Em outubro de 2017, dois artigos publicados no The New York Times e na New Yorker expuseram uma série de acusações contra Harvey Weinstein, entre elas má conduta, assédio e agressão sexual, e a denúncia de violação por parte de três mulheres. Dois anos depois do despertar dos movimentos #MeToo e Time’s Up, a indústria cinematográfica está diferente. Mas será que mudou assim tanto?
Em outubro de 2017, dois artigos publicados no The New York Times e na New Yorker expuseram uma série de acusações contra Harvey Weinstein, entre elas má conduta, assédio e agressão sexual, e a denúncia de violação por parte de três mulheres. Dois anos depois do despertar dos movimentos #MeToo e Time’s Up, a indústria cinematográfica está diferente. Mas será que mudou assim tanto?
“Há duas décadas, o produtor de Hollywood Harvey Weinstein convidou Ashley Judd até ao hotel Peninsula Beverly Hills, para um encontro que a jovem atriz acreditava ser um pequeno-almoço de negócios. Em vez disso, e como a própria disse numa entrevista, pediu que ela subisse até ao quarto dele, onde apareceu vestido num robe e perguntou se lhe podia dar uma massagem, ou se ela podia assistir enquanto ele tomava um duche. ‘Como é que sais de um quarto o mais rápido possível sem alienar o Harvey Weinstein?’, disse Judd sobre aquilo que pensou na altura.” No dia 5 de outubro de 2017, Hollywood – e o mundo inteiro – focou toda a sua atenção nestas palavras.
Depois de décadas de rumores, alegações e acordos varridos para debaixo do tapete, as jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey tinham conseguido, pela primeira vez e on the record, contar a história brutal das mulheres que, ao longo dessas mesmas décadas, tinham sido vítimas nas mãos de Harvey Weinstein.
A investigação conduzida por Kantor e Twohey para o The New York Times não era apenas explosiva – era o começo de tudo. Cinco dias depois da reportagem Harvey Weinstein Paid Off Sexual Harassment Accusers for Decades ter exposto acusações de assédio e abuso sexual contra o produtor, a New Yorker dava mais um passo no caso. “No decorrer de uma investigação de dez meses, treze mulheres disseram-me que, entre os anos 1990 e 2015, foram sexualmente assediadas ou agredidas por Harvey Weinstein. As suas alegações corroboram e sobrepõem-se às revelações do Times, e também incluem declarações bem mais sérias”, escreveu o jornalista Ronan Farrow no artigo From Agressive Overtures to Sexual Assault: Harvey Weinstein’s Accusers Tell Their Stories.
“Três das mulheres – entre elas [a atriz Asia] Argento e uma ex-aspirante a atriz chamada Lucia Evans – disseram-me que Weinstein as violou, forçando o ato de dar ou receber sexo oral, ou forçando o sexo vaginal. Quatro mulheres disseram que experienciaram contactos físicos indesejados que se podiam classificar como agressão. Num áudio captado durante uma operação secreta do New York Police Department em 2015, Weinstein admite ter apalpado uma modelo filipina-italiana chamada Ambra Battilana Gutierrez, descrevendo o comportamento como algo a que o próprio está ‘habituado’. Quatro das mulheres que entrevistei citaram encontros durante os quais Weinstein se expôs ou se masturbou em frente a elas. Dezasseis antigos e atuais executivos e assistentes das empresas de Weinstein declararam que assistiram a, ou tinham conhecimento de avanços sexuais indesejados ou contactos físicos durante eventos associados com os filmes de Weinstein e no local de trabalho. (...) Todos eles disseram que o comportamento [de Weinstein] era amplamente conhecido tanto na Miramax como na Weinstein Company.”
Não era a primeira vez que o dedo da má conduta sexual era apontado a figuras públicas do sexo masculino com poder e influência. Em outubro de 2016, um mês antes das eleições presidenciais nos Estados Unidos da América, o The Washington Post teve acesso a um vídeo de 2005 em que Donald Trump e Billy Bush, na altura apresentador do programa televisivo Access Hollywood, conversavam sobre mulheres com termos vulgares. “Sabes, sinto-me automaticamente atraído pela beleza – começo a beijá-las. É como um íman. Só beijar. Nem sequer espero. Quando és uma estrela, elas deixam-te fazer isso. Podes fazer qualquer coisa.” As palavras do agora presidente dos Estados Unidos vão mais além quando o mesmo diz: “Agarra-as pela coisa [em inglês, a infame frase “grab ‘em by the pussy”]. Podes fazer qualquer coisa.”
