Prever o futuro da Beleza é simples. Pega-se na nostalgia de um passado mais-que-perfeito e juntam-se os indicativos do tempo presente. A verdade é que o lugar onde estamos diz muito de onde viemos – mas diz ainda mais sobre para onde vamos. E se os próximos vinte anos trouxerem tanto ao setor cosmético como as últimas duas décadas, então vale a pena ficar para acompanhar a jornada.
Prever o futuro da Beleza é simples. Pega-se na nostalgia de um passado mais-que-perfeito e juntam-se os indicativos do tempo presente. A verdade é que o lugar onde estamos diz muito de onde viemos – mas diz ainda mais sobre para onde vamos. E se os próximos vinte anos trouxerem tanto ao setor cosmético como as últimas duas décadas, então vale a pena ficar para acompanhar a jornada.
O ano era 2002. O segundo filme de Harry Potter batia recordes de bilheteira e Avril Lavigne acabava de lançar o seu álbum de estreia. Tirando isso, não foi um ano muito feliz para a cultura popular. Justin Timberlake e Britney Spears oficializaram o fim da sua relação e Ben Affleck foi votado o homem mais sexy do mundo pela revista People. Águas passadas, digamos. No campo das tendências de Beleza, eram ainda visíveis os vestígios da mudança de milénio. Christina Aguilera abençoava cada passadeira vermelha com os seus lábios reluzentes e Britney Spears entrava para a história ao lado de Michael Jackson nos MTV Video Music Awards de 2002. Havia a ocasional assombração da sombra de olhos branca, por vezes presente no canto interior do olho (Kim Kardashian, estamos a pensar em ti), tal como havia quem preferisse uma pálpebra mais colorida, pintada em tons de azul ou violeta. Era 2002, e isso é uma justificação por si só. Não se falava de sustentabilidade ou inclusão, mas falava-se do look de Paris Hilton no seu 21.o aniversário. E isso não é melhor nem pior, é uma reflexão do espírito do tempo. Um tempo que mudou, tal como mudaram as vontades de quem o habita. O que fizeram vinte anos à Beleza? O que mudou? E o que é que se manteve intacto? Mas, acima de tudo, para onde vamos? Há um belo mundo novo para descobrir.
Em vinte anos, as pessoas mudaram. Porque as pessoas mudam, é natural, mas a mudança que se desenrolou ao longo das últimas duas décadas trouxe algo que o setor cosmético ainda não conhecia: uma nova dinâmica de poder. “Se olharmos para a indústria da Beleza há vinte, trinta, cinquenta anos, as marcas tinham todo o poder – e as revistas também. Sentavam-se no seu escritório e diziam: ‘Ok, vamos dizer a toda a gente que é isto que está a acontecer.’” Jeanine Recckio sabe do que fala. A magnata da indústria cosmética trabalha há décadas junto das marcas mais poderosas do setor, da Estée Lauder à Ralph Lauren, passando pelo retalhista Sephora ou pela gigante L’Oréal. Chamavam-lhe a “futurologista da Beleza” e as palavras tornaram-se realidade assim que a especialista criou a agência de previsão de tendências Mirror Mirror. Quando a Vogue Portugal falou com Recckio ao telefone, não havia qualquer sinal de hesitação na sua voz: “As coisas mudaram. Hoje é o consumidor que tem todo o poder. Graças às redes sociais, estes tornaram-se o editor de Moda, o editor de Beleza e a polícia da Beleza. [Fazem] Tudo, desde julgar os produtos a testar os produtos e, muito importante, dissecar a lista de ingredientes.” Olivia Houghton, editora adjunta de previsão criativa na agência de consultoria de previsão estratégica The Future Laboratory corrobora esta alteração, tão significativa para a estrutura da indústria: “Outrora, os consumidores interagiam com as marcas em alguns pontos de encontro externos, mas, agora, estão a virar as organizações de pernas para o ar e a destruir a fachada que as marcas ergueram. Esta relação íntima está a transformar a forma como as marcas comunicam com as suas audiências – seja através das embalagens, das redes sociais ou de plataformas digitais.” Caso as marcas queiram conquistar a confiança do consumidor, a transparência na passagem de informação é uma componente indispensável na sua estratégia comunicativa. A Beleza já não é apenas uma questão estética, há valores mais altos que se levantam.
