Há vários milénios que cão e homem estabeleceram entre si relações de amor genuíno assentes em princípios que aproveitamos, por exemplo, para definir lealdade. Estes amores verdadeiros, feitos de rotina e de surpresa em medidas semelhantes, dificilmente encontram paralelo numa relação entre humanos. Estas pequenas histórias revelam esse amor.
Há vários milénios que cão e homem estabeleceram entre si relações de amor genuíno assentes em princípios que aproveitamos, por exemplo, para definir lealdade. Estes amores verdadeiros, feitos de rotina e de surpresa em medidas semelhantes, dificilmente encontram paralelo numa relação entre humanos. Estas pequenas histórias revelam esse amor.
Permitam-me que comece por vos apresentar o meu cão – e, ainda antes disso, esclarecer que não se trata de um cão, mas sim de uma cadela: chama-se Lolita Josefina e vai fazer sete anos em janeiro. Nunca lhe chamámos Lolita, nem em privado, nem em público, ao longo destes quase sete anos de coexistência e de partilha de casa. Os nomes dos cães são curiosas etiquetas volúveis que tendem a não se materializar. Como os planos que fazemos para o futuro quando somos adolescentes, os nomes dos cães mudam em função daquilo que nos dá gozo em determinado momento. Lolita Josefina já foi chamada de quase tudo, inclusive de Cão. Hoje, os nomes mais usuais são Boo (não sei porquê – provavelmente, por preguiça nossa, por ser tão fácil e destrabalhoso), Loló e Lolis. Quando faz algum disparate, é habitual recorrermos ao nome apropriado à repreensão: Lola, sem diminutivos nem carinhos. Já Lolis é uma habilidosa corruptela que, por afinidade fonética, veio a resultar no composto pomposo “Lolis Regina”, com todo o respeito pela musa de quem fomos beber a inspiração. Tanto quanto sei e observo, este fenómeno de chamar muitos nomes aos cães é recorrente entre aqueles cujo coração tenha sido conquistado por um. Ou seja, nem nós, lá em casa, nem a Lolis, em si mesma, somos especiais: é simplesmente assim que acontece.
Lolis
Todas as manhãs, Lolis Regina, logo que me ouve pôr o relógio no pulso e a seguir pegar no casaco, desce da cama, ainda sonolenta, e vem ter comigo naquele seu jeito meio trôpego de cão indolente, porém impaciente por ouvir as palavras que são a origem de toda a sua felicidade: "Vamos à rua?" É então que me lança as patas da frente às ilhargas num cumprimento carinhoso, que usa ao mesmo tempo para se espreguiçar uma última vez antes de eu lhe pôr a trela – o que este bicho ama a sua trela, não percebendo que o artefacto que aparentemente lhe dá liberdade é também aquele que a constrange e reprime (e é bem possível que daqui se possam extrair alegorias e analogias, mas não vou fazê-lo). Esta descrição do despertar de Lolis Regina serve simplesmente para mostrar o que é a nossa rotina. No entanto, é precisamente quando Lolita não está em casa que se dá o meu espanto. Um exemplo: pela manhã, ponho o relógio no pulso, pego no casaco e, apesar da sua ausência, ouço-lhe as patitas no soalho, tictictic, depois de sal- tar da cama. Ouço-a sem que ela esteja ali. Quando nos damos ao amor-cão, o animal conquista o seu espaço – no tapete, no sofá, na nossa mente. Parece que o efeito de Pavlov não existe só para os cães: estes, quando entram nas nossas vidas, também nos condicionam os reflexos, entre muitas outras coisas.
Karenine
Há muitos, muitos anos, li A Insustentável Leveza Do Ser, de Milan Kundera. Não me recordo do livro com grande precisão, as exatidões esfumaram-se como o tempo que passou entre o momento em que recordo o livro e a altura em que o li. Mas há uma passagem que me ficou e a que o meu pensamento regressa com uma frequência incomum. Se não me engano, é a personagem de Sabi- na que tem um cãozito, daqueles pequenos e rabugentos. Sabina, que tinha uma relação tumultuosa com o protagonista (Tomas, acho eu) porque não era capaz de se entregar em exclusivo a um homem – a psique de Sabina era complexa, tal como o seu passado e, possivelmente, os seus traumas inconfessados e, logo, nunca vertidos por Kundera naquelas páginas –, divaga em pensamentos acerca da natureza pura do amor entre ela e o seu cão, Karenine (noto agora a semelhança entre mim e Sabina: eu busquei um nome de cão em Nabokov, ela fê-lo em Tolstói). E diz Sabina, de si para consigo, que o amor entre ela e Karenine é o mais simples e verdadeiro porque é o mais desinteressado, não requer contrapartidas nem vive à base da satisfação de exigências. Ok, tem de alimentar o animal, mas é tudo o que tem de fazer por ele. O resto é afeto, é contacto, é mimo, com independência, com liberdade e sem obrigações. Em suma, é o amor perfeito, incomparavelmente mais genuíno que aquele que acontece, quando acontece, entre humanos. Talvez o segredo resida precisamente no facto de não ser entre humanos, talvez nos espante e arrebate a possibilida- de improvável de nos amarmos para além da nossa espécie, e do outro – o cão, no caso – nos amar de volta, e esse espanto e esse arrebatamento serem o combustível sentimental para que não questionemos mais nada, pois a sua existência simples basta-nos – aliás, mais do que bastar, deslumbra-nos.
