A peça imersiva recém-chegada ao Hospital Militar da Estrela tem contornos especiais: espalhada por diversas salas do local, cada espectador tem uma experiência à (sua) medida.
A peça imersiva recém-chegada ao Hospital Militar da Estrela tem contornos especiais: espalhada por diversas salas do local, cada espectador tem uma experiência à (sua) medida.
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
Isto porque o set não tem o habitual binómio palco/público, mas antes o espaço é todo o palco e é toda a audiência em simultâneo. Nesta peça imersiva - isto é, o espectador partilha o mesmo pódio que os atores, circulando pelo cenário em pé de igualdade - intitulada A Morte do Corvo, o diálogo desaparece para dar espaço a uma interpretação física que vale por mil palavras e onde o público pode seguir, ao longo do enredo, a personagem que quiser. É uma espécie de Agora Escolha versão teatral, embora muito agradaria a Vera Roquette (que apresentava aquele programa de 1986-1994) trabalhar com tantas opções como as deste projeto: de Fernando Pessoa a Ofélia, de Edgar Allan Poe a Mário de Sá-Carneiro, e outras tantas personagens pelo meio para escolher acompanhar de perto, a divisória que afasta ator de espetador dissipa-se numa experiência que não é só aliciante em papel - é imperdível na prática.
A Morte do Corvo é uma ficção que ressuscita nomes míticos, como Edgar Allan Poe (1809-1849), e recua até 1924 (com um set design a acompanhar a viagem no tempo) para explorar a tensão de uma relação ciumenta entre o poeta americano com Fernando Pessoa (1888-1935). É este ciúme que leva Poe a orquestrar um malévolo plano movido pela incontrolável inveja da genialidade do poeta português. Ao longo dos dois mil metros quadrados que servem de playground para o desenrolar desta trama principal, há uma série de enredos secundários que lhe são entrelaçados e cuja encenação convida o visitante a explorar as diferentes salas e personagens de acordo com o seu livre arbítrio. Num resumo do argumento, Pessoa convida o seu grande amigo Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) para o ritual de iniciação à Ordem dos Corvos (liderada por Poe), uma sociedade que procura o segredo da vida para além da morte e que existe secretamente por cima da funerária Nevermore. A sucessão de acontecimentos, entre os quais, a rejeição da sua mulher Ofélia, precipitará Pessoa num ciclo depressivo que augura um destino trágico.
"O espetáculo está carregado de ação, segredos e até de algum erotismo, pelo que promete, e espero que entregue, emoções fortes, essenciais num formato desta natureza." - Nuno Moreira
Com direção artística de Nuno Moreira, que já tinha assinado a criação de um espetáculo imersivo em 2015 (o E morreram felizes para sempre), e encenação de Ana Padrão, A Morte do Corvo, com uma duração de pouco mais de hora e meia, chegou ao Hospital Militar da Estrela (agora denomidado House of Neverless, auspiciando um local maior do que apenas uma estrutura arquitetónica, antes um destino de cultura) a 13 de janeiro e fica em cena até março, com espetáculos de quarta a domingo. Os bilhetes (a partir de €38) estão disponíveis aqui e, ainda que sabendo que o que leu até aqui já o precipitou para garantir uma entrada, a Vogue acrescenta ainda uma entrevista com o diretor artístico, Nuno Moreira, e os atores Patrícia Borralho e Emanuel Arada, que levantam um pouco o véu sobre os bastidores e as particularidade - e peculiaridades - de um empreendimento e projeto deste género.
Um teatro imersivo implica uma preparação diferente em termos de encenação do que uma peça num palco tradicional. Quais são as principais diferenças em termos de processo?
Nuno Moreira: Este formato de teatro imersivo é site-specific e, por isso, deve haver uma comunhão conceptual entre a ideia e o espaço. Quando temos várias cenas em simultâneo é fundamental estruturar o espetáculo levando em consideração a arquitetura, a dimensão de cada sala e a distância relativa. Há uma ideia geral da estória e há a criação, quase em simultâneo, do mundo onde ela irá desenrolar-se. Há que selecionar as salas principais, onde é esperada uma maior concentração de visitantes, as salas one-on-one, as passagens secretas, enfim, é preciso recriar o espaço e torná-lo parte integrante da experiência. Depois disso entra o processo de encenação, que começa com um trabalho de criação de personagem, feito no início em estúdio e progressivamente avança-se para a marcação de cenas, já com cenografia, luz e som, para que todos os percursos e contracenas batam nos tempos, contem a estória e criem o impacto desejado no visitante.
