Falámos com a artista sobre o seu novo projeto Desafiar Estereótipos, mas falámos também sobre construir hoje o futuro de amanhã. Então percebemos que se a voz de Ana Bacalhau fosse a voz do mundo, viveríamos todos num lugar mais bonito.
Podemos chamá-la “mulher de armas” se assumirmos que a sua arma é a voz. Porque a usa sem pudor nem constrangimentos, sem filtro mas com consciência. Eleva-a sem medo se for preciso, enquanto luta pelas causas que lhe tocam no coração. E as suas palavras são a voz da razão e da esperança, que acreditam num mundo ideal onde as questões de género não existem e a igualdade é uma realidade. Falámos com a artista sobre o seu novo projeto Desafiar Estereótipos, mas falámos também sobre construir hoje o futuro de amanhã. Então percebemos que se a voz de Ana Bacalhau fosse a voz do mundo, viveríamos todos num lugar mais bonito.
Quais são os objetivos do novo projeto pedagógico Desafiar Estereótipos – direcionado para a comunidade escolar, do 3.º ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário, que explora os diversos contextos de vida onde a discriminação em função do género acontece – e como surgiu o seu envolvimento? Surgiu o convite para fazer um projeto em que eu escrevesse três canções sobre algum assunto que me fosse importante e de facto este assunto é-me muito importante desde garota. Sinto que os papéis que me são impostos, e que são impostos aos outros, a mim enquanto mulher não me servem, é um fato um bocadinho justo, demasiado justo, não é cortado à minha medida definitivamente. Então tenho vindo a questionar esses papéis. Aquilo em que acredito é que todos nós, antes de sermos homens ou mulheres somos seres humanos e temos que ter a liberdade de agir, de pensar, de falar e de nos comportarmos da forma que achamos que é a nossa verdade e não tanto de acordo com os estereótipos ligados ao sexo com o qual nascemos. É nisso que eu acredito e então, tendo surgido este projeto, achei que era a oportunidade ideal para falar um bocadinho sobre isso. Apesar de estarmos num mundo ocidental em que os direitos das mulheres já têm cento e tal anos de luta, e portanto já termos alcançado algumas coisas, a verdade é que vendo as caixas de comentários de casos como o #MeToo, por exemplo, ou de casos de acórdãos sobre violações, vemos que nas mentalidades ainda há muito para trabalhar. Portanto, o que o projeto propõe é levarmos o livro, as canções e uma conversa sobre estes tópicos a alunos do secundário, principalmente, e fazê-los pensar. É o início do pensamento, é basicamente isto que o Desafiar Estereótipos propõe.
Desmistifique-nos o conceito de género. O conceito de género é diferente do conceito de sexo biológico. Sexo biológico é um conjunto de características biológicas que designam se um ser humano é homem ou mulher. É uma coisa externa, que é identificável e não muda de cultura para cultura. O género é um conjunto de comportamentos, atitudes, formas de estar, até um pensamento comunitário, que é atribuído a cada um dos sexos, digamos assim, feminino e masculino. Isso muda de país para país, e até muda no próprio país ao longo do tempo, é uma construção social portanto. E como todas as construções sociais, voltando à ideia de fato, de roupa, são moldes que ainda estão muito apertados, o conceito do que é a masculinidade, a feminilidade, e acho que não servem bem aquilo que é a liberdade do indivíduo, do ser humano. Quando eu era miúda o que me diziam é que eu tinha que falar baixo, ser dócil, não levantar tantas ondas, não cruzar as pernas, de me vestir e de me comportar de certa maneira porque o bom‑nome de uma senhora era o mais importante e essas coisas todas... E eu sempre questionei um bocadinho isso porque eu falo alto, às vezes cruzo as pernas outras vezes não, quer dizer, acho que essas coisas que te são impostas sinto-as muito como uma prisão e não como a minha verdade. E o que eu procuro é a minha verdade, e há muitos tons do que é ser feminino, é muito variado, e todos nós temos um lado masculino e feminino, homens e mulheres. É como cozinhar, é um tempero que se coloca e cada pessoa tem um tempero, ou põe um bocadinho mais de masculino e um bocadinho mais de feminino e depois dá o indivíduo, aquela pessoa que é original e única e irrepetível. Para mim o género é uma coisa fluida e que deve ser sempre questionada. O que eu quero é que as pessoas vivam de acordo com a sua verdade.
"Ser pai e ser mãe não são palavras para as mesmas coisas?(..) O papel do homem como pai também tem de mudar."
