Não é um acaso que o folclore madeirense lhe tenha dedicado um tema do seu repertório de bailinho: os bordados — e não só o madeirense — fazem parte da identidade nacional e são cruciais para promover o país, em geral, e cada região, em particular. São tão very typical que rumam além fronteiras para que, mais que um souvenir, se incluam em design de Moda.
Ai borda, rica filha, borda bem. Lá em casa, rica filha, todos bordam. E borda o pai, e borda a filha e borda a mãe—e eu também.” É assim que continua o tema folclórico do Bailinho da Madeira e que tem honras de abertura deste texto. A ficção pode estar desajustada da realidade: lá em casa, rica filha, quase ninguém borda, mas, ainda assim, os bordados e as rendas tão tipicamente nacionais continuam a gozar de gabarito, sendo recuperados por marcas, popularizados em tendências, preservados por quem quer continuar a contar a sua história, esperando que esse impacto faça renascer e incrementar uma arte que está intimamente ligada a um ADN português e que serve de cartão de visita não só do país, mas também das idiossincrasias regionais. Os bordados — que se referem, de forma lata, a um alargado conjunto de técnicas e materiais que se traduzem na criação, usando agulhas e fio, de motivos decorativos num tecido — distinguem-se de local para local consoante as técnicas usadas, materiais utilizados e até o tipo de design de adorno. Por exemplo, os lenços de namorados do Minho são coloridos e exibem motivos e frases românticas, mas outros são maioritariamente brancos, como os dos Açores. No caso do supracitado Bordado Madeira é, desde os primórdios, caracterizado por motivos naturalistas amplamente inspirados nos cenários da ilha e, provavelmente pela sua origem nobre (começaram por ser elaborados por fidalgas), o que obriga a que também os materiais sejam nobres, como a seda natural, o linho, o organdi e o algodão, sendo que são vários os pontos a que recorre — richelieu, o caseado, o arrendado, o ponto de corda, o francês, o garanito, entre outros –, todos feitos à mão e autenticados pelo Instituto do Vinho do Bordado e do Artesanato da Madeira (só as peças com este selo podem ser consideradas Bordado Madeira). Se entrarmos no reino das rendas, outras tantas peculiaridades se insurgem, como no caso da Renda de Bilros, produzida pelo hábil cruzamento de fios, com o auxílio de bilros e alfinetes e tendo como base uma almofada.
Esta arte, outrora comum em muitos centros ao longo da costa, encontra-se, hoje em dia, de forma mais expressiva, em Peniche e em Vila do Conde, mas por todo o país se encontram outros tipos de rendas mais comuns, como a renda de agulha, filê e fioleira. Tentar condensar num artigo a multiplicidade de técnicas e tipos de bordado (de Viana e de Guimarães, aos de Tibaldinho e dos Açores, até as tapeçarias de Arraiolos, se quisermos estender a todo o tipo de trabalho têxtil manual) existentes em Portugal — mesmo apenas aqueles que gozam de um reconhecimento mais popular aquém e além fronteiras — é coisa para se perder o fio à meada. Principalmente porque desenrolar o novelo desta multiplicidade de pontos é mostrar o quão nos é desconhecida a minúcia deste tema, que se desdobra em técnicas, em pontos, em materiais, em desenhos, em narrativas, o que mostra o quão importante é continuar a contar a sua história para que façam parte do léxico comum.
