Ana Moura deixou para trás a editora discográfica e a empresa de management e agarrou-se à vontade de “voar daqui para fora” para conquistar a sua (tão desejada) liberdade.
Numa altura em que “arriscar” parece ser o verbo menos conjugado pela comunidade artística, Ana Moura largou tudo e decidiu dar a conhecer-se tal como é: uma intérprete plural, apaixonada por várias sonoridades, por vários ritmos, que não se esgotam no fado. Numa altura em que “arriscar” parece ser o verbo menos conjugado pela comunidade artística, Ana Moura deixou para trás a editora discográfica e a empresa de management, as que durante anos lhes traçaram o destino e lhe garantiram o sucesso, e agarrou-se à vontade de “voar daqui para fora” para conquistar a sua (tão desejada) liberdade.
"Há um momento em que me cai a ficha. Eu estava a gravar um disco, que não saiu. […] Isto foi aí há dois anos, antes da pandemia. […] Basicamente fui diretamente das tours para o disco. Não parei. Comecei a pedir a compositores com quem habitualmente trabalhava para me enviarem músicas, e a verdade é que dei por mim, estava em estúdio, e estava tristíssima. Lembro-me de ir à casa-de-banho e começar a chorar porque estava a gravar com um produtor incrível, mas não estava a gravar o disco que eu queria. Estava completamente perdida. Comecei a chorar na casa-de-banho, e [depois] comecei a cantar um fado que se chama Nossa Senhora das Dores. Comecei a cantar esse fado, que é até bem ritmado, assim com uma dolência, por causa da tristeza que estava a sentir, e da frustração. Sentia que estava a ter a oportunidade de estar a gravar com um produtor incrível mas que, na verdade, não era o disco que eu queria. Não por ele [produtor]. Mas não era aquilo. Estava-me a cair a ficha de que não era aquilo. Estava perdida, completamente. Entretanto chego dentro do estúdio, chamo o meu guitarrista e digo-lhe assim: ‘Ó Ângelo, anda cá, acompanha-me aí neste fado’, só para me dar ali alguma motivação. Comecei a cantar aquele fado, e ele a acompanhar-me, e eu [dizia-lhe] ‘Toca mais lentinho’, e ele a acompanhar-me com aquela dolência com que eu estava a cantar. Acho que foi aí que me caiu a ficha e que percebi ‘Eh pá, fogo, eu não estou a fazer aquilo que eu realmente quero.’ E depois o disco ficou parado, não por minha causa, mas agora, a esta distância, ainda bem que ficou parado. E entretanto fiquei algum tempo sem ter muitos concertos, pedi ao meu manager para não me marcar concertos, mas a verdade é que os pedidos continuavam a chegar e eu tenho imensa dificuldade em dizer que não, sou uma workaholic, mas o facto é que não estarmos a marcar concertos deu para reduzir e deu para viver alguma coisa. E eu comecei a conhecer algumas pessoas, como os produtores que produziram este disco, e deu para descobrir que havia pessoas que tinham os mesmos interesses que eu, e que falavam a mesma língua. E isso devolveu-me uma felicidade e um brilho nos olhos, porque procurávamos as mesmas coisas. E de repente quando se dá a pandemia nós parámos, eu liguei-lhes e perguntei-lhes se eles queriam vir passar a pandemia a minha casa, disse para trazerem o computador, para experimentarmos qualquer coisa, mas nunca pensei que viesse a dar neste disco, e que eu viesse inclusivamente a fazer parte da produção, a fazer parte das letras, a fazer parte da composição.”
Foi assim que tudo (re)começou. Com uma tomada de consciência de que alguma coisa estava errada. Ana Moura, que a Internet nos relembra ser “a fadista mais bem sucedida e premiada do século XXI”, precisou de sentir que lhe escapava a liberdade para se agarrar àquilo que tem de mais precioso, a voz — uma voz com “mil anos”, como certa vez lhe disse Prince, um dos seus melhores amigos da indústria. Andorinhas, lançado no final de abril, é o primeiro single do seu novo álbum, que deverá sair mais para o outono. É, também, o levantar do véu daquilo que será a nova Ana Moura.
“Eu acho que serei para sempre fadista. Sempre fui fadista e acho que serei para sempre fadista. Isso nunca se irá dissociar de mim. Aliás, este meu disco não exclui nada, é só inclusivo, e tudo o que isso representa é aquilo que me interessa, é o que tem interesse para mim, neste momento. […] Mas acho que, cada vez mais, me sinto uma artista. Porque isso está presente em todas as formas de me manifestar. Este disco está cheio de histórias, está cheio de simbologias, e tudo isso faz parte da minha arte. Não só enquanto fadista, não só enquanto cantora, mas enquanto artista. E por isso, sim, gostava que se dirigissem a mim como artista.” Podemos imaginar o Carnegie Hall, onde já atuou, com gigantescos néons onde se lê “Ana Moura, the artist formerly known as a fado singer?” Podemos, porque a vontade da cantora aponta para o infinito. Ao ter a coragem de prescindir dos serviços da editora e da agência de management com quem trabalhava há anos, e de se aventurar “a solo”, criando uma estrutura de raíz em que é ela, finalmente, a comandante-chefe, Ana deu o grito de revolta que muitos não teriam a coragem de dar. É disso mesmo que fala Andorinhas, de acordo com um comunicado oficial, “um hino à liberdade com balanço crioulo apontado ao futuro.”
