Disclaimer: não temos nada contra um tradicional cozido à portuguesa, mas ingeri-lo durante a primavera pode ficar bem distante do conceito de comida de conforto. Junto de três profissionais, fomos perceber como podemos encher o prato nesta altura do ano para nos sentirmos mesmo reconfortados.
Disclaimer: não temos nada contra um tradicional cozido à portuguesa, mas ingeri-lo durante a primavera pode ficar bem distante do conceito de comida de conforto. Junto de três profissionais, fomos perceber como podemos encher o prato nesta altura do ano para nos sentirmos mesmo reconfortados.
© IMDB.
“Adoro sentir-me empanturrado”, disse ninguém em momento algum. Não há absolutamente nada de agradável na sensação de enfartamento após uma refeição, mas quantos de nós já não comemos até nos sentirmos uma bolha prestes a rebentar porque resistir a mais uma garfada (“é só mesmo mais uma!”) e a mais um copo (“este é que é o último!”) parece subitamente uma tarefa impossível? Por mais delicioso que tenha sido o repasto, por mais Instagram material que tenha sido a refeição, o food coma que se lhe seguiu não foi assim tão bom, muito menos digno de um registo nas redes sociais: muito provavelmente, a azia apareceu sem ter sido convidada, a distensão abdominal chegou a ser dolorosa e o processo de digestão foi insuportavelmente mais lento do que o habitual. Confere?
Ainda que os sintomas supramencionados estejam commumente associados à ingestão de grandes quantidades de comida num curto espaço de tempo, a medicina tradicional indiana, conhecida por ayurveda, diz-nos que o consumo inadequado de alimentos na primavera, no verão, no outono e no inverno pode também criar no organismo desequilíbrios de natureza idêntica. Por conseguinte, adaptar os hábitos alimentares a cada estação é, à luz desta medicina milenar, visto como algo importante.
“Nesta altura do ano é fundamental alterarmos a alimentação”, começa por dizer Francisca Guimarães. Especializada na área da homeopatia, a autora do blogue Miss Kale rege-se pelos princípios da alimentação energética, segundo a qual todos os alimentos possuem uma determina energia capaz de interagir com a frequência vibratória de cada pessoa, elevando-a ou diminuindo-a, e assim contribuindo ora para um estado de harmonia, ora para um estado de desarmonia. “Tudo é energia e isso é tudo o que existe", já dizia Einstein e diz também Francisca, referindo-se ao ar que respiramos, aos pensameos que nos habitam a mente, aos alimentos que consumimos, às pessoas com quem privamos, aos ciclos da Natureza. "A energia que está presente nas diferentes estações vai refletir-se no funcionamento do nosso organismo — na temperatura, nos próprios níveis de energia do corpo. Então nós, de maneira a tentarmos compensar ou o excesso de calor, ou o excesso de frio, ou o excesso de secura, ou o excesso de humidade, devemos adaptar a alimentação a essas necessidades”, afirma à Vogue Portugal. Um exemplo: “no inverno do hemisfério norte a temperatura está baixa, o ar, em geral, está mais seco e os dias estão mais curtos, então o que acontece é que o organismo também ele vai ficar mais frio, mais seco, mais lento. Uma maneira de ajudar a compensar todo esse frio que, de repente, está presente no corpo passa por fazer um ajuste na alimentação.”
"A energia que está presente nas diferentes estações vai refletir-se no funcionamento do nosso organismo"
O inverno, diz Francisca, pede-nos alimentos mais pesados, mais densos. Assim, privilegia-se o consumo de leguminosas e de cereais como o arroz em refeições mais quentes e ricas em proteína e em gorduras naturais, como o abacate, o azeite e a manteiga clarificada, também conhecida como ghee. Terminada esta estação, recomendam-se mudanças, até porque, como refere Francisca, “o corpo vai percebendo o que é que está a precisar” ao nível da alimentação. “Na primavera, naturalmente, não nos apetece comer uma feijoada, por exemplo”, atira. E quem diz uma feijoada diz também um caril bem condimentado ou um tradicional cozido à portuguesa. Não é que estes pratos não possa ter o seu lugar à mesa, mas servi-los durante o tempo estival pode não encaixar-se na definição de #comfortfood. “As refeições mais pesadas ficam para o outono e para o inverno. Agora, há que começar a optar por refeições mais leves e mais ligeiras”, sugere Francisca. Também a health coach Margaret Rosania, responsável pela boutique de cuidados integrativos Siendo - Art of Being, localizada em Lisboa, avança com a mesma sugestão, acrescentando que “o órgão da primavera é o fígado”, sendo portanto necessário "entender que alimentos é que vão favorecer a optimização desse órgão”.