Parte dessa história espera-se que seja contada também pela Moda — aliás, como tem sido. Não é feito difícil: a riqueza dos tipos de bordados e rendas portugueses tem pano para mangas no que à criatividade diz respeito e algumas marcas e designers têm sabido fazer uso disso. Por exemplo, basta entrar na e-shop da portuguesa Behén, marca de Joana Duarte, para encontrar um rol de camisas Viana, com as suas delicadas alusões à flora da zona e o eterno coração de Viana. Nos tons, o tradicional vermelho e azul sobre branco, mas também opções em color block que rompem com os cânones do típico sem comprometerem o legado português. Na coleção para o inverno deste ano, Duarte voltou a fazer desfilar elementos do folclore português como este Bordado de Viana, mas também o Bordado Madeira e, numa estreia, o Bordado da Glória do Ribatejo. Não é a primeira vez que Joana se apoia na portugalidade; aliás, o seu repto enquanto fundadora e diretora criativa é que a Behén seja — e é — uma celebração do artesanato nacional, no qual este género de arte bordadeira tem desempenhado um papel central (em março de 2022, também incluiu bordados da Terceira e tecelagem de São Jorge, Açores, nas propostas para o inverno desse ano). Mas antes de Joana Duarte fazer nascer Béhen, em 2020, já outros criadores nacionais tinham bebido das raízes do país para fazerem um tributo contemporâneo à sua antiguidade. Filipe Faísca, na sua coleção de outono/inverno 2018, subordinou o tema ao Bordado Madeira, usando-o como tela para uma narrativa na qual criatividade e história se interligavam. Não sendo um estranho à junção do legado do artesanato português com as suas propostas, nesta coleção em particular, Faísca fez deste tipo de bordado artesanal o fio condutor de uma estação que traduziu a riqueza desta arte, cuja origem remonta ao século XV, em peças de womenswear que se cosem nas linhas femininas e sofisticadas do criador nacional. Intitulada 6.º sentido, o Bordado Madeira, que ao longo dos anos se popularizou nesta ou naquela peça de vestuário, mas acima de tudo em lenços e toalhas da mesa, ganhou uma nova parafernália de opções em vestidos de festa e cocktail, casacos, calças e saias.
Inúmeros outros nomes da Moda nacional foram buscar a esta herança referências para a trazer para o século XXI, mas essa inspiração não se limitou ao território português. Em setembro de 2014, a Chanel fez desfilar na sua passerelle alguns adereços em Bordado Madeira: a maison, na altura, fechou uma parceria com a empresa madeirense Bordal, encomendando cento e vinte golas bordadas com oito designs da fábrica madeirense e três da empresa francesa, que foram posteriormente adaptados. O resultado chegou às lojas na primavera-verão seguinte, o branco imaculado com o relevo do bordado facilmente reconhecível em diversos modelos de camisas e blusas. Mais recentemente, a italiana Max Mara fez do “lenço dos namorados” o convite para uma coleção de Resort inspirada em Portugal e em Natália Correia: surgiam, então, como emblemas em t-shirts, mas muito pouco desvirtuados da versão original, até na sua manufatura, depois de Sofia Lucas, diretora da Vogue, ter partilhado a história da peça tradicional que apaixonou Ian Griffiths, diretor criativo da casa. “A Sofia Lucas, muito generosamente, explicou-nos esta tradição dos lenços, nos quais mulheres solteiras bordavam mensagens, com flores e corações, para os seus pretendidos e amados, e deixavam-nos cair nas igrejas... se os amados os apanhassem e os pusessem nos seus bolsos, era praticamente como se estivessem noivos. É uma história encantadora — e é poesia, tal como Natália Correia, tal como o fado... é tudo sobre poesia. E nós queríamos celebrar essa tradição portuguesa, mas seria errado aproveitar essa ideia dos lenços e fazê-la fora de Portugal, por isso trabalhamos com artesãos locais e fizemos todos aqui, à mão, e depois foram aplicados em t-shirts, como um painel, na parte da frente”, partilhou com a Vogue Portugal no dia em que a coleção, apropriadamente intitulada Vai Lenço Feliz, desfilou nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian. É uma narrativa difícil de resistir: popularizados a partir do século XIX, estes lenços minhotos de amor eram usados pelas raparigas com idade de casar, que os bordavam poeticamente com versos e desenhos simbólicos (de corações a passarinhos e flores), com o objetivo de os entregar ao seu amado se este se fosse ausentar ou até como forma de conquista de um noivo. De uso transversal a qualquer classe social, era normal as versões mais aristocratas serem rigorosas nos acabamentos e as menos fidalgas serem mais toscas e até incluir alguns erros ortográficos, que na verdade só acrescentam ao seu charme. A história por detrás do ponto é apaixonante mas, mesmo sem o conto, estes quadrados em linho ou algodão apelam desde logo pela sua estética colorida e ingénua, continuando como um acessório apetecível para mais do que simplesmente um grupo de turistas numa loja de lembranças.