Hachiko e Capitàn
Tudo isto pode ser ilusão. Que possamos amar os nossos cães parece fácil de conceber, é praticamente lógico. Agora, que os cães nos amem de volta e que adotem comportamentos que o demonstrem, isso pode não passar de projeção nossa – a imaginação e o desejo de reciprocidade, a necessidade de cada um se sentir amado, enfim, podem provocar em nós, humanos, a miragem do amor que, na verdade, não nos têm. Porém, existe a maravilhosa história de Hachiko, o Akita Inu que é hoje símbolo de Shibuya, em Tóquio. Hachiko – o seu nome verdadeiro era Hachi; Hachiko era um diminutivo – foi adotado por um professor universitário, Hidesaburo Ueno, e levado de Odate para a cidade de Tóquio. Todas as manhãs Hachiko acompanhava o dono até à estação de Shibuya, onde o pro- fessor apanhava o comboio para se dirigir à universidade. Ao fim do dia, o fiel Hachiko lá estava à porta da estação, à espera do seu dono. Assim foi, todos os dias durante mais de um ano. Quem frequentava a estação sabia da curiosa história do professor Ueno e do seu fiel amigo Hachiko. Até que um dia o professor não regressou. Ueno sofrera um AVC durante uma aula, acabando por morrer. Como é que se explica a um cão que o seu companheiro humano morreu? Como é que podemos esperar que um cão compreenda semelhante acon- tecimento? Sabe-se que Hachiko nunca desistiu de esperar pelo seu amigo e que todos os dias o ia esperar à estação de Shibuya, à hora suposta. Ueno morreu em 1925; Hachi viria a morrer dez anos mais tarde, em 1935. Todos os dias, até morrer, esperou pelo professor à porta da estação.
Esta história tornou-se conhecida quando um antigo aluno do professor Ueno reconheceu Hachiko na estação de Shibuya e se inteirou do que se passava junto das pessoas que conheciam o cão. Esse antigo aluno de Ueno, fascinado pela lealdade de Hachiko, viria a publicar mais do que um texto sobre o assunto em jornais regionais e nacionais. Quando Hachiko morreu, a oito de março de 1935, a notícia da sua morte causou comoção por todo o Japão, chegando ao ponto de ter sido declarado um dia de luto. Os ossos do cão foram enterrados num canto da sepultura do professor Ueno, no Cemitério de Aoyama, para que finalmente Hachi pudesse reencontrar o seu dono. Há uma estátua de Hachiko junto à estação de Shibuya e também uma estátua representando o reencontro entre Hachi e Ueno na Faculdade de Agricultura da Universidade de Tóquio, onde o professor dava aulas. A história de Hachiko foi adaptada ao cinema em 2009, em Hachiko – Amigo Para Sempre, com Richard Gere no papel do professor universitário que adota Hachi. Se a história de Hachiko é comovente, o que dizer da dedicação ímpar de Capitàn, o cão que ficou célebre na província argentina de Córdoba, mais precisamente da vila de Carlos Paz, depois de se recusar a abandonar a sepultura do seu dono? A história de Capitàn resume-se muito rapidamente. Capitàn foi um presente de Miguel Guzmán ao seu filho Damián. A amizade entre Damián e Capitàn foi tão imediata quanto forte. Era de amor que se tratava. Tragicamente, Damián morreu em 2006, ainda jovem, o que deixou Capitàn desesperado. O cão fugiu de casa pouco tempo depois da morte do seu dono. Os pais de Damián acabaram por julgá-lo morto ou desaparecido. Até que alguns dias mais tarde, ao visitarem a campa do filho, se depararam com Capitàn deita- do sobre a sepultura. E foi assim que viveu durante cerca de dez anos: todos os dias e todas as noites guardando a sepultura do seu adorado Damián. Capitàn acabou por morrer sobre a campa onde passou grande parte da vida. Numa entrevista ao jornal local a propósito da morte do cão, a florista do cemitério não conseguiu conter as lágrimas ao recordar aquela história do mais puro amor, da mais inabalável lealdade. Na altura, a população de Carlos Paz pretendia que Capitàn pudesse ser sepultado junto ao seu dono, tal como aconteceu com Hachiko em Tóquio.