Em Portugal, ser homem ou mulher ainda é uma questão? Portugal apresenta diferenças de género como qualquer outro país. Ainda somos uma sociedade algo conservadora, penso eu, e rígida na atribuição desses papéis e acho que se formos ver as percentagens de homens e mulheres em altos cargos ficamos abismados porque, de facto, o acesso das mulheres a lugares de topo ainda é diminuto. E isso acontece por causa de outra coisa que deve ser falada e questionada que é a ideia de que as mulheres são “as cuidadoras”. Elas cuidam dos filhos, dos pais idosos, de toda a gente da família. E essa é a desculpa utilizada pelas entidades patronais para de certa forma barrar o acesso das mulheres, de as impedir de subir na hierarquia de acordo com o seu mérito. E isto deve ser falado, assim como o tabu em relação à maternidade. De que forma é que isso é assim tão diferente da paternidade? Ser pai e ser mãe não são palavras para as mesmas coisas? Isto é uma coisa que eu até escrevo numa canção. Ou seja, o papel do homem como pai também tem de mudar. Hoje em dia os pais estão muito mais presentes, querem amar, querem cuidar, limpar, fazer tudo o que uma mulher faz. E fazem-no bem, muitíssimo bem. Tão bem quanto uma mulher. Eu acho que isto tudo tem de ser posto em causa, porque é isto que nos desajuda a nós, mulheres, por exemplo a subir a cargos de poder. São estes preconceitos e esta noção de que é a mulher que tem de estar sempre a dar apoio à família, entre outras coisas. O corpo da mulher, por exemplo, ainda é considerado propriedade ou da sociedade ou do homem, marido, namorado, daí aqueles comentários do “estava a merecê-las porque ia na rua assim vestida”, estava a merecer um piropo ou ser agredida sexualmente porque estava bêbada, esse tipo de comentários. Tem tudo a ver com a conceção do corpo da mulher e da mulher no espaço público.
De onde vêm esses pensamentos/comportamentos? Eu acho que tem a ver com as mentalidades, pelo que se lê na Internet ainda há muito a fazer nesse sentido. Mas obviamente que é importante termos leis que auxiliem esta mudança de mentalidades. Com o tempo as pessoas vão percebendo que não há nenhum bicho papão e que as coisas até funcionam melhor se houver harmonia, equilíbrio e justiça. De facto acho que ao nível político é importante fazer as leis certas, mas ao nível comportamental, aí deve começar-se desde pequeninos que é quando as crianças começam a construir a sua identidade de género, a estar no mundo, a adquirir comportamento e pensamento sobre si e sobre o mundo e é importante desde logo começar a falar-se sobre isso, a questionar para as pessoas chegarem às suas próprias conclusões. Eu quando era miúda tanto gostava de brincar com Barbies como com os caterpillars, aquelas gruas de construção. Mas depois é nos dito, não explicitamente, que as meninas têm de brincar com bonecas e que os meninos não podem brincar com bonecas – “Um menino brincar com bonecas, que horror!” Isso vai entrando na nossa cabeça e é por isso que depois as meninas acham que não podem ser cientistas, astronautas, etc., e achamos que elas têm menos propensão para as matemáticas e disciplinas exatas e se calhar não é bem assim, é só porque lhes foi dito desde pequenas que não era esse o seu meio, que não podiam ir para aí. Mas acho que nada disto é maldoso, as pessoas fazem isto porque acham natural, nem questionam, nem pensam que estão a direcionar as crianças para um certo comportamento. Não é por maldade, nem conspiração, mas somos nós [sociedade] que perpetuamos estes comportamentos sem pensar muito.
Porque em questões de género também há minorias, como por exemplo as pessoas transgénero… Sim, o caminho é muito mais longo, porque tudo o que é diferente do padrão – neste caso de género, feminino e masculino – tudo o que se afasta, é muito difícil, é sujeito a uma enorme violência psicológica e física. Há muito a ser feito ainda na nossa sociedade, e é precisamente por causa disso que temos de falar, e quando falamos de identidade de género não podemos só estar a incluir mulheres que nasceram mulheres, temos que incluir todos estes tons, todas estas diferentes maneiras de estar no género feminino e masculino. O que é bonito é a diversidade. O que faz avançar a civilização é a diversidade, é sermos todos diferentes, porque se formos todos iguais vamos sempre chegar à mesma conclusão e não avançamos. Se formos todos diferentes, e se acarinharmos essa diferença, vamos para o mesmo problema achar várias soluções e vários caminhos, e isso é que é enriquecedor, isso é que nos faz avançar enquanto sociedade.
"Eu tenho de trabalhar muito mais para provar o meu valor do que se calhar se fosse homem."
Quais são, no seu entender, os principais estereótipos enraizados nas camadas mais jovens, que são o principal alvo deste projeto? Do que eu tenho percebido eles já chegam a estas idades, entre os 15 e os 18, com uma concessão bastante estereotipada do que é o género, mas ao mesmo tempo estão muito abertos a pensar, a serem questionados e a questionar. Por exemplo, uma vez coloquei a questão: uma mulher e um homem vão a uma oficina, se o carro é da mulher, o mecânico ou a mecânica, vai estar a olhar para o homem… E um dos rapazes disse logo “claro”, e eu perguntei logo: claro porquê? O mesmo acontece quando o pai e a mãe vão à escola, e se falam de assuntos sobre a educação da criança à partida vão olhar para a mãe. Isto para mostrar que há estereótipos, e há coisas que são aceites por eles, quase como verdades, e estas conversas espero que os ponham a pensar, nem que seja um bocadinho.