Em vinte anos, o planeta mudou. E não para melhor, como estamos fartos de saber. Poucos falavam sobre alterações climáticas na viragem do milénio, porém, duas décadas depois, não há maior buzzword do que sustentabilidade. É claro que as preocupações ambientais tiveram um grande impacto nas prioridades do setor cosmético, em grande parte motivadas pelo derradeiro catalisador da indústria – o consumidor. Mas, para lá de embalagens produzidas em plástico reciclado ou manifestos com promessas vazias, o presente (e o futuro) da sustentabilidade na Beleza está nos ingredientes. Jeanine Recckio afirma que a indústria cosmética está, hoje, “altamente regulada”, o que a par com “um consumidor mais inteligente” irá resultar num conjunto de leis de rotulagem que já vemos no setor alimentar, por exemplo. “Já está a acontecer em alguns países, como em França... Vais [ao supermercado] e vês um pedaço de carne. Agora queremos descobrir e rastrear de onde veio essa carne, e [a etiqueta] vai dizer ‘Veio da Quinta Oliveira, na Rua Principal, o nome do agricultor é José e o nome da vaca era Felismina.’ (...) O mesmo vai começar a acontecer na indústria da Beleza. Digamos que uma máscara facial tem romã. Os consumidores vão começar a perguntar de onde veio essa romã – não apenas de que país, mas de que quinta. É algo muito interessante de ver ao nível da sustentabilidade, listagem de ingredientes e legislação.” Olivia Houghton sabe que “a educação e a transparência são – e sempre serão – uma das maiores prioridades das marcas e empresas.” No entanto, a especialista em previsão de tendências acredita que vamos continuar a ver um crescimento abrupto daquilo a que chama “scifluence.” “À medida que o mundo se habitua à vida com a presença constante da COVID-19, as pessoas confiam cada vez mais na ciência e nos seus especialistas e equipas de investigação. (...) Continuaremos a ver um crescimento [na utilização] de dados concretos, ciência e expertise, e a análise de dados começará a moldar as nossas experiências e o desenvolvimento de produtos” avança Houghton. Ou seja, se os últimos vinte anos foram sobre mudanças simbólicas na procura por uma indústria mais amiga do ambiente – a introdução de embalagens com refill e fórmulas mais naturais foram exemplos disso – os próximos tempos terão de ser caracterizados por verdadeiras revoluções moldadas pelo conhecimento científico e guiadas pelos limites da natureza. Mas a sustentabilidade não é a única parte do setor cosmético que está a precisar de um grande abanão.
Em vinte anos, a forma como vemos a diversidade mudou. Seria impossível descrever as mudanças na indústria da Beleza nas últimas duas décadas sem falar sobre inclusão. Aliás, duas décadas talvez seja um período demasiado grande para a questão aqui levantada – afinal, foi só em 2017 que a Fenty Beauty tomou a indústria de rajada com a sua campanha Beauty For All e o lançamento de uma base com 40 opções de tons de pele (atualmente já são 59). Mas, em cinco anos, muito já se fez e a inclusão tornou-se uma prioridade do setor. Uma prioridade? “Não, não é apenas uma prioridade, é uma obrigatoriedade”, atira Jeanine Recckio assim que o tema vem ao de cima. “Se hoje lançares uma base na Sephora e não tiveres pelo menos 30 tons, és considerado racista.” Mas nem sempre foi assim. Durante a sua carreira, Recckio lembra-se de se ter deparado com variados obstáculos sempre que propunha uma extensão da gama de cores dos produtos de pele. Diziam que “não eram precisas tantas cores, que era muito caro, que ocupava muito espaço. E eu respondia: ‘Acreditem em mim, isto vai mudar.’” E mudou. Mudou tanto que a fundadora da agência Mirror Mirror acredita “que está um bocadinho fora de controlo. Não precisamos de 40 cores de base. Chega a um ponto em que já nem sabemos qual escolher.” Porém, Jeanine Recckio afirma com toda a certeza que a procura por uma maior diversidade e inclusão no setor cosmético “não vai a lado nenhum”, e é por isso que se estão a estudar alternativas às atuais práticas que, embora sejam positivas para os consumidores, estão a tornar-se verdadeiros quebra-cabeças logísticos para as empresas. É aqui que a tecnologia tem um papel a desempenhar. “Nas bases, haverá apenas um tom e será invisível. Aplicamos no rosto e depois vamos ao telemóvel abrir uma app. [Essa app] vai ler a nossa pele e a base mudará para essa cor”, partilha Jeanine Recckio acerca do futuro da diversidade na Beleza. It’s a tech world, e o setor cosmético já o sente há muito tempo.
