Tendências  

Bem me quer, mal me quer

02 Jan 2024
By Mariana Silva

Love & Hope Issue | Artwork de Miguel Canhoto

Diz-se que ninguém deveria sair de casa sem um pouco de corretor nas olheiras. Quem assim o ditou? A base desempenha o papel de cobrir as tão temidas imperfeições. Mas porque precisam de ser cobertas? Aplica-se a máscara de pestanas para proporcionar um olhar mais misterioso. Quem é suposto ser o alvo desse mistério? Se estas são as regras da maquilhagem – e não a expressão pessoal, a celebração das diferenças, a demonstração do amor pelo corpo que nos dá vida –, valerá a pena continuar a jogar?

Ela usa maquilhagem, por isso já sabes o que significa – é insegura.” Bastou um comentário, aparentemente inofensivo, para fazer Mally Roncal questionar o seu propósito de vida. Enquanto maquilhadora de celebridades e fundadora de uma marca de beleza, Roncal admite nunca ter pensado na sua profissão como catalisadora de inseguranças. Pelo menos, até ao dia em que aquele comentário lhe chegou arbitrariamente aos ouvidos. “Dediquei a minha vida à maquilhagem. Pensar que isso pode danificar a autoestima de uma mulher é algo que levo a peito”, desabafou num artigo de opinião publicado no The New York Times. Embora as palavras introdutórias não tenham sido dirigidas a Mally Roncal, a especialista em beleza considerou-as uma ofensa pessoal – enquanto mulher, enquanto maquilhadora, enquanto pessoa que usa maquilhagem. E explica porquê, listando os argumentos que, na sua ótica, ilustram como manter uma rotina de beleza permite reforçar a autoestima: “A maquilhagem dá poder a uma mulher para se apresentar exatamente como quer. É ela que decide, o que contribui para a sua autoestima. Quando aplicas maquilhagem, estás a dizer: ‘Aqui estou eu. Tirei três minutos do meu dia para mim, porque mereço.’ Se isso não é demonstrar autoestima, não sei o que é.” Aquilo que a maquilhadora descreve é verdade. Contudo, não poderíamos dizer que é uma verdade universal. Numa indústria em que os produtos mais vendidos se enchem de rótulos “anti” (anti-idade, antiacne, antiolheiras, entre outros), poder-se-á dizer que a sua utilização corresponde a uma demonstração de amor pessoal? Ou, pelo contrário, será a parca aceitação destes traços individuais, vulgarmente definidos como imperfeições, o principal incentivo por detrás da utilização de maquilhagem? Mally Roncal é uma defensora acérrima da primeira hipótese, mas a realidade vivida pela sociedade contemporânea não parece ir ao encontro da sua visão.

Em 2022, quatro investigadores brasileiros propuseram-se estudar como a perceção da imagem corporal e a autoestima afetam a utilização de maquilhagem nas mulheres. Para tal, entrevistaram 1483 pessoas que se identificam com o género feminino, no Brasil, questionando os seus hábitos de beleza e a sua preocupação com a aparência. As suas principais conclusões desafiaram várias teorias do senso comum, começando pelo facto de que, entre as participantes, eram as “mulheres que se sentiam confortáveis com a sua aparência e tinham uma autoestima elevada” que gastavam menos dinheiro em maquilhagem. No entanto, ao contrário do que se poderá pensar, isso não significa que uma autoestima baixa pressupunha um aumento dos gastos em maquilhagem. Aquilo que, segundo esta investigação, parecia ser um fator crucial na definição desta relação era a preocupação com a aparência. “Mulheres que dão mais importância à sua aparência não só gastam mais dinheiro em maquilhagem, como passam mais tempo a aplicar maquilhagem e usam maquilhagem com mais frequência”, observou-se nas conclusões do estudo. Todavia, virá esta preocupação com a imagem de um lugar de amor próprio ou de cuidado pessoal? Os investigadores brasileiros demarcaram duas grandes motivações – uma interna e outra externa –, e nenhuma parece apontar nesse sentido. Comecemos pela externa, visto que acaba por ter ramificações nas restantes explicações. Houve um fenómeno interessante que se verificou junto das adolescentes entrevistadas neste estudo. Ainda que revelassem níveis elevados de body positivity (isto é, uma imagem corporal positiva), reportaram que “a sua família e amigos costumavam falar da sua aparência, mas não dos seus corpos (por exemplo, comentavam a sua roupa, o seu penteado, a sua maquilhagem, mas não os seus atributos físicos).” Isto permitiu afirmar que, na sociedade contemporânea, a aparência está mais sujeita aos efeitos da pressão social do que a imagem corporal, resultando numa maior suscetibilidade para alterações na mesma – nomeadamente através do uso de maquilhagem. A investigação brasileira não corresponde à primeira vez que esta dinâmica é detetada por investigadores. Em 2008, três professores britânicos concluíram que a principal motivação para adolescentes do sexo feminino usarem maquilhagem era quererem “sentir que eram admiradas pelo público. Mais recentemente, num estudo realizado nos Estados Unidos, foi relatado que a maquilhagem é usada “como uma estratégia para reforçar o estatuto social”, trazendo vantagens em inúmeros contextos sociais e profissionais, dado que as mulheres que usam maquilhagem são percebidas como “mais competentes, mais influentes, e possuem um nível mais elevado de prestígio social.”