Como se mudam essas mentalidades? Quanto mais cedo começar esta conversa menos tempo os preconceitos e os estereótipos têm de se instalar e criar raízes. Deve começar no seio familiar mas muitas vezes, sem maldade, a família nem pensa nestas coisas. Depois deve continuar na escola. A escola deve mesmo ser um ponto de partida para falar destes assuntos. […] É importante fazer estes jovens perceberem os conceitos de feminismo, a luta pela igualdade, as identidades de género, é preciso sobretudo falar e pensar. Porque são eles que vão construir o mundo. Eu pretendo ser válida até morrer mas, a partir de uma certa idade, o mundo vai ser construído por esta nova geração. Eu adapto-me a esse mundo e tento contribuir para ele, mas de facto eles estão agora a construir os pilares da sua casa, que é o mundo, e têm que lhes ser dadas todas as ferramentas que precisam para construir um mundo fixe, para terem uma casa onde possa entrar toda a gente. Se desde cedo lhes dermos outros caminhos, acredito que vão implementar isso pela vida fora.
Ao longo da sua vida profissional e não só, deparou-se com situações onde questões de género foram determinantes em certos contextos? Sim, porque obviamente eu sou líder. Eu sou líder da minha carreira profissional, tenho uma equipa vasta a trabalhar comigo. Em palco sou líder, em relação ao público sou líder, e em relação aos músicos que me acompanham – e eu falo de liderança, não de chefia. Depois, fora de palco, para tomar decisões importantes para o meu percurso, tenho uma equipa que está comigo e a maior parte são homens, eu sou a única mulher. […] E eu tenho de liderar toda esta equipa. Em palco, tenho que me preocupar com a minha imagem, mas na minha balança, entre estar bem composta ou sentir o que faço e fazer uma cara horrorosa nas fotografias, prefiro descompor-me. Mas é‑me pedido que eu esteja sempre muito compostinha, e eu não sou assim. Fora de palco, quando estou a dar ideias, por exemplo, sinto sempre um certo paternalismo, no sentido em que as minhas ideias só são válidas quando são validadas por um homem [risos]. Mas se tenho de exercer essa liderança, e se tenho de dar uma ordem a alguém, tenho de ter cuidado para não passar por megera, porque enquanto um homem que dá ordens é um líder, uma mulher, quando dá ordens claras, é uma megera. Eu tenho de trabalhar muito mais para provar o meu valor do que se calhar se fosse homem, eu sinto isso na minha vida profissional.
E em relação a fatores externos? Quando se está sob o escrutínio público é bastante cruel para as mulheres, mas os homens também sofrem com isso. Mas para as mulheres é tramado, sobre a idade, sobre o corpo, o peso, a forma como se vestem… eu pelo menos sofri em relação ao meu corpo. Já fui mais gorda e sofri muito com isso e claro que sofro quando leio certas coisas, mas depois vou para o palco e faço aquilo que gosto.
Sobre as músicas que criou para o projeto, como foi escrever, compor e qual foi a principal dificuldade de falar para crianças e jovens sobre estes temas? Foi um belo de um desafio porque, lá está, eu em Deolinda nunca compus, só interpretava, mas quando comecei a tocar guitarra, com 15 anos, fazia canções. Depois deixei de acreditar que as minhas canções tivessem valor e concentrei-me a ser intérprete mas, agora, tenho voltado a pegar na guitarra e a fazer canções. Apesar de não me considerar autora, a verdade é que sinto cada vez mais confiança naquilo que faço, e isso tem sido ótimo para me obrigar a fazer canções. Até a fazer canções por encomenda. [Risos] Estava cheia de medo de não conseguir e fiquei muito feliz por perceber que consegui, que consegui fazer canções, canções à medida de um certo assunto, à medida do público para o qual as vou apresentar e também de tocar, porque sou só eu, a minha voz e a guitarra. E lá estou eu a ultrapassar os meus medos.
E usar a arte, neste caso a música, para alertar para este género de questões é importante… Certamente. Acho que são importantes duas coisas: publicamente usar esta voz pública e depois, na nossa vida enquanto cidadãos, no dia a dia, também não esquecer que é importante vivermos de acordo com os nossos princípios.
Qual é, para si, a verdadeira recompensa em usar a sua voz para este tipo de causas? É sentir que posso fazer a diferença, por mais pequenina que seja, ainda por cima com uma coisa que é um dom que me foi dado, que é o dom de comunicar através da minha voz, e que é a coisa que eu mais gosto de fazer no mundo, é o meu ar, o ar que eu respiro, cantar, fazer música, sem isso eu definhava. E poder utilizar o que me transforma num ser humano pleno e entregar a outras pessoas, e com isso tentar ajudá-las e fazer alguma diferença na vida delas, para mim é a maior bênção de todas. Estar conectada enquanto ser humano com os outros através da minha voz, literal e figurativamente. Temos todos de pensar que podemos fazer a diferença. A verdade é que isto tudo é um oceano, e se cada um de nós mandar aquela pedrinha que faz ondas pequeninas, te garanto que vai dar numa onda gigante. Agora, se ninguém fizer nada as águas ficam paradas. Por isso temos de pensar que, por mais pequena que seja, faz sempre alguma diferença.
* Artigo originalmente publicado na edição de novembro de 2018 da Vogue Portugal.