Horas depois do vídeo ter sido publicado, Trump admitiu que o mesmo era verdadeiro e pediu desculpa pelo que disse, insistindo que as palavras eram apenas “conversa de balneário.” Um ano depois, em abril de 2017, Bill O’Reilly perdeu a sua posição na Fox News depois de uma investigação do Times, conduzida por Emily Steel e Michael Schmidt, ter exposto a forma como o apresentador e a empresa tinham escondido repetidas alegações de assédio sexual e outros comportamentos inapropriados, e as provas de que O’Reilly e a Fox News tinham chegado a acordos de milhares de dólares com pelo menos cinco mulheres, de forma a silenciar acusações de abuso verbal, comentários obscenos e abordagens (românticas ou sexuais) indesejadas.
No verão desse mesmo ano, depois de dezenas de mulheres terem acusado Bill Cosby de assédio sexual, o ator e comediante foi julgado em tribunal por uma alegada agressão sexual a Andrea Constand, em 2004. Em setembro de 2018, Cosby recebia uma sentença de três a dez anos de prisão. Não era a primeira vez que o dedo da má conduta sexual era apontado a figuras públicas do sexo masculino com poder e influência – mas o efeito Weinstein é uma onda que continua a lavar a costa com a força de um verdadeiro tsunâmi.
Nos dias que se seguiram às investigações jornalísticas que conseguiram expor o caso de Weinstein, o mundo acordou para um debate há séculos ignorado. Começámos a ter um importante diálogo sobre a má conduta sexual tantas vezes praticada à luz do dia e a dinâmica de poder entre géneros que tantas vezes permite esse tipo de comportamentos. Começámos a perceber aquilo que a palavra “não” realmente significa. E no dia 16 de outubro de 2017, um movimento global nasceu.
No Twitter, Alyssa Milano publica o hashtag #MeToo. Inspirada no slogan criado pela ativista Tarana Burke em 2006, a atriz inspira centenas de mulheres e homens a partilhar, corajosa e abertamente, as suas próprias experiências. Rose McGowan, Gwyneth Paltrow, Angelina Jolie, Cara Delevingne, Léa Seydoux, Rosanna Arquette, Terry Crews, Brendan Fraser, Lupita Nyong’o, Evan Rachel Wood e Annabella Sciorra, entre tantos nomes de Hollywood e mais além, seguiram o exemplo – e quem não partilhava as experiências partilhava a solidariedade.
Amy Schumer, Emma Watson, Viola Davis, Blake Lively, Eva Longoria, Elizabeth Blanks e Katie Holmes, entre tantos nomes de Hollywood e mais além, saíram à rua, ergueram cartazes e usaram o rosa do pussy hat. Cate Blanchett, Marion Cotillard, Natalie Portman, Michelle Williams, Nicole Kidman, Elizabeth Moss e Meryl Streep vestiram-se de preto e, acompanhadas por ativistas do movimento, transformaram a passadeira vermelha numa plataforma de protesto. No dia 6 de dezembro de 2017, a revista Time elege aquelas e aqueles que “quebraram o silêncio” como Person of the Year.
Nem um mês depois, no dia 1 de janeiro de 2018, mais de 300 mulheres na indústria do entretenimento dizem “basta” e criam o movimento Time’s Up – e com ele um fundo de defesa judicial destinado a sobreviventes de assédio sexual. Depois chegou o dia 25 de maio de 2018. Harvey Weinstein, que continua a negar todas as acusações de relações sexuais não-consensuais, entrega-se à polícia de Nova Iorque. A 27 de setembro de 2018, Christine Blasey Ford levanta a mão em tribunal e testemunha contra Brett Kavanaugh. Apesar das acusações de agressão sexual, Kavanaugh é eleito ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América. Uma vitória, um retrocesso – e uma garantia de que a luta ia continuar.
