Falar de arte, Moda, e da arte que é a Moda, é falar de – e com – Andrew Bolton, o homem por detrás de algumas das maiores exposições de Moda no mundo. Não queremos estragar o efeito surpresa, mas foi precisamente isso que fizemos.
Falar de arte, Moda, e da arte que é a Moda, é falar de – e com – Andrew Bolton, o homem por detrás de algumas das maiores exposições de Moda no mundo. Não queremos estragar o efeito surpresa, mas foi precisamente isso que fizemos.
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Andrew Bolton © Courtesy of The Metropolitan Museum of Art/Pari Dukovic/Trunk Archive
Andrew Bolton © Courtesy of The Metropolitan Museum of Art/Pari Dukovic/Trunk Archive
Há um determinado momento em The First Monday in May – o documentário de 2016 de Andrew Rossi que nos leva aos bastidores da Met Gala, evento anual que André Leon Talley define, muito simples e resumidamente, como o Superbowl da indústria da Moda – em que Anna Wintour declara que “é raro encontrarmos alguém tão criativo que consegue mudar a forma como olhamos para a arte”. Esse alguém é, se dúvidas restassem, Andrew Bolton.
São onze da manhã em Nova Iorque (quatro da tarde em Lisboa, numa sexta-feira soalheira de inverno) quando o curador do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art atende um telefonema vindo do outro lado do Atlântico. “Estamos muito entusiasmados”, diz a encantadora voz a oeste da linha depois de lhe confessar que seria difícil imaginar uma edição dedicada à arte sem o visionário que nos deu, em mais de uma mão cheia de anos, AngloMania (2006), Alexander McQueen: Savage Beauty (2011), China: Through the Looking Glass (2015), Rei Kawakubo/Comme des Garçon; Art of the In-Between (2017) e Camp: Notes on Fashion (2019).
Da quase interminável lista de questões, e porque o tempo é tudo menos semelhante a ela, surge a primeira e mais óbvia: porquê a Moda? “Acho que o meu interesse veio, provavelmente, das revistas de estilo que estavam a emergir nos anos 80. Revistas como a The Face, a i-D e a Blitz”, recorda Andrew Bolton, o englishman in New York que passou a sua infância em Lancashire, Reino Unido. “Os anos 80 em Inglaterra foram uma época muito rica para a Moda, particularmente para o street style e para o estilo das subculturas. Foi entusiasmante estar em Inglaterra nessa altura, e ver o impacto do estilo das subculturas na Moda. Inicialmente, foi isso que realmente despertou o meu interesse em Moda.” O que se seguiu está bem documentado nesse enorme museu que é a Internet – aos 17 anos, e numa altura em que todos lhe perguntavam o que queria fazer, um jovem Andrew Bolton já sonhava com a hipótese de, um dia, vir a ser curador do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art. Mas os trilhos que o acabaram por levar até à Universidade de East Anglia, em Norwich, pareciam indicar um rumo um pouco diferente. “Na verdade, estava no caminho para me tornar um académico”, conta Bolton quando lhe pergunto sobre a carreira de curador.
"Todos os objetos têm uma história para contar, e que é o curador que tem o papel de as revelar ao público."
“Estava a fazer o meu PhD na Universidade de East Anglia quando surgiu uma oportunidade de trabalho no Victoria and Albert Museum. Decidi candidatar-me e tive a sorte de ficar. A minha intenção era trabalhar um ano e, depois disso, voltar aos meus estudos académicos. Mas apaixonei-me pela curadoria, pela ideia dos objetos e das histórias, pela ideia de que todos os objetos têm uma história para contar, e que é o curador que tem o papel de as revelar ao público. Acabei por me apaixonar pela cultura material, e pelas histórias que ela pode contar.” Essa mesma paixão é uma que se sente na voz de Andrew, que permaneceu nove anos no Victoria and Albert Museum, em Londres, onde ocupou a posição de Curatorial Assistant in the Far Eastern Department antes de assumir o cargo de Senior Research Fellow in Contemporary Fashion.
