: mentalhealth@vogue.light-house.pt. Iremos publicando no nosso site as histórias que acharmos mais pertinentes e que nos ajudem a nós, sociedade, a entendê-las melhor.

*Para adquirir o "The Madness Issue", publicado em julho 2020, visite a E-shop da Vogue Portugal.You can read the english version here.

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