Para Hollywood e mais além
“Quero dar-vos alguma perspetiva. Gostava de ter a honra de ver todas as mulheres nomeadas em todas as categorias levantarem-se comigo nesta sala, esta noite. As atrizes – Meryl, se tu o fizeres, toda a gente o fará – as realizadoras, as produtoras, as diretoras, as guionistas, as cinematografas, as compositoras, as letristas, as designers. Vamos lá! Olhem à vossa volta. Olhem à vossa volta, senhoras e senhores, porque todas temos histórias para contar e projetos que precisam de financiamento. Não falem sobre isso connosco durante as festas que vão acontecer esta noite. Convidem-nos aos vossos escritórios daqui a uns dias, ou venham vocês aos nossos, como preferirem, e nós vamos explicar-vos tudo [sobre as nossas histórias e os nossos projetos]. Tenho duas palavras para vocês esta noite, senhoras e senhores: inclusion rider.”
Um ano depois do movimento #MeToo se ter tornado viral, o discurso da atriz Frances McDormand depois de ter sido premiada com o Óscar de Melhor Atriz pelo seu papel em Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, foi um reminder daquilo que faltava alcançar – e, hoje, uma memória à qual regressamos sempre que pensamos naquilo que, efetivamente, mudou.
Na indústria do entretenimento, o Festival de Cinema de Cannes foi um dos primeiros a celebrar o compromisso de um programa que celebra a igualdade de género; a Warner Brothers tornou-se o primeiro grande estúdio de Hollywood a anunciar uma política de diversidade em toda a empresa; e o sindicato Screen Actors Guild anunciou um código de conduta que não só prevê o fim de reuniões profissionais e castings em casas ou quartos de hotel, como define também o termo assédio sexual. Mas o impacto vai muito além de Hollywood.
Nos EUA, diversos estados baniram o uso de acordos de confidencialidade em casos de má conduta, agressão, assédio ou discriminação sexual – por outras palavras, o tipo de acordos que permitiu que figuras poderosas como Weinstein conseguissem “comprar” o silêncio das suas vítimas. Um exemplo? Zelda Perkins, uma ex-assistente do produtor que quebrou um acordo de confidencialidade assinado em 1998. “Os últimos 20 anos foram angustiantes, não pude falar, não pude ser eu mesma”, disse Perkins numa entrevista à BBC.
“Apesar de legal, o processo pelo qual passei foi imoral.” Para além desta proibição, uma série de estados norte-americanos não só expandiram as suas leis de assédio sexual, de formaa proteger trabalhadores independentes, voluntários e estagiários, como alargaram também o treino e educação sobre assédio sexual. Já o fundo de defesa judicial do Time’s Up conseguiu ajudar mais de 3.600 pessoas a lutar pela justiça nos seus próprios casos. A extensa lista inclui Brittany Hoyos, uma jovem que, aos 16 anos, foi vítima de avanços sexuais indesejados por parte de um colega de trabalho mais velho, num restaurante do McDonald’s em Tucson, no Arizona. “Só porque tens um emprego que é considerado de baixo nível aos olhos da sociedade, não quer dizer que tenhas de passar pelos mesmos obstáculos e desafios que eu tive de superar”, disse Hoyos ao The New York Times. “Se tivesse que resumir numa única palavra, a diferença que vemos [desde que o #MeToo se tornou viral] é o facto de existir uma urgência”, defendeu Tina Tchen, presidente e CEO do Time’s Up, à Teen Vogue.
Televisão, cinema e estatuetas douradas
“Na vida, existem consequências. E, como mulher, posso dizer que, muitas vezes, as consequências não são suficientes.”A frase é proferida por Alex Levy, a personagem interpretada por Jennifer Aniston em The Morning Show, no primeiro episódio da série que se estreou a 1 de novembro de 2019. Protagonizado por Aniston, Reese Witherspoon e Steve Carell, o original da Apple trouxe ao pequeno ecrã (perdão, aos serviços de streaming) uma história um tanto familiar – isto é, a história de um apresentador de televisão que é despedido de um programa da manhã no seguimento de acusações de má conduta sexual no local de trabalho.