Aliás, um apelo linear a quase todos os bordados: a manufatura e a sua textura trazem delicadeza e cuidado à peça que adornam e não é um acaso que esta arte milenar tenha, ainda que com alguma perda de fôlego com a introdução da automação e demais distrações modernas, sobrevivido com a mesma mestria e simbolismo que nos seus primórdios. E a referência “milenar” não é um lapso ou metáfora, encontram-se menções à utilização de pontos, vulgo bordado, desde a pré-história, na costura e ornamentação do vestuário em pele, menções que se manifestam também, associadas ao fausto da nobreza e dos meios religiosos, nas civilizações da Antiguidade. A panóplia de técnicas que hoje se conhece deve-se à sucessiva presença de diferentes povos e culturas no território nacional, que foram deixando segredos de bordado e materiais diversos, hoje parte integrante do repertório da arte do bordado. Assim como aconteceu com outras vertentes artísticas, o bordado foi amplamente influenciado pelo contacto com estéticas e práticas vindas de fora, sobretudo com a abertura das rotas marítimas. Ao longo da evolução e transformação deste tipo de artesanato, é notório o incremento da sua produção e usos, nomeadamente a partir do século XIX: bordar passa a ser uma atividade preponderante no universo feminino, não só como hobby, mas também como contributo para o orçamento familiar. A introdução dos lavores femininos no currículo das escolas de raparigas reforça ainda a aprendizagem que se fazia em família, e culmina, também, inevitavelmente, no aumento das produções com cariz comercial (durante a primeira metade do século XX, o impulso é dado também pelas políticas culturais do Estado Novo, integrando o domínio do património cultural). A tecnologia pode ter abrandado a produção manual, mas não esmoreceu o interesse de quem agora a descobre, sendo fácil admirar e valorizar a mão de obra por detrás de uma bonita peça bordada artesanalmente. Não é um acaso que o bordado em vestuário e acessórios usufrua (ou tenha usufruído, em tempos), além da sua função ornamental, de uma função social e simbólica, com conotações à riqueza, ao estatuto social e ao poder económico. O que é curioso, porque mostrou também ser, enquanto atividade obrigatória em qualquer família, fosse qual fosse o seu rendimento, uma forma mais acessível de decoração do vestuário e do lar, quer por ser uma técnica caseira adaptável a diferentes materiais, quer pela sua versatilidade criativa. Hoje, essa abrangência artística continua a ser posta ao (bom) uso em inúmeras propostas de Moda. Assumidamente nacional ou não, as principais marcas não descuram recorrer à técnica para elevar qualquer peça, tanto no inverno como na época quente, mas com especial enfoque nas propostas mais primaveris. Usualmente, no imaginário, a ornamentar vestuário em linho ou algodão branco, os bordados proliferam nas coleções estivais e esta estação não foge à regra. Dos vestidos de linhas retas rasgados por simetrias de bordados aos “lençóis” cai-cai repletos de motivos florais embroidered da Balenciaga, o verão na passerelle não foi tímido nesta arte, principalmente em visuais alvos por inteiro. Luisa Beccaria, Gabriella Hearst, Valentino, Michael Kors, Chloé, Dior... entre rendas e bordados, o advento do calor não deixa ponto sem nó no estilo e prova que os bordados, com mais ou menos adeptos é — e deve ser — uma arte intemporal. E a sua promoção nos principais palcos de Moda deverá ser, mais que uma manifestação criativa para o guarda-roupa de primavera/verão 2024, um chamariz para o interesse das novas gerações no perpetuar desta manufatura e artesanato. Um apelo para que, “lá em casa, rica filha, todos bordam.” Até o pai, e eu também.