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
Porquê Pessoa e Poe? O que espoletou esta ideia/argumento?
Nuno Moreira: Quando fizemos o “E Morreram Felizes para Sempre”, em 2015, fui abordado para um possível projecto ligado a Pessoa, que acabou por não avançar. Mas a ideia de ter o nosso grande poeta no centro de uma nova experiência ficou a marinar, até que, finalmente, comecei a estudá-lo e a pensar de que forma poderia reimaginá-lo e envolvê-lo numa trama dramática, que pudesse ser uma experiência imersiva com impacto. Quando descobri que Pessoa tinha traduzido o poema The Raven de Edgar Allan Poe, em 1924, lembrei-me de juntá-los, já que Poe possibilitaria adicionar um ângulo mais negro à narrativa. E surgiu então a ideia de A Morte do Corvo, em que os dois poetas têm uma relação semelhante à de Salieri e Mozart, um misto de admiração e de inveja. Poe é o director da Funerária Nevermore e arquiteta matar Pessoa, manipulando todos em seu redor. O espectáculo está carregado de ação, segredos e até de algum erotismo, pelo que promete, e espero que entregue, emoções fortes, essenciais num formato desta natureza.
"Não é intimidante, mas sim intimista. São duas realidades parelas a acontecer no mesmo espaço: a dos atores/personagens que contam uma história e a dos espetadores que observam, vivem e integram a história." - Patrícia Borralho
Em termos de representação, o que é o mais desafiante em interpretar uma peça deste género?
Patrícia Borralho (Celeste e Lenore): Sem dúvida que a imprevisibilidade do público. Como se deslocam no espaço, se optam por uma maior ou menor proximidade do ator, se mexem em elementos necessários à cena... A energia do púbico é o principal desafio. E cada dia é um dia diferente por isso!
É difícil atuar com pouco espaço físico de manobra? Ou seja, mais intimidante perceber que o espectador está a poucos palmos, por vezes, do elenco? Como se abstém disso?
Patrícia Borralho (Celeste e Lenore): São 2.000 metros quadrados, digamos que temos muito espaço de manobra! Esta é a nossa casa, este espaço é habitado pelas personagens independentemente da existência de espetadores. Não é intimidante, mas sim intimista. São duas realidades parelas a acontecer no mesmo espaço: a dos atores/personagens que contam uma história e a dos espetadores que observam, vivem e integram a história.
E o que considerariam que é a melhor parte de interpretar um papel numa peça imersiva?
Patrícia Borralho (Celeste e Lenore): Diria que eliminar a ideia de palco-plateia. Estamos todos no mesmo nível, no mesmo espaço, a viver uma história em tempo real. Como atriz/bailarina, é uma experiência única e enriquecedora. Somos observados a 360º durante as 2 horas de espetáculo. "Boa viagem!" é como o elenco se despede antes de entrar em cena.
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
Já aconteceu algo caricato, como “atropelarem” alguém que estava no sitio errado à hora errada durante a vossa atuação, ou outro episódio do género?
Emanuel Arada (Edgar Allan Poe e Agente Funerário): Não diria caricato... mas o mais surpreendente. Talvez porque as pessoas se sentem mais anónimas (com as máscaras e pelo ambiente mais sombrio) tem sido surpreendente sentir a vontade e a curiosidade (quase infantil) de mexer nas coisas bem como a disponibilidade para uma certa intimidade, sobretudo nas cenas de One to One. Ainda assim algumas pessoas apanham sobressaltos e sustos.
Já tive o prazer de assistir e reparei que muitas pessoas mexem nas folhas que o ator esteve a ler, ou nos adereços do cenário. Nunca aconteceu voltarem a uma secretária em busca de um papel que já não está no mesmo sítio? Ou o guião é acautelado a prever esse género de situações?
Emanuel Arada (Edgar Allan Poe e Agente Funerário): Sim. Acontece várias vezes as coisas ou não estarem nos sítios onde é suposto e da forma esperada ou já não estarem de todo. Para isso temos sempre um plano B. Ou se resolve ajustando com o que há e da forma que está ou com algum "passe de mágico"... mas sempre ajustado com a forma como estamos a viver a cena.
Sei que não interpretam sempre a mesma personagem. Como é que funciona a rotatividade de papéis? E porque é que o fazem?
Emanuel Arada (Edgar Allan Poe e Agente Funerário): Fazemos personagens diferentes porque foi a conceção da direção artística. É uma experiência ótima e muito rica ver sete atores diferentes, com pontos de vista e com referências díspares fazer a mesma personagem, por um lado com coisas comuns, feita a partir de uma construção partilhada e por outro com opções, especificidades e pontos de vista divergentes. Trabalho este sempre feito em diálogo entre os atores, encenadores e direção artística.