Apesar de Aniston insistir que a série é um trabalho puramente ficcional, o enredo de The Morning Show foi completamente reescrito depois de Matt Lauer ter sido despedido da NBC no seguimento de alegações de conduta sexual imprópria, fazendo da série um dos primeiros produtos criativos da televisão pós #MeToo – da cultura de cancelamento ao impacto que este tipo de escândalos tem não só nas empresas, mas também nos seus trabalhadores, sem esquecer as dinâmicas de poder no local de trabalho, os valores profissionais versus os interesses superiores, e os conflitos pessoais e coletivos de saber e não dizer, os paralelismos com a realidade são impossíveis de ignorar.
Já na Netflix, a segunda temporada do sucesso Sex Education explora a questão do assédio sexual e do trauma que o mesmo pode causar quando, no terceiro episódio, a personagem Aimee (interpretada pela atriz Aimee Lou Wood) percebe que um homem se está a masturbar em cima dela num autocarro. “Penso que todas as mulheres já experienciaram algum tipo de micro agressão sexual”, disse Aimee à Glamour. “Somos frequentemente treinadas para pensar que é normal, que temos de sorrir e andar para a frente. (...) Sentimos que não podemos falar sobre isso ou que devemos levar a situação na desportiva e rir-nos sobre ela. Olhamos para estes casos como pequenas histórias engraçadas em vez de lidarmos com o facto de que isto nos pode traumatizar a algum nível.”
Se dúvidas restassem de que o impacto do #MeToo se começa a fazer sentir cada vez mais nas camadas criativas, a indústria cinematográfica – ou o sítio onde tudo começou – tem respondido ao movimento com uma série de filmes que comprovam a importância de falar abertamente sobre má conduta, assédio e agressão sexuais no grande ecrã. Protagonizado por Charlize Theron, Nicole Kidman e Margot Robbie, o recém-estreado (e altamente empoderador) Bombshell inspira-se no caso real de Roger Ailes, o antigo presidente e CEO da Fox News acusado de assédio sexual por mais de 20 mulheres em 2016. À exceção de Robbie, que interpreta uma personagem fictícia, Theron e Kidman reencarnam Megyn Kelly e Gretchen Carlson, duas figuras centrais na denúncia do comportamento impróprio de Ailes.
Da forma mais literal à mais nuanced, o impacto das questões levantadas pelo movimento promete continuar no Festival de Sundance, com as estreias de Promising Young Woman – um thriller protagonizado por Carey Mulligan que, segundo a edição norte-americana da Vogue, é “o filme de vingança que a era #MeToo merece” – e The Assistant – um filme inspirado e protagonizado por Julia Garner que explora os abusos físicos e psicológicos em Hollywood.
Se é verdade que o movimento tem vindo a inspirar diversas séries e longas-metragens – sem referir os mais diversos livros e documentários pós #MeToo -, também é impossível ignorar o elefante que parece não querer sair da sala. “Na segunda-feira, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas revelou a lista de nomeados aos Óscares e, sem surpresas, é maioritariamente caucasiana e masculina”, podia ler-se num artigo do The New York Times referente às nomeações deste ano. “Um total de zero mulheres foram nomeadas à categoria de Melhor Realização, deixando de fora diversos títulos aclamados pela crítica, que geraram grandes sucessos de bilheteira, como Little Women de Greta Gerwig, The Farewell de Lulu Wang, e Hustlers de Lorene Scafaria.
A maior parte dos front-runners a Melhor Filme tem um elenco maioritariamente masculino, com as mulheres à margem da ação, a desempenharem papéis ornamentais. A diversidade racial não foi melhor: à exceção de Cynthia Erivo em Harriet, todos os nomeados a Melhor Ator e todas as nomeadas a Melhor Atriz eram caucasianos.” Naturalmente – e tendo em conta que a primeira e única mulher a receber um Óscar de Melhor Realização foi Kathryn Bigelow, em 2010, pelo filme The Hurt Locker -, as nomeações ficavam aquém de todas as expectativas e vitórias dos últimos dois anos. “Existe uma crença sistemática de que as histórias sobre homens importam mais do que as histórias sobre mulheres”, disse a produtora Amy Pascal ao The New York Times. “Não acredito que isso seja verdade.”