Seguindo esta lógica, pode dizer-se que Mally Roncal estava correta quando afirmou que a maquilhagem é uma forma de empoderamento. A confiança que advém de interações sociais bem-sucedidas contribui para a autoestima e para a aceitação pessoal. Porém, a questão que nos trouxe aqui pretende alcançar um patamar mais pessoal: se uma mulher se sentisse bem consigo mesma – eliminada a aprovação alheia da equação –, usaria maquilhagem? Há uma motivação interna levantada pelos investigadores brasileiros que ainda não foi abordada. Através das entrevistas realizadas, desvendou-se uma relação entre a preocupação com a aparência e a auto-objetificação, no sentido em que quanto mais as mulheres separavam o seu corpo da sua pessoa, maior era a probabilidade de darem mais importância à sua imagem e, por consequência, de investir mais em produtos de beleza. Isto acontece porque, nas palavras dos investigadores, as mulheres “internalizam esta perspetiva e começam a examinar-se e a tratar-se como meros objetos, destacando a avaliação visual (...) ao invés de outros aspetos, como o desenvolvimento da sua identidade.” Não são precisas muitas palavras para descrever uma experiência que é comum a todas as mulheres, como uma breve passagem pelo espelho, em que não se reconhece um ser humano, mas sim pedaços de um rosto categorizados em função das suas imperfeições. Ou um sorriso numa fotografia, ocultado pelo pensamento de que está na altura de começar uma dieta. Dois exemplos, retirados de uma lista infindável, que mostram como a auto-objetificação é inimiga do empoderamento feminino que parte de dentro. E que contribui para que, em muitos casos, maquilhagem e amor próprio não façam parte da mesma narrativa.

Embora seja classificada, no estudo de 2022, como uma motivação interior, a auto-objetificação é o resultado de séculos de vivências em que as mulheres se viram objetificadas por outros – por homens, por outras mulheres, até pela indústria da beleza. Foi este o princípio explorado durante anos pelas publicidades do setor cosmético, contribuindo para a criação de um estereótipo de perfeição feminina, na qual a objetificação da aparência representava o pilar do consumo de produtos de beleza. Em When Beauty is the Beast (2018), Savannah Greenfield escreve: “Estes anúncios criam um vazio nas mulheres que só pode ser preenchido ao comprar o produto que as irá elevar ao ideal. Mas porque o ideal é inatingível, existe uma procura constante pelos produtos de beleza e o ciclo continua.” A curto prazo, pode ser mais fácil para a indústria da beleza alimentar-se das inseguranças do que da celebração da individualidade. Porém, a longo prazo, a perpetuação deste ciclo desencadeia uma semente de revolta dentro de quem se sente mais condicionado. E esse prazo parece estar a chegar ao fim.

Depois de décadas a ver os seus traços únicos caracterizados como imperfeições, está a nascer uma insurgência contra a beleza que pretende esconder, ao invés de enaltecer. Uma insurgência contra os rótulos “anti”, contra as campanhas pinceladas a Photoshop, contra as mensagens subliminares de que é preciso odiar o nosso corpo para o podermos nutrir. A beleza está a mudar, assente no princípio de que a preocupação com a imagem não tem de estar associada à visualização do corpo como um objeto. Adornar a pele, das mais variadas formas, pode contribuir para a valorização do ser. Nisso, as tendências de beleza dos últimos meses são claras: é tempo da cor, da criatividade, da celebração da diferença, da expressão da individualidade. As sardas não se escondem, acentuam-se. Não se alteram os contornos do rosto, joga-se com sombra e luz. As rugas, as borbulhas, os pés de galinha, os pontos negros veem-se destacados em anúncios de beleza por todo o mundo, e são observados com admiração por quem nunca viu a autenticidade do seu rosto representada num ecrã.

Há muito poder nesta liberdade de exploração da imagem, mais do que alguma vez se registou entre as mulheres que, desde os primórdios da humanidade, carregam as cicatrizes de uma relação flutuante com a beleza. No entanto, esta é uma liberdade que brota de anos de trabalho pessoal (na luta que cada indivíduo enfrenta contra os estereótipos enraizados nos seus hábitos) e social, enquanto coletivo que quer progredir face à forma como aprendeu a projetar as suas próprias inseguranças nos outros. Talvez por isso o cuidado pessoal feminino – com o único e simples objetivo de cuidar – pareça um ato de amor tão radical. A maioria das mulheres cresceu a acreditar que passar dez minutos a nutrir a sua pele vem de um lugar de insegurança, nunca de confiança. Todavia, aplicar um corretor de olheiras pode ser um ato tão poderoso como escolher não o fazer. A diferença está nessa palavra – a escolha – e na agência que advém de sermos livres para aceitar ou alterar a nossa imagem. É por esse motivo que a maquilhagem não precisa de ser abolida para haver espaço para a aceitação pessoal. As duas podem coexistir, mas não sem antes nos olharmos ao espelho e perguntarmos, com toda a honestidade: porque é que me estou a maquilhar hoje? Da beleza que mal me quer à que bem me quer, está o poder de cada pessoa para moldar a sua resposta.

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