Podemos, também, assumir, que é um grito de revolta… coletivo — dela e daqueles que a seguem? “Sim, é uma analogia correta. […] As pessoas apropriam-se da força que a letra e a música têm, e do sentido de liberdade, para conseguirem, cada uma delas, lutar por aquilo em que [acreditam]. A verdade é que nós… É normal às vezes perdermos as forças e deixarmos de acreditar [ou pensar] ‘Ok, isto é para aquela pessoa mas não é para mim.’ Mas a verdade é que todos nós, se formos persistentes, conseguimos lutar pela nossa liberdade e voarmos para onde quisermos. E é isso que eu quero transmitir com esta música, por exemplo. Eu agora não tenho manager, não tenho editora. E por exemplo o Prince, que sempre foi um grande amigo meu, a determinada altura deixou de ter editora e não tinha manager, ele era o manager dele próprio, e ele dizia-me: ‘Ana, faz o mesmo. Não tenhas editora…’ E eu dizia assim: ‘Tu és o Prince, eu só sou a Ana Moura ali de Portugal.’ E sempre pensei que nunca fosse conseguir. E a verdade é que numa altura supercomplicada para todos nós a minha vida mudou completamente e, de repente, com todas estas fragilidades, eu senti que era capaz. É agora. É o momento.”
Tinha de ser o momento. Moura, editado em 2015, permitiu-lhe continuar a fazer concertos e a encher salas de espetáculos um pouco por todo o mundo. Mas foi o compasso de espera entre esse álbum e esta pandemia que possibilitou que Ana se encontrasse. No meio de todo o ruído à sua volta, no meio de toda a pressão. Ela, que sempre quis escrever, e que atirava os seus rascunhos para a gaveta das coisas perdidas, é agora co-autora de várias canções. Quem diria? “Embora eu pensasse que não tinha jeito para escrever, agora aconteceu. A verdade é que tenho andado numa roda viva, não tenho parado, e precisava de estímulos, precisava de viver outras coisas, e de fazer um estudo, mais aprofundado, daquilo que era como pessoa. Porque nós, ao longo da vida, vamos descobrindo diferentes coisas em nós. E o facto de eu estar sempre em concertos, pelo mundo inteiro… Não parava. E isso também não ajudava a conseguir fazer esse reset e esse autoconhecimento mais aprofundado nesta fase da minha vida. E o facto de ter parado um tempinho antes de se ter dado a pandemia ajudou-me a ter tempo e espaço para me perceber.” E chegou a inúmeras conclusões. A mais importante é a que é um ser que vive da procura constante de inspiração — seja onde for.
O álbum deverá mostrar isso com mais precisão, mas é algo que já se sente em Andorinhas. “Na verdade acho que isso sempre esteve presente, mas [agora sente-se] mais, uma vez que estou cada vez mais livre. É isso que me interessa. Interessa-me explorar. Isso só é possível com outras pessoas. Eu não descubro coisas sozinha, fechada no meu quarto. Só cresço em contacto com os outros. Esta estrutura que estou a criar tem esse propósito, o de criar um ecossistema que me permita estar em constante revolução, a ouvi-los, a trocarmos ideias e a chegarmos a lugares novos e a explorarmos novas estradas. Eu estou sempre à procura de alguma coisa, e é isso que me estimula e me motiva.”
"Interessa-me muito a multiculturalidade. Eu sou filha disso. Somos todos, não é?" Ana Moura
Ajudou ter ao seu lado Pedro da Linha e Pedro Mafama, que produziram o disco? Ajudou. Muito. “O Pedro da Linha conheci nas Noites da Enxufada e o Mafama vi-o em concerto, fiquei logo interessada na música dele. Depois combinei encontrar-me com ele e percebi que tínhamos os mesmos interesses. E com o Pedro da Linha a mesma coisa. Toda a música que ele produzia eu vibrava com ela. E o Mafama tem também este interesse pela multiculturalidade e pelo aprofundamento da música tradicional portuguesa. Porque este meu disco tem desde influências minhotas, aliás isso sente-se no Andorinhas, os ‘ih ih’ são os gritos das cantoras minhotas, como fandango, fado, samba, kizomba, eletrónica, que depois junta tudo isto… São influências que eu revejo tanto no Mafama como no Pedro da Linha.”
