Nestas histórias, é sinónimo de esperança.
Nestas histórias, é sinónimo de esperança.
No trabalho da Maria Cristina Foundation, de Maria da Conceição, facilita-se uma nova vida para vidas já existentes. Crianças que precisam de educação e formação, ajuda para sair de ambientes abusivos e um fado que sucumbe ao limiar da pobreza encontram neste projeto uma luz ao fundo do túnel - não de mão beijada, mas antes através do esforço próprio que depositam na oportunidade de acesso à educação, até então impossibilitado por limitações culturais, financeiras, etc. Em Era outra vez, na edição New Beginnings de setembro 2021 da Vogue Portugal, partilhamos três casos, mas vale a pena conhecer mais. Como os que se seguem.*
Shahanaz Akter
"Eu sou a quinta criança na família. Os meus dois irmãos mais velhos são viciados em drogas e as minhas duas irmãs são casadas. Não há mais ninguém na família para sustentar os meus pais, exceto eu. O meu pai tem uma mercearia e eles já não conseguem gerir a loja, por isso, eu tenho que assumir toda a responsabilidade de administrá-la, além dos meus estudos. Mas eu sinto-me muito insegura na loja de chá de diferentes maneiras.Faço chá para as pessoas. Como trabalho sozinha, também devo servir o chá. Os clientes do sexo masculino tocam na minha mão de maneiras muito ofensivas quando lhes entrego o chá. Isso dói-me profundamente emocionalmente. Lavo as minhas mãos conseutivamente, com raiva.Cheguei a beliscar a minha mão para me magoar, na esperança de que parassem de me tocar. Mas continua a acontecer todos os dias. Neste momento, esta vulnerabilidade e insegurança são mais dificeis para mim do que a pobreza que enfrento.
A casa com apenas um quarto onde os meus pais moravam tinha um ano de renda em dívida. A loja também deve um ano de renda. Tanto o dono da casa quanto o dono da loja apareciam quase todos os dias e insultavam-nos por não podermos pagar a renda. Um dia, o dono da nossa casa, com raiva, deitou fora todos os nossos pertences e trancou a porta da nossa casa. Com tudo isto, às vezes tenho vontade de me suicidar porque não agüento mais os insultos e as humilhações. Mas quando penso no quanto a Maria, fundadora da Fundação Maria Cristina, está a fazer por mim e no quanto ela contribuiu para me trazer até aqui, não penso mais nessas ideias sombrias. É por causa da sua ajuda que tenho a oportunidade de estudar na melhor escola de inglês, a Milestone. A Maria responsabiliza-se por todas as despesas dos meus estudos. Os filhos das famílias mais ricas da cidade de Dhaka estudam na Milestone. Tenho que lidar com vários problemas para me adaptar a esse ambiente e aos alunos. Tendo crescido numa família pobre, eu nunca poderia ser tão limpa quanto eles. Os colegas tentam sempre envergonhar-me com uma série de coisas. Fazem piadas sobre mim e chamam-me de 'garota da favela'. Eu costumava chorar imenso por causa de de tudo isyo. Mas quando percebi que esses são apenas alguns dos obstáculos a ser superados para atingir os meus objetivos, nada mais me incomoda.
Não posso ser limpa e arrumada, porque me deixa mais insegura no ambiente em que vivo e nas coisas que faço. Quando vêm tomar um chá, comportam-se sempre pior quando veem uma rapariga linda e limpa. Na semana passada, um homem de 50 anos veio à minha loja para tomar chá e estava a tentar humilhar-me. Propôs-me casamento. Fiquei apavorada, mas expulsei-o corajosamente da loja. Um dia, houve outro homem que até me propôs dormir com ele: “És pobre, dorme comigo, eu dou-te dinheiro”. Inúmeros incidentes como estes acontecem-me todos os dias. Mas não tenho para onde ir e nada para fazer para ganhar a vida. Estou desamparada. As drogas baratas arruinaram as nossas vidas.
Mesmo tendo dois irmãos jovens capazes, ainda enfrentamos muitos problemas na nossa família devido ao vício de ambos. Oeu irmão mais velho era tão viciado que enlouqueceu e começou a abusar das drogas. Por isso, desapareceu desta cidade. Não temos ideia se está vivo ou não. Eu cresci testemunhando apenas privações desde muito jovem. Jamais poderia pedir à minha mãe que me fizesse um vestido ou preparasse a comida que adorava. Não tínhamos dinheiro em casa. Se comêssemos de manhã, não tínhamos nada para o almoço. Sempre foi difícil ver os rostos abatidos de todos na minha família. Mesmo pouco antes dos meus exames escolares, tive que vender bolos com a minha mãe para ter certeza de que comíamos um pouco de arroz na hora do jantar.