Balto e Togo
Quem visita o Central Park, em Nova Iorque, pode encontrar a estátua do cão Balto, um Husky Siberiano. Quem gosta de filmes de animação com cães heróis pode ter uma vaga ideia de quem foi este cão. Porém, a história de Balto é dramática – e os louros do seu heroísmo devem ser partilhados com outro cão, Togo. Balto e Togo desempenharam papéis fundamentais no combate a uma epidemia de difteria na cidade de Nome, no Alasca. Em 1925, a doença alastrou entre as crianças de Nome durante a época dos grandes nevões. A cidade não estava preparada para fazer frente a uma situação daquelas e, então, foi necessário organizar expedições de trenós puxados por matilhas de cães de Nome até Nenana para irem buscar medicamentos. Era suposto os cães terem de percorrer parcelas da distância total, porém os violentos nevões levaram a que apenas as equipas lideradas por Balto e por Togo conseguissem ter sucesso. Ambos os cães percorreram cerca de mil quilómetros nas mais adversas condições, sob neve e ventos fortes, para conseguirem fazer chegar os medicamentos a Nome – mas conseguiram. Balto morreu em 1933, com 14 anos. A vocação canídea para o salvamento é conhecida e está amplamente documentada, sendo inúmeros os exemplos de cães-heróis, sejam eles polícias, bombeiros, cães de guarda, cães domésticos ou personagens de ficção – não esqueçamos que a realidade supera sempre a ficção, pelo que, se há cães-heróis em livros e filmes, muitos mais haverá na vida real. Os cães têm a extraordinária capacidade de nos conseguirem salvar de várias maneiras, mesmo de um modo que não mereça notícia de jornal. Vejamos o exemplo dos cães usados em terapias, que são necessariamente animais dóceis, educados com o propósito exclusivo de ajudar pessoas em dificuldades. As terapias com cães abrangem várias modalidades e o seu efeito tem vindo a ser estudado – e, na maior parte dos casos, verificado – na recuperação de problemas motores, de difi- culdades de memória e até na resolução de problemas emocionais. Sim, há muitas formas de sermos salvos por um cão.
Okapi
Uma vez, fui adotado por um cão. Uma vez mais, tratava-se de uma cadela. Magra, mais que magra, escanzelada, com um olhar suplicante, perseguiu-me desde o liceu até à porta de casa, então a casa dos meus pais. O meu coração de pedra, naquele dia e diante daqueles olhos marejados de tristeza e de sofrimento, não conse- guiu resistir e desfez-se em moleza: fui buscar um alguidar com água onde desfiz pão duro. Comeu e bebeu como se nunca mais fosse comer na vida. Enternecido, fui buscar uma taça de leite que sorveu sem demoras. Finda a refeição, enxotei-a. Ela fingiu que se foi embora, mas nunca mais saiu da minha vida – eu é que acabei por sair da vida dela, como se verá adiante. Passou a dormir à nos- sa porta, a minha mãe dizia que não queria cães em casa. Quinze dias depois dormia no sofá. Dávamos-lhe de comer, claro, mas não creio que ela precisasse (pelo menos depois de alguns meses con- nosco, quando já toda a gente a conhecia, não precisava). Okapi – foi o meu irmão que lhe deu o nome (ele acabaria por se tornar o dono oficial de Okapi) depois de descobrir que existia em África um animal assim chamado, razoavelmente estranho, que parecia uma zebra com cabeça de girafa e pescoço de outra coisa qualquer –, dizia eu que Okapi comia: em casa, depois em casa dos meus avós, depois passava por alguns vizinhos, acabando por dar o seu passeio diário – eu vi-a fazer isto, é a mais pura verdade – que incluía uma passagem pela pastelaria (davam-lhe queques, uma vez, recebeu um tão quente que teve de o deixar cair no chão para que arrefecesse) e no talho (davam-lhe aparas de costeletões, imagine-se). Naturalmente, ficou gorda, foi uma questão de meses.
Okapi era cadela de rua, independente, não precisava de um dono – precisava, sim, de quem lhe desse comida e um teto (e, se possível, um sofá para dormir), mas não era preciso quem a fosse passear, bastava que lhe abrissem a porta para entrar ou para sair. No entanto, quando eu a passeava dedicava-me uma extraordinária atenção e revelava-se extremamente obediente, apesar de eu nunca a ter educado com treino – tudo entre nós foi improvisado e intuitivo. Quando entrei para a faculdade, comecei a namorar, uma coisa séria que até então nunca me tinha acontecido, pelo menos não com aquele peso de compromisso definitivo. Acabei por sair de casa dos meus pais, tempos depois, para ir viver com essa namorada. Foi um namoro tão tóxico que não sei como é que me atrevi a repetir a aventura, mesmo tratando-se de pessoas diferentes. Gosto de recordar um episódio em que levei essa namorada lá a casa. A dada altura, estava a brincar com a Okapi – na verdade, chamávamos-lhe “Kápí” –, eu atirava-lhe uma bola de ténis e ela ia buscar. Então a minha ex-namorada pediu para atirar uma vez. Obediente, interrompi o meu jogo com Okapi e ordenei-lhe que levasse a bola à sua nemésis. Ela assim fez, embora o tenha feito à sua maneira: com a bola na boca, chegou diante dela e deixou cair o brinquedo com todo o desprezo do universo, um desprezo que não se dá nem aos cães, virou-lhe as cosas e foi-se embora. Deitou-se no seu canto como quem diz “A vida é tua; queres brincar, brinca tu com ela”. Isto, sim, é amor. E eu, se fosse atento e perspicaz, podia ter-me deixado salvar.
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