“De certa forma, foi uma transição”, explica o curador quando lhe pergunto sobre a mudança que aconteceu em 2002, ano em que transitou para o Metropolitan Museum of Art como Associate Curator do Costume Institute. “O V&A é um museu de artes decorativas. A ênfase que é dada à Moda e à cultura material é muito focada nos estudos culturais, na interpretação da cultura material através dos estudos culturais. Por isso, foi uma mudança.” Desde então, os dezoito anos no Metropolitan Museum of Art passaram-se mais ou menos assim: em 2006, Andrew Bolton é nomeado curador da instituição; dez anos mais tarde, sucede a Harold Koda como Curator in Charge; e em março de 2018, altura em que a posição foi subvencionada, é nomeado Wendy Yu Curator in Charge of The Costume Institute.
© Instagram.com/metmuseum
© Instagram.com/metmuseum
Fast forward para o hoje e o agora. Debaixo da manga dos fatos exímios que associamos à sua imagem discreta, Andrew Bolton guarda algumas das exposições mais vistas do museu nova-iorquino – entre elas está Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination, de 2018, que contou com um número recorde de 1.65 milhões de visitantes. Não é difícil perceber o appeal das exposições que contam com o dedinho mágico de Bolton, um homem que, nos poucos minutos de conversa, se revela um contador de histórias nato.
Mas qual foi a sua favorita, até hoje? “Gostei de todas elas, ainda que de formas diferentes”, confessa o curador. “Penso que a exposição que provavelmente foi uma espécie de mudança de paradigma foi a do Alexander McQueen. Acho que foi a primeira vez que até os historiadores de arte mais conservadores começaram a olhar para a Moda como uma forma de arte. Penso que McQueen conseguiu alterar a perceção das pessoas sobre a Moda e as ideias que as pessoas têm sobre os designers. Para mim, foi uma exposição que mudou o paradigma. Também adorei a exposição Schiaparelli and Prada, que foi uma espécie de conversa ficcional entre uma designer falecida e uma designer viva. Penso que foi muito interessante. Apesar de Schiaparelli e Prada terem inspirações muito diferentes, e abordagens muito diferentes, chegaram as duas a conclusões estéticas muito semelhantes. Para mim, essa exposição foi uma revelação. E depois AngloMania [o primeiro trabalho a solo de Bolton], que foi uma exposição onde mostrámos, lado a lado, peças de vestuário, trajes históricos e Moda contemporânea. Penso que aquilo que diferencia as nossas exposições é esta junção entre o antigo e o novo, e a AngloMania foi uma exposição onde articulámos bastante essa metodologia.”
E a mais desafiante? “Todas elas apresentam desafios diferentes”, defende Bolton. “Quando achas que conseguiste encontrar um modelo para a exposição de Moda, o tema ganha vida própria. Aquilo que tento fazer é ouvir o tema e deixar que o tema tenha essa vida própria. Penso que tento fazer isso com todas as nossas exposições, ter uma abordagem leve e manter um final aberto. Para mim, é importante não ser demasiado maçudo com os argumentos que expomos, e é importante apresentar o tema de uma forma ligeira para que as pessoas possam pensar nele da forma que entenderem. Suponho que o desafio seja sempre encontrar um equilíbrio entre a interpretação no que diz respeito à curadoria e a interpretação subjetiva.”
"A Moda é, muito basicamente, a cultura do tempo. É ditada pelo tempo, reflete o espírito do tempo e é, ao mesmo tempo, ditada pelo espírito do tempo."
Por falar em desafios: estamos a poucos meses da inauguração de About Time: Fashion and Duration, a próxima exposição do Costume Institute que irá abrir portas no dia 4 de maio deste ano [devido ao surto provocado pelo novo coronavírus, a inauguração desta exposição foi adiada para o dia 29 de outubro de 2020]. O que é que podemos esperar? “Sabes, esta foi bastante desafiante”, conta Andrew Bolton. “Tudo começou com a celebração dos 150 anos do Met, e com as diversas iniciativas do museu que estão a colocar o foco nas obras de arte pertencentes à coleção do Met. Para mim, foi mesmo importante olhar para a nossa coleção, examiná-la uma vez mais e apresentar uma exposição que fosse quase exclusivamente baseada na nossa coleção. Queríamos partilhar a extensão dela e, ao mesmo tempo, criar um tema que fosse atual. Penso que tentamos fazer isso com todas as nossas exposições, encontrar um tema que tenha relevância para o zeitgeist contemporâneo.”