Agora, o meu único objetico é ter sucesso na vida depois de terminar a formação. Sou uma boa aluna e poderia até ser muito melhor se tivesse um bom ambiente sem ansiedade. Mesmo com o que tenho agora, sonho em ser médica ou trabalhadora de uma ONG que seja benéfica para a vida das pessoas. Eu nunca poderia sonhar tão grande na minha vida se não houvesse "a mãe" Maria sempre connosco, como um anjo da guarda. Ser-lhe-ei sempre grata e amo-a mais do que à minha vida. Ela está a sofrer muito por nós. Quero transformar todos os nossos sofrimentos em sucessos. Quero realizar o sonho da Mãe Maria. Ela quer ver-me como uma borboleta. Não importa o quanto eu sofra, não vou desistir. Se eu conseguir estabelecer-me na vida, todos os nossos sofrimentos acabarão. Quero garantir um amanhã melhor para os meus pais. Nessa altura, vou oferecer todas as coisas boas a todos nós."
Shewly Akter
"As raparigas são sempre vistas como um fardo para os pais pobres na nossa sociedade. Mas os meus pais nunca me consideraram um fardo só porque sou menina. Mesmo assim, noto que há uma diferença entre o meu irmão e eu, aos olhos dos meus pais. Se assim não fosse, porque é que minha mãe comprou uma bicicleta para o meu irmão, quando era eu que estava a pedir muito uma? Esta questão sempre me incomodou na minha infância, mas agora eu entendo o que a sociedade realmente quer. Por causa dessa diferença entre meninos e meninas, a minha pobre mãe, na favela, não conseguiu ir contra a sociedade e ganhar a coragem de comprar a bicicleta para mim. O meu irmão pode ficar aqui o dia todo e trabalhar fora a noite toda. Não há restrições, mas o problema começa quando eu saio.
Há três anos, comecei a dar aulas para suprir as minhas próprias necessidades. Para pagar as mensalidades, eu tinha que sair de casa num determinado horário todos os dias e voltar para casa num determinado horário. Que ironia do destino quando soube que os meus vizinhos começaram a pensar que eu estava envolvida em más ações ou nalgum tipo de prostituição! Não queria que o meu irmão mais velho soubesse que estava a ganhar dinheiro para suprir as minhas necessidades, porque ele já estava a trabalhar muito como técnico da internet para sustentar a nossa família e poderia ficar ofendido. Quando o meu irmão descobriu sobre os rumores, ficou enraivecido e pediu-me explicações. É difícil explicar sobre o salário para se ser autossuficiente e o quão estava envergonhada de enfrentar esta pergunta sobre os rumores!
Como mulher, nunca estou segura neste país. Não havia dia em que o ajudante do autocarro não me importunasse quando euapanhava o autocarro para ir para a escola. Todos esses homens pensam que as meninas deste país são propriedade pública. Depois de aprender sobre todos esses problemas, a 'mãe' Maria, que tem ajudado a nossa família, providenciou um autocarro escolar particular para nós. É quase impossível para uma menina ser educada numa favela como a nossa e num país como este. No entanto, por causa da Fundação Maria Cristina, continuo a faculdade e estou a suportar toda essa dor apenas para ser educada e mudar a sociedade para sempre.
Quero me tornar polícia ou advogada para poder devolver a dignidade a meninas como eu. Portanto, também posso dar-lhes a voz que perderam nesta imundície da sociedade. Eu quero lutar contra a sociedade existente em nome de todas as meninas e mudar a sociedade positivamente. Mesmo sendo da favela, tive a coragem de sonhar assim com a Maria. Ela reconstruiu a nossa autoestima desde a nossa infância. ‘Maria’ não é apenas um nome, ela também é a nossa confiança, ela é a nossa coragem, ela é a nossa mãe e nós somos seus filhos. Ela é uma lenda viva que acredito sinceramente que, no final do dia, centenas de outras crianças como eu querem ser como ela. Inspiro-me ao ver o meu irmão técnico que agora continua a sua pós-graduação numa Universidade em Portugal. O meu irmão também teve a oportunidade, na infância, de estudar na maior escola de inglês no Bangladesh, por meio de uma instituição de caridade da Fundação Maria Cristina. Ele inspira-me quase todos os dias, ao telefone, a estudar muito.
A vida era terrível durante a quarentena da Covid-19. Nunca tinha passado tanto perigo em minha vida. Como a minha mãe era empregada doméstica durante a pandemia, a minha mãe recebeu dispensa de todas as casas em que trabalhava sem receber nenhum salário. Essa foi a época mais difícil da minha vida. O meu irmão não podia enviar ajuda de Portugal porque não tinha emprego próprio. Não tive aulas e minha mãe não tinha emprego.
Mas a Maria sempre nos ajudou em tudo o que podia, com todo tipo de comida como arroz, óleo, batata e todo tipo de necessidade. Pergunto-me o que teria acontecido connosco se não estivesse nas nossas vidas. Sinto-me grata à vida e também sonho em ajudar aquelas crianças indefesas como eu. Quero mudar a vida de famílias necessitadas e de mulheres indefesas.
Para sustentar a minha família e também estudar, nos últimos dois anos tenho dado aulas para algumas crianças, na minha casa. Também dou aulas gratuitas para uma das crianças, chamada Nondini, que não tem dinheiro para pagar. Ela é a segunda da sua classe, este ano. Não há palavras para dizer quanta satisfação isso me deu."