"Talvez porque as pessoas se sentem mais anónimas (com as máscaras e pelo ambiente mais sombrio) tem sido surpreendente sentir a vontade e a curiosidade (quase infantil) de mexer nas coisas bem como a disponibilidade para uma certa intimidade(...). Ainda assim algumas pessoas apanham sobressaltos e sustos." - Emanuel Arada
Qual foi a maior dificuldade, em termos logísticos, no processo de criação de tudo até à estreia?
Nuno Moreira: O mais difícil foi mesmo alinhar a cenografia com as necessidades de marcação de cenas. O nível de intervenção, quer de obras estruturais, quer de decoração cenográfica e micro adereçagem foi elevado e não pudemos atalhar, já que é importante criar a sensação plena de vivermos numa sociedade secreta, a Ordem dos Corvos, nos loucos anos 20.
O que é que consideram fulcral ou o que é que recomendam antes de ver a peça?
Nuno Moreira: Contrariamente a “teatro tradicional”, este exige mais do visitante, mas também compensa os mais curiosos e esforçados. Recomendo uma prévia visita ao site www.amortedocorvo.com, uma leitura da sinopse à chegada e observar com atenção as fotografias das personagens, que estão no átrio da entrada, isto se quiserem seguir a narrativa. Mas também podem optar por apenas deambular, assistir a algumas cenas e sentir a carga do que se está a passar. Até porque não se trata de teatro, mas sim de um espetáculo emotivo, multi-sensorial, com movimento e coreografia. A outra dica é separarem-se dos amigos, para juntarem, no final, as peças da experiência, já que cada um terá vivido aqueles 100 minutos de forma diferente. É ideal até para team buildings empresariais, por estimular a comunicação e a partilha. E claro... quem se apaixonar pela estória e quiser ir mais do que uma vez, irá sempre ver mais cenas e ter acesso a mais peças do puzzle. Por fim, para quem quiser mesmo mergulhar de cabeça, sugiro que investiguem a História das personagens reais (Edgar Allan Poe, Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Ofélia), procurando paralelismos e inspirações. O poder e a escolha está do lado do visitante, mas ninguém sai indiferente.
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
A Morte do Corvo © Arlindo Camacho
Ficam em cena cerca de dois meses. Sentem que a obra evolui de dia para dia, tendo em conta este contexto particular? Por exemplo, ver a peça na estreia será completamente diferente de ver a peça no último dia?
Nuno Moreira: Há sempre margem para melhorias, ou alterações de algumas cenas, que evoluem à medida que assistimos ao comportamento dos visitantes. Não poderá ser dramaticamente diferente, mas podem ser introduzidos detalhes ou novas formas de intensificar a experiência de quem nos visita.
O Nuno já tinha assinado o E Morreram Felizes para Sempre. Porquê tanto tempo entre os dois?
Nuno Moreira: A principal razão prendeu-se com a dificuldade de encontrarmos o espaço ideal. Visitámos algumas alternativas, ao longo de vários anos de procura, mas nenhuma reunia as condições necessárias, com a escala e o potencial cenográfico deste antigo Hospital Militar da Estrela, fruto de um protocolo com a Santa Casa da Misericórdia. Só com um espaço amplo e bem distribuído poderíamos construir uma Floresta Iniciática de 30 metros, esconder um Opiário no terceiro andar, ou criar um Cabaret Burlesco com uma gigante gaiola (e não só). Quem nos visita, alguns recorrentemente, percebe que a espera valeu a pena.
"Não se trata de teatro, mas sim de um espetáculo emotivo, multi-sensorial, com movimento e coreografia". - Nuno Moreira
FICHA TÉCNICA
Elenco: Bruno Rodrigues, Celso Pedro, Ema Fonseca, Emanuel Arada, Gabriel Delfino Marques, Henrique Gomes, Leonardo Dias, Lia Goulart, Mariana Fonseca, Patrícia Borralho, Pedro Nuno, Rebeca Cunha, Sérgio Diogo Matias e Soraia Sousa.Ideia e Direção Artística: Nuno Moreira Encenação: Ana PadrãoDireção Coreográfica: Bruno Rodrigues Espaço Cénico: Rui Francisco e Susana FonsecaDesenho de Luz: João CachuloCriação Musical: Jorge Queijo Sistema de Som: João Maya Design de Figurinos: Miss Suzie Maquilhagem: Ana Lorena Cabelos: Ana Ferreira
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