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A Gown is a Gun: o poder subliminar da Moda

04 Nov 2024
By Maria Inês Pinto

Princesa Diana (1961-1997) no seu revenge dress, um look assinado por Christina Stambolian, na Serpentine Gallery, junho de 1994. Fotografia: Jayne Fincher / Princess Diana Archive / Getty Images.

O poder subliminar da Moda pode ser lido e relido em todas as entrelinhas de uma narrativa escrita em tecido. De declarações políticas a manifestações íntimas, o condão de uma peça é (também) ser um tiro certeiro num alvo de possibilidades.

Londres, 29 de junho de 1994. Nesta noite, na Serpentine Gallery, em Kensington Gardens, a história foi escrita não apenas nas manchetes, mas em cada centímetro de um vestido que viria a redefinir a Moda e o seu simbolismo para sempre. Quando os portões se abriram para o jantar de angariação de fundos da Vanity Fair, a Princesa Diana chegou não apenas para marcar presença num jantar, mas sim para fazer uma declaração de independência e de poder inesquecível. Dias antes, o (seu) mundo tinha sido abalado pela última revelação da infidelidade do marido, o Príncipe Carlos, e nas manchetes dos jornais lia-se: “Carlos: Traí Diana” e “A Di avisou-vos”. Numa entrevista chocante para a televisão, o Príncipe de Gales confessou a sua traição, admitindo um caso com Camilla Parker Bowles depois de o seu casamento estar “irremediavelmente quebrado”. O escândalo tomou conta da nação e a Princesa ripostou não com palavras, mas com Moda, usando um elegante vestido de noite em seda preta, sem ombros, desenhado por Christina Stambolian. Quando Diana saiu do carro, o mundo susteve a respiração durante 30 longos segundos: o vestido era uma obra-prima de desafio elegante — ajustado na perfeição, drapeado de forma equilibrada, com um corte ousado e um encanto inegavelmente confiante. No rosto de Lady Di, via-se um sorriso tão gracioso como sempre e, no olhar, a certeza de quem, com cada passo dado, estava a tomar as rédeas da sua própria narrativa. O revenge dress ficou para sempre eternizado na história e no nosso imaginário e, décadas depois, continua a guardar em si tanto poder como no dia em que Lady Di o usou pela primeira e única vez. E este poder foi silencioso mas avassalador, escondendo-se entre linhas, pontos e camadas de tecido mas, sobretudo, num contexto que tornou o seu significado gritante, elevando a peça a muito mais do que um little black dress. A Moda tem o poder de falar uma linguagem íntima e quase subliminar, numa espécie de código secreto que, nas mãos corretas, se transforma numa arma de fogo.

O exemplo deste icónico vestido — e desta icónica mulher — é, provavelmente, o mais significativo dos tempos modernos, mas não é a primeira vez que alguém da família real usa a Moda para se expressar de forma silenciosa, mas acutilante. “Never complain, never explain” era o lema da Rainha Isabel II, e embora fosse cumprido à risca, em algumas ocasiões a Rainha deixou a Moda falar mais alto. Em março de 2022, encontrou-se com o Primeiro-Ministro canadiano Justin Trudeau na sua residência, o Castelo de Windsor. Para a ocasião, Sua Majestade usou um vestido de mangas compridas em azul, amarelo e branco — cores que muitos acreditaram ser uma homenagem à Ucrânia que, desde fevereiro desse ano, sofria ataques russos. Atrás destas duas figuras, via-se um enorme bouquet de flores azuis e amarelas, as cores da nação ucraniana. Mais tarde, em maio, a Rainha dirigiu-se à estação de Paddington, em Londres, para inaugurar a linha Isabel. Para a ocasião, optou por um casaco num amarelo vibrante e um chapéu do mesmo tom onde se faziam notar flores azuis. Sem palavras mas de modo sagaz, a então figura suprema do Reino Unido mostrou o seu apoio a uma nação que estava — e está — a ser destruída enquanto o resto do mundo avança com os seus dias.

De forma muito semelhante, Cate Blanchett surgiu na passadeira vermelha do Festival de Cinema de Cannes de 2024 com um vestido que gerou uma onda de interpretações. O seu coordenado negro de ombros descobertos, desenhado por Haider Ackermann para Jean Paul Gaultier, à primeira vista parecia simples, contudo, à medida que a atriz se movia pela red carpet via-se uma parte de trás rosa clara ou branca e um forro verde surgia no interior. Quando Blanchett levantou a cauda do vestido, as cores alinharam-se perfeitamente com o encarnado da passadeira, levando muitos a acreditar que a sua roupa era uma referência subtil à bandeira palestiniana. Esta interpretação não seria infundada, dado o ativismo de Blanchett, que tem sido uma voz ativa em questões humanitárias e, inclusivamente, em outubro de 2023 assinou — com outros colegas da indústria — uma carta aberta ao Presidente Joe Biden apelando a um cessar-fogo em Gaza e Israel. A veracidade desta suposição nunca foi confirmada por Blanchett, pela sua stylist Elizabeth Stewart ou por Ackermann, deixando-se o significado do vestido em aberto. Fosse uma declaração deliberada ou uma ilusão ótica, a peça gerou uma conversa importante e necessária em torno do tema.

Conhecido por criar conceitos fortíssimos e repletos de camadas de significado, Lee Alexander McQueen, para o outono/ inverno de 1995 apresentou uma coleção que se tornaria tão icónica quanto controversa: Highland Rape. Esta serviu como um comentário sobre a tumultuosa história entre Inglaterra e Escócia e lançou um olhar crítico sobre a brutalidade da subjugação das Highlands — Terras Altas, a zona montanhosa do Norte da Escócia — e a forma como o exército inglês essencialmente orquestrou uma limpeza étnica na região. A coleção foi uma fusão de beleza e caos, com tecidos rasgados, silhuetas inesperadas e peças que oscilavam entre a beleza e a tragédia, vestidas em modelos cuja presença denotava agressividade e violência. Apesar de ser uma das coleções mais famosas do génio criativo, esta foi mal recebida pela imprensa, que o acusou de ser misógino, gratuito e de ter ido demasiado longe. Contudo, e como se pode ler em Gods and Kings de Dana Thomas (2015), Andrew Groves, namorado de McQueen na época, interpretou a coleção através de um outro prisma: esta refletia a história pessoal de McQueen como, aliás, não era incomum na sua obra. Jack the Ripper, a coleção final na Central St. Martins, em 1992 era sobre a família, Taxi Driver, do outono/inverno de 1993, sobre o pai, e Highland Rape sobre ele próprio — e foi por isso mesmo, de acordo com Groves, que McQueen ficou manifestamente incomodado quando o desfile foi mal recebido pela imprensa. Mais tarde o designer, chegou a dar uma entrevista a Tim Blanks onde disse que “há sempre uma declaração por detrás de tudo mas, [...] as minhas roupas não vêm com um bloco de notas sobre a razão pela qual este casaco tem este aspeto; no final do dia, é um casaco. O desfile tem um significado, mas isso é algo pessoal para mim.”

Tal como nos mostram estas figuras, a Moda é um espelho da condição humana, capaz de refletir um espectro de emoções vasto e profundo, que serve como veículo para tecer comentários sobre o mundo ou sobre o nosso mundo interior. Transformando peças pessoais em narrativas universais, estas ganham o poder de autênticas armas que disparam histórias misteriosas, quase subliminares, mas que podem sempre ser ouvidas. Basta que se preste atenção.

Publicado originalmente na edição "The Mystery Issue" da Vogue Portugal, de outubro 2024, disponível aqui.

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