Não era um body, eram umas calças de ganga que usei até ficarem rotas. E depois remendei-as toscamente para poder continuar a vesti-las incessantemente até a juventude dar lugar a outros gostos. Ainda se lembra do seu primeiro grande crush de guarda-roupa? Eu lembro-me. Até de mais do que um.
Não era um body, eram umas calças de ganga que usei até ficarem rotas. E depois remendei-as toscamente para poder continuar a vesti-las incessantemente até a juventude dar lugar a outros gostos. Ainda se lembra do seu primeiro grande crush de guarda-roupa? Eu lembro-me. Até de mais do que um.
© Getty Images
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Eu confesso a minha promiscuidade: não foram só aquelas calças de ganga low-rise (mas com decoro, claro), meio flared, da Salsa, que me acompanharam em inúmeras viagens, primeiros anos de faculdade e fomentaram iras momentâneas quando não as encontrava na gaveta do costume. Aprendi a sentir aquela adrenalina de cada vez que saía de uma loja com uma peça que adorava e que sentia não só que me favorecia, mas que representava qualquer que fosse o lifestyle, personalidade, estilo, ou persona que a instável adolescência me dizia que eu queria ser de semana a semana.
Aliás, a promiscuidade nas paixões do guarda-roupa estavam intimamente ligadas, muito possivelmente, com a volatilidade com que eu me via ao espelho: um dia era hippy, no outro rocker, no outro girly, no outro normcore (ainda que na altura não se chamasse normcore, eram apenas os anos 90 e o seu vestuário mais básico). Mas, ainda assim, no meio desta instabilidade de egos, lembro-me das 501 e camisola da Levi’s que usei como uniforme – era vestir e lavar, vestir e lavar, vestir e lavar… and repeat; lembro-me da minha fase Spice Girls, das bocas de sino em tons vibrantes e daquelas sandálias de plataforma que pareciam a melhor invenção para uma menina de metro e meio e que, por ela, nunca tinham saído de moda (mas ainda bem que saíram); lembro-me da camisola de malha vermelha da Zara com um decote em V tão alargado que deixava os ombros a descoberto e que usava religiosamente quando tinha algum aniversário ou evento, qual amuleto de boa sorte.
Lembro-me também de um anel em metal prateado que comprei por quase nada num mercado em segunda mão e que também acreditava que me trazia alguma fortuna – ainda o tenho, embora não o use com frequência. Mas não consegui desfazer-me dele. Também há algo que ainda mantenho, que são dois pares de jardineiras que o meu pai me trouxe dos States (na altura só se ia aos Estados Unidos uma vez por década, em trabalho, quase nunca em férias de família, era assim uma terra longínqua, pensava eu) com um Tweety no bolso da frente. Arranquei o pássaro dos Looney Toons daquilo a que atualmente chamamos jumpsuits, mas ainda hoje uso ambas as peças.
Não parece aquela lista romântica, de paixões têxteis pejada de designers ou peças em ouro, carteiras icónicas ou casaco que não podia pagar, que estava à espera? Nem todos podemos ter um par de sapatos Salvatore Ferragamo como tinha Marilyn Monroe na sua lista de favoritos (e que chegaram a fazer parte de uma exposição sobre a atriz) ou um rol de Givenchy’s no vestuário, cortesia do amigo criador, o próprio Hubert, como Audrey Hepburn, mas os crushes de guarda-roupa são mesmo assim – não descriminam tamanho, tipo ou etiqueta de preço. Mas posso dizer que eu era tão conhecida por aquelas calças flared da Salsa como Victoria Beckham pelos seus grandes óculos escuros ou Gabrielle “Coco” Chanel pelos seus colares de pérolas.
Esta é uma das mais curiosas vertentes de uma paixão no guarda-roupa: não precisa de surgir porque toda a gente gosta, só precisa de surgir porque a própria pessoa gosta. É claro que a génese pode nascer de um movimento maior (vamos admitir, sem pudor, que a Madonna, as Spice Girls e até a Frances “Baby” Houseman, essa personagem do Dirty Dancing, todas tiveram influência na nossa lista de compras), mas qualquer coisa pode desencadeá-la. Nem que seja uma necessidade de se destacar, de pertencer, de experimentar uma personalidade que muitas vezes só encontrávamos com o look certo para saber como nos sentimos nessa personagem.