Haverá algo mais apropriado do que o tempo? “A Moda é, muito basicamente, a cultura do tempo. É ditada pelo tempo, reflete o espírito do tempo e é, ao mesmo tempo, ditada pelo espírito do tempo. E penso que estamos todos a ter dificuldades com a efemeridade da Moda, e com as características que definem a Moda.” É assim que surge About Time: Fashion and Duration? “Queria focar-me numa exposição que olhasse para a ideia do tempo e do impacto do tempo na Moda, algo que é bastante atual. Aquilo que fizemos foi uma espécie de linha temporal gémea, ou seja, duas linhas temporais. Uma delas é bastante tradicional e linear, e explora a história da Moda de 1870 até 2020, sendo que 1870 foi o ano em que o Met foi fundado. Mas também vamos apresentar uma linha cronológica alternativa, que chamamos de interrupção, isto é, uma linha temporal que interrompe a linearidade da linha principal, e que permite que repensemos a ideia do tempo na Moda, e o conceito de duração. De certa forma, é uma exposição altamente conceptual, com um número de linhas temporais que nos ajudam a olhar para a Moda de forma diferente.”
© Instagram.com/metmuseum
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Enquanto conversamos sobre o tempo, recupero algo que Andrew Bolton disse em entrevista à edição norte-americana da Vogue em 2016: “Esta ideia de Moda 24/7 [a abreviação da expressão 24 horas por dia, 7 dias por semana] – acho que não é uma coisa boa. Não encoraja os designers a darem um passo atrás e terem ideais originais.” Numa altura em que se torna quase impossível falar sobre Moda sem tropeçar na palavra sustentabilidade, o que é que o curador vê no futuro da indústria? “Isso é algo que tem estado muito presente na minha mente, e acredito que também esteja presente na mente dos designers, esta noção do ritmo da Moda. Penso que parte da ideia por detrás desta exposição [About Time: Fashion and Duration] é promover a ideia de abrandar a Moda, de sermos mais ponderados em relação à produção e ao consumo de Moda, e dar aos designers tempo para refletirem sobre a sua criatividade, para desenvolverem ideias que sejam duradouras e resistentes.”
Numa espécie de reflexão interior que o mundo consegue testemunhar em tempo real, Bolton continua. “A efemeridade é uma coisa muito poderosa na Moda, mas podes abraçar a efemeridade da Moda de uma forma que seja mais ponderada e mais sustentável. Penso que os novos designers estão a caminhar nessa direção de sustentabilidade, não só no que diz respeito aos materiais, mas também no que toca a ideias e conceitos. Para mim, a ideia de abrandar o ritmo da Moda permite-nos pensar e refletir sobre o valor da criatividade na indústria, e isso é muito importante.” Por falar no valor da criatividade – algo que não falta a Andrew Bolton e à lista de blockbusters que imaginou e concretizou para o Met –, onde é que o curador encontra inspiração para as suas exposições? “Em todo o lado. Acho que aquilo que tento fazer, acima de tudo, é ouvir o zeitgeist e pensar numa ideia ou num tema que considero ser relevante para uma audiência contemporânea, e para os visitantes contemporâneos do museu. De certo modo, é esse o meu objetivo. Em primeiro lugar, aquilo que tenho em mente é pensar numa ideia que fará com que as pessoas pensem sobre a Moda de forma diferente, uma ideia que as envolva e que as inspire. É importante encontrar um equilíbrio entre criar uma exposição que seja educativa, esclarecedora e elucidativa, e que, ao mesmo tempo, consiga entreter. Penso que educação e entretenimento não são noções contraditórias, mas sim complementares. Todas as exposições deviam ter ambas. Acho que muitos dos curadores mais conservadores têm esta ideia de que o entretenimento não é digno de estar num museu, mas a verdade é que é. Uma exposição deve entreter, deve inspirar os visitantes tanto a nível visual como intelectual. Acho que este equilíbrio é muito importante.”