Alimentos de primavera
Fosse a primavera uma cor e ela seria o mais forte dos verdes. No prato, nesta época do ano, querem-se espargos, espinafres, couve kale, aipos, beldroegas e rúcula, que vão potenciar o processo de desintoxicação que acontece naturalmente no organismo durante a presente estação e auxiliar o trabalho do fígado, o principal órgão responsável por esse mesmo processo. Se ao ler a palavra desintoxicação pensou automaticamente numa dieta detox que envolve a privação de comida e apenas a ingestão de líquidos, alto: não é isso que está em causa. Até porque, como diz a nutricionista Maria Travassos, “é fundamental ter em conta que este tipo de esquemas alimentares extremamente restritos pode dar origem a episódios de compulsão alimentar e fomentar uma má relação com a comida. A ideia de que estamos intoxicados e que apenas os sumos nos poderão fazer a limpeza leva a crer que a alimentação clássica não é suficiente para nos manter saudáveis, e isso não é verdade.”
Ainda que Maria Travassos não estabeleça uma ligação direta entre os hábitos alimentares e as estações do ano, a nutricionista concorda com Francisca Guimarães e com Margaret Rosania na questão de se adotar uma alimentação com base na sazonalidade dos produtos. “Há vegetais característicos desta altura do ano que são ricos em compostos bioactivos com efeitos muito interessantes a nível do sistema imunitário, nomeadamente os vegetais do género brassica: brócolos, couve de bruxelas, couve-galega, couve lombarda, couve portuguesa, repolho, nabiças.” Novamente, os verdes, sempre os verdes. “A alcachofra e a beterraba também são alimentos a considerar”, diz Margaret e os rabanetes "são excelentes para desintoxicar o fígado", acrescenta Francisca. A completar o consumo de vegetais está a ingestão de germinados, de cereais mais ligeiros como o millet, a quinoa e o trigo serraceno, e de frutas como maçã, pera, kiwi e laranja. “Não é por acaso que as frutas dos meses mais quentes contêm mais água: nesta altura, desidratamos mais facilmente, sendo que a composição nutricional das frutas está adaptada às nossas necessidades”, lembra a nutricionista.
"A composição nutricional das frutas está adaptada às nossas necessidades"
Implementar uma alimentação que segue a Natureza, na opinião de Margaret Rosania e Francisca Guimarães, diz não só respeito à sazonalidade como também aos horários das refeições. Sobre isto, tanto a health coach como a autora do blogue Miss Kale e também do livro Escuta o Teu Corpo (Matéria Prima, 264 pgs., € 17,50), sugerem que sigamos o sol. “O pico digestivo mais alto acontece quando o sol se encontra também no seu pico, ou seja, às 12h00. Deste modo, a refeição principal do dia deverá ser feita a esta hora”, escreve Francisca nas páginas da sua obra. Os outros picos do metabolismo digestivos estão compreendidos entre as 6h00 e 9h30 e o as 17h00 e 19h00. “Comer fora dos picos do metabolismo digestivo pode levar, com o tempo, a um aumento de peso, fermentação intestinal, inchaço abdominal, prisão de ventre, pois os alimentos não estão a ser devidamente digeridos (…) Os nossos biorritmos encontram-se em sintonia com os da Natureza e aceitá-los e respeitá-los é um dos principais segredos para conseguir um estado de harmonia [no corpo].”
Desintoxicação a 360º
Para além dos devidos ajustes alimentares, Francisca sugere que durante a primavera sejam implementadas algumas mudanças no estilo de vida com vista a reforçar o processo de desintoxicação que por esta altura se realiza no organismo. Tais mudanças passam por despertar mais cedo, “com o sol, por volta das 6h30 da manhã”, diz; fazer dry brushing, isto é, escovar o corpo a seco antes de se tomar banho, “uma técnica que na primavera funciona muito bem porque estimula a circulação sanguínea e linfática, o que vai ajudar a limpar e desintoxicar”, e fazer exercício, importante “não só para o processo de desintoxicação mas para ativar a energia do corpo, que esteve numa pseudo hibernação durante o inverno.” Se na estação fria se aconselhava a prática de actividade física mais lenta, como o ioga e a caminhada, preferencialmente antes do cair da noite, nas estações quentes já não existe o problema de se fazer exercício de maior intensidade e ao final do dia. “Os nossos níveis de energia são muito proporcionais à luz solar, e na primavera e no verão já há mais luz. Portanto, há mais energia, e essa energia é mesmo para ser usada”, conclui.