Na altura, o visual que escolhia espelhava-se mais ou menos nas pessoas com quem me dava, algo que agora acontece raramente - ou quase nunca. É curioso que os crushes de guarda-roupa, pelo menos aqueles que parecem pavimentar a nossas memórias de estilo com mais carinho, aconteçam quase sempre numa fase de juventude ou adolescência, aquela em que ainda nos estamos a descobrir, a moldar a personalidade, a associar o exterior com o interior. Parecer ser para tentar sê-lo. Com a idade, aprendemos a ser muito mais flexíveis e a não deixar que a roupa nos defina – sabemos do que gostamos, continuamos a fazer uma correspondência entre o lifestyle que vivemos ou queremos com a forma como nos vestimos e construímos o guarda-roupa, mas, por norma, somos menos instáveis a fazê-lo, mudamos de ideias menos vezes, por isso, passamos a adorar peças, mas distribuímos o amor por mais do que uma só.
Outro argumento para tal também se prende com o poder de compra. A mesada convém ser ponderada e guardada para bens de primeira necessidade – que, em jovem, é o mesmo que uma paixão assolapada; a independência financeira traz consigo a possibilidade de se ter muitos likes e menos loves no guarda-roupa, porque deixam de ser tão inatingíveis. O que não quer dizer que não nos percamos de amor por algo, pelo contrário: os crushes de guarda-roupa continuam a existir, mas são muito mais ponderados.
Aos 25, por exemplo, senti que tinha poupado o suficiente e tinha parcos gastos para justificar adquirir uma Chanel 2.55, que comprei por um valor abaixo do preço de mercado, mas ainda assim uma pequena fortuna. Para mim, isso não foi um crush – foi um objetivo e um investimento. Os crushes soam a luxúrias desmesuradas com um enquadramento temporal que depois ficam em baús com carinho, mas que perdem relevância; os objetivos e investimentos de guarda-roupa são algo que, mesmo no dia em que deixam de pertencer ao quotidiano do guarda-roupa, como esta Chanel fez no meu, não deixam de ser itens que vamos revisitar ainda vezes sem conta até os deixarmos como herança a alguém.
Talvez isto dos investimentos seja uma versão madura das paixões de vestuário, aliando o amor pelo objeto com uma aquisição ponderada. Tenho muitas roupas de designers nacionais que ainda estão impecáveis – e adoro-as a todas. Mesmo as que já não me ficam tão bem, não consigo desfazer-me delas porque ganharam uma dimensão amorosa que vai muito além do seu contínuo usufruto e inclusão no dia a dia. E porque sei que um dia vou voltar a elas – porque as comprei numa altura em que me conhecia bem e a personalidade já estava mais ou menos construída. O que cria aqui uma indagação pertinente: é aqui que entra a sustentabilidade no guarda-roupa? Na interseção entre um crush e o investimento? Talvez… talvez apaixonarmo-nos por uma peça signifique que vamos acarinhá-la por mais tempo – desde que seja um amor alimentado durante um longo período, ponderado com carinho, e não aquelas paixões impulsivas que temos de ter porque acabamos de ver naquela atriz daquele filme com aquele ator que adoramos (e eles no fim até ficavam juntos, por isso, nós só podemos ter o mesmo fado); ou, numa versão mais moderna, influenciados por aquela influencer, passe o pleonasmo, que aproveita a vida em viagens e cafés e restaurantes instagramáveis.
Talvez a sustentabilidade do guarda-roupa passe por nos apaixonarmos outra vez pelas peças que temos, talvez crush e sustentabilidade sejam, na verdade, sinónimos, desde que o crush passe a um amor sem fim para reduzir o desperdício. Afinal, adquirir apenas peças pelas quais estamos perdidamente apaixonadas diminui a probabilidade de nos esquecermos delas no fundo de uma gaveta, não? Talvez os crushes, quando não são impulsivos e algo que se quer verdadeiramente (um crush à séria e não um capricho) são, de facto, um investimento.
Ainda se lembra do seu último crush de guarda-roupa? E do primeiro de todos? Guardou-o? E mesmo que não o tenha guardado, passou-o a alguém especial porque não quis, jamais, deitar fora ou desfazer-se dele sem piedade? Parabéns, o seu crush transformou-se no amor pelo planeta.
Artigo originalmente publicado na edição Love da Vogue Portugal, de dezembro 2020.For the english version, click here.
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