Em vinte anos, a tecnologia mudou. E trouxe mudanças com ela. São demasiadas para alguma vez conseguirem ser listadas em tão poucas páginas. Todavia, se há benefício que merece ser destacado, terá de ser a qualidade dos produtos de Beleza. “Eu tenho uma coleção de maquilhagem vintage. Quando olho para algumas daquelas fórmulas, daqueles pós... É uma loucura ver o quão diferentes são dos de hoje. Nós estamos a fazer os pós de forma diferente”, conta Jeanine Recckio. “Quando vemos os pigmentos ao microscópio é maravilhoso. Não são lisos, são multidimensionais. (...) Há uma nova tecnologia de reflexão de luz, diferentes polímeros... De um ponto de vista científico, a maquilhagem mudou muito.” Novas fórmulas trouxeram novos acabamentos, sejam eles integrados no próprio produto ou conseguidos através de novos instrumentos que não existiam há vinte anos. Recckio acredita que o ressurgimento dos pincéis e esponjas de Beleza foi uma parte importante das últimas décadas do setor cosmético, mesmo que por vezes passe despercebido. Com estas ferramentas, “[o rosto] parece menos maquilhado e mais real, mais sensorial, e muito camera-friendly, porque nós somos mais fotografados do que nunca e é aí que a maquilhagem, o cabelo e a Beleza têm um papel a desempenhar.” Reinventar fórmulas e criar utensílio inovadores é o que a tecnologia tem feito nos últimos tempos, mas, no futuro, não se espera que fique por aí. “Vê o novo programa das Kardashians?” pergunta Jeanine Recckio entre risos. “Sim,” digo eu, um pouco confusa com a pergunta. “Elas [Kardashians] estão a usar umas novas câmaras de alta tecnologia. A Oprah Winfrey começou com este novo sistema de câmaras – e também se utiliza nos filmes – em que há um filtro automático e uma filtragem automática da luz, de maneira que aquilo que estamos a ver não é bem aquilo que estamos a ver, percebe?” Percebo. Enquanto ávida utilizadora das redes sociais, percebo demasiado bem. E a verdade é que, de acordo com Recckio, espera-nos um futuro assumidamente filtrado, ao alcance de um piscar de olhos. “Iremos usar lentes de contacto, para que possamos sair de casa e programar a nossa cara de modo que, se alguém olhar para nós, teremos um filtro automático. (...) Podemos mesmo dizer ‘Se esta pessoa passar por nós, quero ter o filtro número 224 ativo.’” Quo vadis, bom senso?
Em vinte anos, a indústria da Beleza mudou. Muito aconteceu em duas décadas, seja ao nível político, económico, social ou cultural, e todas essas ocorrências tiveram um impacto, direto ou indireto, na forma como este setor se orienta e interage com a sua audiência. “É uma questão de criar produtos que respondam em tempo real às necessidades e desejos do consumidor. (...) As identidades dos indivíduos estão em constante mutação, por isso as marcas têm de acompanhar ou irão ficar para trás,” aconselha Olivia Houghton. Essa mutação nunca foi tão visível como nos últimos dois anos. Nada molda uma identidade como viver uma pandemia, uma guerra e uma crise económica. E já se podem observar as primeiras consequências disso. Por exemplo, pela primeira vez na história do setor cosmético, as vendas dos produtos de cuidados de pele ultrapassaram as vendas dos produtos de maquilhagem. Como explica Jeanine Recckio, “os cuidados de pele cresceram porque são cuidados de saúde. A nossa pele é mais de 70% do nosso corpo, é o nosso maior órgão. (...) Se não for saudável, morremos. Se os nossos poros não expelirem as toxinas, morremos. E ninguém morre por não usar maquilhagem.” A especialista em previsão de tendências acredita que estamos perante uma fusão da Beleza com o domínio médico. Na sua faceta mais estética, temos observado o crescimento de modalidades como “a cirurgia plástica, a dermatologia e a dermatologia cosmética.” Mas, quando chegamos ao núcleo desta fusão – a saúde –, os limites entre medicina e cosmética confundem-se. Recckio avança o exemplo dos testes ao sangue ou ao cabelo, em que um profissional de saúde “tira um pouco do nosso cabelo e, a partir daí, consegue saber muito sobre o nosso corpo, a forma do nosso corpo, a nossa pele.” Será um procedimento médico ou cosmético? É difícil dizer. Talvez por isso Jeanine Recckio acredite que, daqui a uns anos, a Beleza não estará dividida em categorias tão rígidas: “Não é apenas maquilhagem ou cuidados de pele... É um cuidado pessoal. É olhar para o nosso cabelo, para as nossas vitaminas, para os minerais e depois falar de necessidades de Beleza, seja maquilhagem, skincare, fragrâncias ou o que for.” Já não é um jogo de adivinhas, de tentativa-erro, é uma questão de ciência. “Pele é pele. Sangue é sangue. Cabelo é cabelo. Pode ser alterado, mas, do ponto de vista da estrutura celular, será sempre uma célula humana. (...) Iremos começar a ver esta fusão maravilhosa de fórmulas, aplicações e formas de pensar. É muito entusiasmante.” A Beleza, em 2002, é de facto muito entusiasmante. Repleta de altos e baixos, progressos e retrocessos, e um manancial de oportunidades para perseguir. Onde estaremos em 2042? Não sabemos. É precisamente esse mistério que mantém (e manterá) o setor cosmético vivo década após década, passem vinte, quarenta ou cem anos.
Texto originalmente publicado na The 20th Anniversary Issue da Vogue Portugal, disponível aqui.
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