A mudança de Ana Moura é quase lírica, de tão abrupta. Sente-se na voz e no sorriso que não consegue disfarçar de cada vez que menciona algo relacionado com esta “vida nova”, vê-se no look, mais moderno e arrojado, sem medo de arriscar. Mas será que, em determinado momento, hesitou, teve medo? “Eu estava tão apaixonada por aquilo que estava a fazer que estava supercrente, porque estava a ser super-honesta, e estava a acreditar nessa honestidade. Os produtores que estavam a trabalhar comigo é que me perguntavam ‘Ana, vê lá, não tens receio que o teu público estranhe?’, porque eles vêm de outra área completamente diferente e acusaram alguma preocupação comigo. Mas na verdade eu estava forte, só senti essa insegurança quando partilhei [as músicas novas] com pessoas exteriores a isto, que ofereceram alguma resistência, e foi isso que me fez ganhar forças e pensar ‘Não, eu agora vou fazer as coisas como eu quero, sem intermediários, porque se não vou estar sempre insegura.’ Porque é normal as grandes estruturas acharem que sabem o que é que a carreira de um determinado artista deve ser, mas eu acho que só o próprio artista é que pode ter a certeza disso, e foi isso que me fez dar este passo.” Um passo em busca de uma multiculturalidade que lhe está no sangue.
“Interessa-me muito a multiculturalidade. Eu sou filha disso. Somos todos, não é? É isso que me interessa e é isso que este disco reflete. O videoclipe, de facto, está cheio de simbologias: as andorinhas, por exemplo, são pássaros que vêm do norte de África e que anunciam o bom tempo. A minha família é multicultural: a minha mãe é angolana, o meu pai nasceu em Amarante, o pai da minha mãe é transmontano, a mãe da minha mãe é angolana, com pai alentejano, e é isso que me interessa, a multiculturalidade, e também transmitir aquilo que sempre foi a minha vida e a minha infância. […] Desde miúda que sempre tive uma esperança enorme e sempre corri atrás de todos os meus sonhos. Sou uma pessoa que acredita nas coisas em que a maior parte das pessoas não acredita, e era isso que eu queria transmitir também com o facto de haver essa conexão entre mim e as crianças, que dão início ao vídeo e que percorrem as açoteias. No final elas encontram-me e estamos ambas a olhar para o mesmo lugar, que é o futuro.”
O sucesso, agora, é medido de outra forma. “Hoje em dia ser bem sucedida é ter ganho esta coragem que eu nunca pensei ter, e sentir-me livre para fazer as minhas próprias escolhas. Isso para mim é que é ser bem sucedida. E também, obviamente, ter criado uma relação incrível com o meu público. Isso também me deu segurança. Já não gravo há imenso tempo, andei a fazer concertos e tinha as salas sempre cheias… […] Porque hoje tudo é efémero, as pessoas cansam-se rapidamente das músicas. […] O sucesso é isto, é ter criado esta relação com o público que me dá também segurança, porque foram eles que me aceitaram com todas as minhas características. Por exemplo, eu sou uma pessoa tímida e há tempos perguntavam-me se já não era tímida. Acho que continuo a ser tímida, aquilo que ganhei foi segurança, amadurecimento, mas a timidez é um traço de personalidade que acho que não se perde.” A única coisa que se perde é o tempo. Desde que começou a cantar no Senhor Vinho, ainda adolescente, até agora, Ana Moura nunca parou. “Eu não me arrependo de nada, porque foi o que me permitiu chegar aqui. A única coisa que senti nos últimos tempos foi, pelo facto de ter perdido algumas pessoas, pensar que podia ter passado mais tempo com elas. Mas isso acho que vai acontecer com toda a gente. Nós achamos sempre que temos tempo.”
A única coisa que se nos escapa é a inocência. A cantora fala abertamente das suas referências musicais, longe do estereótipo intelectual que normalmente se associa a um artista. Ultimamente, conta-nos, tem ouvido C. Tangana, Caetano Veloso, Portishead, Jorja Smith, La Mala Rodríguez… E poderia ouvir pop, no carro, de vidros abertos, sem se sentir constrangida. “Isso para mim é liberdade. Durante imenso tempo, nos tempos de pré-adolescente, os meus amigos gostavam de um certo tipo de música e eu gostava [de outro] e sentia ‘Ok, eles acham isto horrível.’ Todos nós já passámos por isso. Mas isso para mim é liberdade, nós respondermos naturalmente a tudo aquilo que gostamos ou não gostamos. Se eu não entender uma obra de arte incrível, se ela não me passar nada, eu vou ter de ser sincera e dizer que ela não me está a dizer nada, e se calhar vou ter de passar por um percurso até ela me dizer alguma coisa. Ou nunca. E o mesmo com a música. Se uma música de que a maior parte das pessoas não gosta, se ela me disser [alguma coisa], eu quero beber dela.. Eu tenho muito receio de perder o deslumbramento. Eu quero agarrar-me a todas as coisas para ir buscar a beleza delas. Tudo o que me possa trazer beleza, eu quero procurar, mesmo que não entenda à primeira. […] Há coisas bonitas em tudo, nós temos é de estar disponíveis para ver a beleza das coisas. E é isso que eu quero sempre alimentar.”
Este artigo foi originalmente publicado na edição de junho, The Music Issue, da Vogue Portugal, disponível na nossa loja online.
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