"Penso que educação e entretenimento não são noções contraditórias, mas sim complementares. Todas as exposições deviam ter ambas."
Poderá ser esta a explicação para o porquê de, nos últimos anos, termos testemunhado um número exorbitante de exposições dedicadas ao fantástico tema da Moda em todo o mundo? “Acho que as pessoas estão a perceber a centralidade da Moda na cultura contemporânea”, defende Bolton quando o questiono sobre este crescente interesse. “A Moda é um tema tão complexo, e penso que o poder da Moda está no facto de conseguir refletir o zeitgeist. Acho que isso é muito apelativo para as audiências.” Isso e o fator Internet, essa força transformadora que mudou para sempre a indústria e todas as suas facetas. “A Internet veio permitir que a Moda fosse muito mais acessível, e de certa forma mais democrática, a uma audiência maior, uma audiência global. E isso tem um impacto tão positivo no nosso campo. Claro que representa novos desafios para os curadores, porque quem nos visita tem um conhecimento muito maior sobre Moda. Mas acho que tudo se resume ao facto de a Moda ser tão central às nossas vidas e de poder ser tão complexa no que toca à identidade, ao género, à sexualidade, às raças e etnias. A Moda sempre foi um veículo para explicar significados mais profundos sobre todas estas questões, e acho que as pessoas estão a começar a perceber o poder da Moda dentro da cultura, e a sua importância central nas nossas vidas.”
Conversar com Andrew Bolton sobre esta indústria é ter um passe de livre acesso, ainda que temporário, a um mundo onde a Moda parece não perder o seu entusiasmo. A um mundo onde podemos aprender tanto com o passado como com o presente. A um mundo onde cada casaco, cada bolso e cada botão têm uma história única para contar. Não resisto a perguntar-lhe: ao longo da sua carreira, qual foi a peça de roupa que lhe tirou o fôlego? “Mais uma vez, tenho de voltar à exposição do Alexander McQueen. A oportunidade de visitar os arquivos e escolher aquelas peças foi de facto comovente. Aquilo que era extraordinário no McQueen, e penso que não existe nenhum designer como ele, era a capacidade que ele tinha de evocar estas emoções viscerais em ti. Ele sempre disse que não queria saber se as pessoas gostavam ou não gostavam de Moda, desde que tivessem uma reação. Acho que esse era o poder dele, e desde então não voltou a existir nenhum designer como ele. Foi incrível homenagear o legado dele.”
Alexander McQueen: Savage Beauty, 2011 © Getty Images
Alexander McQueen: Savage Beauty, 2011 © Getty Images
Incrível é uma palavra que parece definir o trabalho de Andrew Bolton e os seus dezoito anos como curador do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, e um adjetivo tão bem usado nos documentos que envolvem o seu nome e as suas exposições – no mesmo artigo da edição norte-americana da Vogue, de 2016, Nathan Heller define Bolton como “um talento que aparece uma vez numa geração, que consegue olhar para 200 anos de história de Moda, escolher 100 peças e organizá-las numa exposição que famílias de Duluth [uma cidade do Estado de Minnesota] voam para ver e que experts exaustos consideram totalmente fresca”.É a prova de que o entretenimento e a educação podem não só coexistir, como podem ser também uma dupla absolutamente imbatível – e de que Andrew Bolton, como escreveu o The New York Times em 2015, é mesmo o “storyteller in chief” do Met.
O curador ri-se quando refiro este título e lhe pergunto quais são as melhores histórias que guarda das quase duas décadas com o museu. “Acho que são mesmo os objetos. Tenho tido tanta sorte em ter acesso não só aos arquivos dos designers, mas também ao arquivo do Met. Sinto que a Moda é tão rica em histórias, cada peça de vestuário é tão rica em histórias, e nós temos a responsabilidade de as revelar e de as tornar explicitas para uma audiência. Para mim, a felicidade sempre esteve em observar os objetos, encontrar as suas histórias e evocar as suas memórias.”
Artigo originalmente publicado na edição de março de 2020 da Vogue Portugal.
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