Enquanto a morte nos separe já não existe. Agora o máximo que conseguimos é “enquanto a paciência não se esgotar.” Se por acaso alguém melhor aparecer, também é legítimo dar o fora. Isso e aqueles defeitos que três meses depois deixam de ser fofos. O amor é muito bonito, e tal, mas em 2023 ninguém tem tempo a perder.
Olga e Cyril Mowforth casaram em junho de 1940, mas separaram-se três meses depois, quando ele partiu para a guerra — foi assim que passaram os primeiros seis longos e angustiantes anos como marido e mulher, longe um do outro. Cyril foi recrutado e enviado para combater no Norte de África e, mais tarde, no Norte da Europa, conduzindo os nazis à sua derrota final. Olga permaneceu em Sheffield, Inglaterra, tentando sobreviver de outras formas: através de várias funções de voluntariado, obrigações sociais e tarefas domésticas - e com o máximo de otimismo que conseguia manter, dadas as privações da época e o receio constante de bombardeios alemães. Apesar dos contratempos, o jovem casal arranjou forma de manter o romance vivo, e durante a “separação” trocou cerca de mil cartas e postais, prova de que nem a distância seria capaz de abalar o amor que sentiam. Cyril, cuja unidade foi confrontada com os horrores dos campos de concentração, nunca deixou de acreditar que voltaria a ver Olga, que sempre se manteve otimista. “Olha para a frente. Essas memórias antigas são preciosas, mas só até que façamos novas”, terá ela escrito numa das missivas. A correspondência entre os dois, entretanto falecidos, foi encontrada no sótão da casa de família pela filha de ambos, Sue Mowforth, que decidiu ceder os manuscritos ao Imperial War Museum London. Afinal, aquelas cartas não são apenas o testemunho de um amor maior que a vida, são o retrato fiel da sociedade e do mundo num dos períodos mais críticos da sua História. E a prova de que há coisas que estão destinadas a dar certo, venha o que houver. “A minha mãe escrevia duas vezes mais que o pai, muitas vezes sem saber onde ele estava, mas as cartas encontravam-no sempre”, contou Sue ao jornal The Sunday Post. A história de Olga e Cyril Mowforth podia ser tirada de um conto de fadas, mas é real. Só que, no meio do cinismo em que vivemos, custa acreditar que duas pessoas se possam ter amado assim.
Um retrato bem diferente daquele que Rui, 27 anos, partilha connosco: “Em duas palavras - um desastre. Quando estás nos vintes é tudo uma confusão. Começas a década com uma sede desenfreada de te afirmares, natural do ser humano recém-chegado ao primeiro capítulo da vida adulta. O dating não escapa a esta sede. Chegamos aos nossos ‘loucos anos 20’. Queremos experimentar tudo, queremos uma libertação, queremos que nos vejam como adultos. São anos de verdadeira folia. Há corações partidos, despedaçados até, mas dizem-nos ser natural. Sempre achei bizarro, mas nunca questionei os conselhos de quem já anda nisto há mais tempo. O tempo passa e a folia deixa de ser estimulante, transforma-se num cabo das tormentas — que o Gigante Adamastor nos leve para o fundo do mar e nos tire do tormento de mais um encontro em vão. Claro que este sentimento não me é exclusivo, todos os meus pares passam pelo mesmo. Isto leva-nos à conclusão de que estamos todos sem direção, a desbravar caminho e a fazer aquilo que podemos para não causar estragos a longo prazo. Depois dos 25 pensas que a coisa melhora, mas a névoa permanece. Quando estás perto dos 30 e nada na tua vida toma um rumo acabas por achar que és um caso perdido. E, com esta passagem, torna-se cada vez mais difícil navegar neste colosso que é o universo do dating.” Aparentemente, tinha tudo para não ser assim. Rui mora numa cidade ultracosmopolita (Lisboa), num país livre e democrático (Portugal), tem um emprego porreiro, é bem parecido, conhece muita gente, vai aos sítios certos, etc., etc. Era suposto o seu currículo amoroso ser tão brilhante como o seu sorriso. E, no entanto, não é. Tal como muitos jovens adultos da sua geração, Rui queixa-se do cansaço que é navegar a vida amorosa, muito por culpa do desenvolvimento — desenfreado — da tecnologia. “Num mundo cada vez mais digital, encontrar o amor ou, se quisermos ser mais básicos, encontrar uma pessoa decente para ir beber um copo e, quem sabe, terminar a noite a combinar um próximo encontro, é quase tão complicado como encontrar um desfecho feliz para os conflitos sociais que vivemos. É um campo de minas. Estar no Tinder ou no Grindr é semelhante a estar numa app de entrega de comida. É admirares o que te apetece comer e fazer a encomenda. Depois cada um segue a sua vida — e quando se voltam a encontrar na rua, em festas, ou em qualquer sítio desta minúscula Lisboa, trocam um olhar maroto. Alguns anos desta realidade bastaram para perceber que não é aqui que quero estar. Por muito que entenda a libertação de cada um, decidi afastar-me das dating apps.” E sublinha: “Mas antes de dizer ‘basta, não quero mais isto’ é preciso coragem para enfrentares tudo aquilo que existe nestas aplicações: as mensagens desagradáveis, os comentários depreciativos, os nudes indesejados — não tenho qualquer pudor, mas se não pedi não quero ver. As dating apps facilitaram o processo, estou-lhes eternamente grato pela dúzia de pessoas que por lá encontrei e se transformaram em amigos. Mas até que ponto é saudável estar neste campo de minas?”