Sumi Sultana
Eu quero ser o melhor designer de moda do mundo. Quero mostrar a todos que uma menina da favela pode conseguir qualquer coisa se tiver uma oportunidade. Quando eu tinha 10 anos, comecei a trabalhar como assistente de um alfaiate ao lado da nossa casa. Lembro-me muito bem que se trabalhasse o dia todo, o mestre me dava 20 taka. Tendo trabalhado lá todos os dias por 5 anos consecutivos, economizei esse dinheiro e comprei uma máquina de costura. Além dos estudos, ainda faço costura para ajudar a minha família. Quando eu tinha quatro anos, o meu avô expulsou a minha mãe e meu pai de casa, com os meus quatro irmãos. Mudámo-nose para Dhaka e começámos a viver numa favela. Lembro-me que tínhamos apenas uma cama num pequeno quarto e todos dormíamos lá juntos. Pagar a renda daquela cabana de plástico foi o maior desafio para meu pai. Ele era um pedreiro. Se ele conseguisse um emprego um dia, talvez não conseguisse por mais quatro dias.
Éramos um total de sete pessoas na família, incluindo os nossos pais. Cresci a ver os meus pais sofrerem. A minha mãe também estava desempregada por causa dos dois filhos pequenos, de colo, com os quais a minha mãe não podia ir trabalhar em lugar nenhum. Éramos todos pequenos. Nenhum de nós tinha idade suficiente para ganhar. É terrível e difícil descrever como vivíamos! Os nossos dias eram longos e quase não tínhamos comida suficiente para comer uma vez por dia. Lembro-me que minha irmã e eu apanhávamos papel o dia todo para podermos ganhar 10 taka apenas quando o vendíamos no mercado noturno.
Naquela época, meio kg de arroz estava disponível por 10 taka. A minha mãe fazia aquele meio kg de arroz e dava-nos com água e sal. Se pudéssemos comer um dia, não seríamos capazes de comer no dia seguinte. A fome fazia parte do dia a dia de nossa vida. Durante o nosso período mais difícil, a Maria encontrou-nos naquela favela. Tendo fundado a Fundação Maria Cristina, imediatamente acolheu-me, bem como ao meu irmão mais novo e ao mais velho, na sua escola. Ela passou a cuidar de todas as despesas da nossa família e da educação de nós os três. À medida que envelhecíamos, crescia também o custo de tudo. A minha mãe disse que o perigo de ter cinco filhos é que eles vêm juntos. Começamos a crescer e as nossas vidas estavam cheias de mais miséria novamente.
A minha mãe costumava trabalhar com roupas, mas por causa de sua incapacidade de trabalhar corretamente, expulsaram-na. De repente, o meu pai ficou doente e desempregado. O meu irmão mais velho teve que deixar os seus estudos depois de completar p 10º ano da Fundação Maria Cristina para sustentar a nossa família. O meu irmão sempre quis educar-se. Mas quando é difícil teres comida, a educação passa apenas a ser um sonho. Sinto-me muito mal por ele quando vejo todos os seus amigos que também foram alunos da Fundação Maria Cristina, agora a estudar numa universidade em Portugal. Mas o meu irmão está a trabalhar numa fábrica de roupas hoje por 10.000 taka por mês apenas para sustentar a nossa família. Se o meu irmão não tivesse deixado os estudos naquela época e começado a trabalhar, todos nós teríamos morrido à fome. Ainda dormimos juntos num quarto. A renda deste quarto é de sete a oito mil taka, incluindo água e eletricidade. Temos 7 pessoas na nossa casa; não é possível suprir as necessidades de todos apenas com a renda do meu irmão. Por isso, a minha mãe doente, que não consegue nem se sentar bem, também teve que trabalhar no mercado de peixe o dia todo.
Nossa maior ansiedade agora é a minha irmã mais velha. Ela tem cerca de 25 agora, mas não podemos casá-la ainda. Querem mesmo um dote de 1 lakh taka para se casar com ela, o que é impossível para nós. Falam muitas coisas más sobre a minha irmã, que é o que mais me magoa. A minha mãe está sempre chateada e preocupada com o futuro da minha irmã mais velha. Chorava todas as noites e escondia as suas lágrimas de nós, mas eu percebia e sentia-me muito impotente. O meu irmão mais novo e eu estamos a receber todo o tipo de ajuda da Fundação Maria Cristina para continuar os nossos estudos na melhor escola de inglês em Dhaka.
Cntinuamos a estudar muito para que possamos usar esta oportunidade única para mudar o nosso futuro. Eu nunca poderia ter chegado tão longe sem a Maria na minha vida. Vou continuar até atingir meu objetivo. A ‘mãe’ Maria diz sempre: 'Estou com todos vocês, sonhem e digam-me o que quiserem, é minha responsabilidade realizar esse sonho'. Estou a estudar na faculdade, agora. O meu irmão apoia-me sempre. A minha educação é agora a minha única esperança para a minha vida."
*Testemunhos retirados e adaptados do livro "Butterfly Stories", de Maria da Conceição, cujas vendes revertem a 100% para a Fundação Maria Cristina. Se quiser saber mais informações ou contribuir para esta causa, pode fazê-lo através do site, Instagram ou Facebook da MCF.