Quase um século separa as experiências dos Mowforth e de Rui. Os primeiros viviam numa altura em que se dizia “para sempre” com uma convicção inabalável, atualmente esse “para sempre” vale enquanto não aparecer melhor — ou enquanto não nos cansarmos, algo muito normal na modernidade. O simples facto de podermos escolher com quem podemos estar (basta um swipe correspondido) torna tudo mais esquizofrénico e perigoso. “Ainda sou do tempo em que” é uma expressão gasta, vazia e ultrapassada, e ainda assim servimo-nos dela porque, de facto, ainda somos do tempo em que se punham lagostins na caixa do correio para chamar a atenção da nossa cara metade. Porquê lagostins? Bom, porque não lagostins? Há trinta anos não havia a tecnologia que há hoje, que permite enviar memes e vídeos de todas as vezes que queremos dizer “olá, estou a pensar em ti.” Há trinta anos brincava-se com os elementos que tínhamos à mão: cartas, postais, as flores da praxe, telefonemas infindáveis, encontros nada secretos na curva ao pé do café, bilhetinhos trocados no meio das aulas... Era tudo mais demorado, mais inocente, mais extraordinário. Ninguém sabia o que ia acontecer depois de um primeiro date. A expectativa era o ingrediente-chave das relações, que se cosiam a risinhos envergonhados e a elevadas doses de paciência. Passar disso para a realidade de hoje, em que ter relações sexuais parece ser mais fácil do que dar a mão, é estranho. Somos aliens no nosso próprio território. Fomos forçados a evoluir mas o nosso coração não acompanhou o desapego e a indiferença que agora dominam o dating. Não há espaço para cuidar, nem para flirtar, é tudo para ontem. Alguém melhor que nós pode estar do outro lado do ecrã — e normalmente está —, portanto não vale a pena empatar se não for para cumprir a lista de critérios que o outro espera de nós. Se não somos um dez voltamos para o fim da fila. Next.
À semelhança de Rui, Mariana, 30 anos, também não tem muitas certezas. Aliás, tudo o que tem são dúvidas, porque o amor, esse palavrão de apenas quatro letras, parece-lhe uma coisa cada vez mais complicada de entender. “Depende da forma como abordas as relações. Eu não sou pessoa de dating apps, aquilo parece que estás a ver um catálogo do talho, isto interessa-me, isto não me interessa, estás a resumir as pessoas muito ao seu aspeto físico, a interesses... Mas é o que é. Eu não sou grande fã, porque depois tens de andar a conversar por mensagem, tens de combinar aquele café típico... Mas hoje em dia onde é que vais conhecer pessoas novas? É um bocado complicado. É na noite?” A menção, e posterior crítica, às datings apps, faz-nos pensar que, hoje em dia, é efetivamente impossível equacionar o envolvimento amoroso com outro ser humano a não ser através de um smartphone. O simples facto de “conhecer pessoas novas” ser um problema é prova de que, em mil novecentos e troca o passo, quando nem sequer tínhamos forma de avisar que estávamos três segundos atrasados, sabíamos coisas que agora, quando temos um planeta inteiro conectado, não sabemos. Em que altura da nossa evolução é que deixámos de saber falar uns com os outros, de meter conversa, de trocar uma vassoura por uma dança? Resposta: quando começámos a trocar mensagens. Foi mais ou menos aí que a civilização embruteceu, perdeu os sentidos e, mesmo sem saber, fez um pacto com o diabo. Podemos ter tudo o que quisermos, quando quisermos, só não teremos aquilo que realmente nos faz falta — e, como castigo, nem disso teremos consciência. Como é que chegámos aqui?
Maria, 23 anos, tem uma ideia. “É muito fácil conhecer pessoas, e isso torna tudo muito substituível. Tens as aplicações e conheces pessoas quando quiseres e onde quiseres, o que dá a sensação que vais encontrar mais e melhor noutro lado, o que acaba por causar problemas de compromisso — e falo por mim, antes tinhas uma pessoa e pensavas que tinhas de ficar com ela, e agora pensas que podes encontrar melhor noutro lado, o que torna as coisas muito descartáveis. Mas depois há o reverso da moeda, que são as pessoas que por acharem e temerem isto, querem logo agarrar-se a alguém e têm relações longuíssimas porque têm medo que isso se reflita nelas.” Ninguém disse que era fácil. “Também acho que a minha geração está a entrar na descrença da monogamia. Porque é que hás-de estar a vida toda com uma pessoa quando te vais cruzar com mil? E as redes sociais facilitam muito isso. E depois surgem também as situationships, que é quando estamos juntos mas não somos exclusivos — ou seja, tens as vantagens todas de estar numa relação, menos o compromisso. Acho que isso é huge na minha geração, casos de pessoas que estão em situationships e que nunca sabem em que ponto é que estão.” Tudo isso tem impacto na forma como entendem o “e foram felizes para sempre”, garante Maria. “A nossa perspetiva do amor para sempre... é que já não há! Até porque, antes, tinhas de ficar a vida toda no mesmo sítio, e agora não. Amanhã se quiseres mudas-te para Nova Iorque. É tudo muito instável.” É tudo muito instável, de facto. Imagine-se alguém, em 2023, a ditar as seguintes linhas: “Quatro anos [sem ti] querida, e estou mais apaixonado por ti do que nunca. (...) Ainda temos um caminho difícil a percorrer neste mundo enlouquecido, mas não me interessa o quão longo e difícil o futuro possa ser, desde que estejamos juntos.” Não vale a pena imaginar. O seu autor, Cyril Mowforth, escreveu-as em plena Segunda Guerra Mundial, durante a qual nunca deixou de escutar uma voz que todos temos e que nos sussurra “coragem, coração.” Ele nunca se cansou de a ouvir.
Artigo originalmente publicado no Love & Hope Issue, disponível aqui.
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