Era só o que faltava, um filme sobre a intimidade entre pessoas com deficiência. Pois era. Aqui está ele: Take A Look At This Heart, de Ben Duffy.
Era só o que faltava, um filme sobre a intimidade entre pessoas com deficiência. Pois era. Aqui está ele: Take A Look At This Heart, de Ben Duffy.
Não é um murro no estômago. É um murro na alma. Porque achamos que, em cinema, já vimos tudo, que Hollywood e a Nouvelle Vague já nos explicaram tudo, nomeadamente sobre temas que pensamos dominar, como o amor, o sexo, e a paixão. Mas, na verdade, ainda temos muito para ver. E para aprender. É assim que nos chega o mais recente documentário com direito a menções sobre respeito.
Chama-se Take A Look At This Heart e é assinado por Ben Duffy, um americano que não consegue ficar indiferente a temas que se confundem com os pormenores mais recônditos do nosso quotidiano. Porque, como explica em conversa com a Vogue, o mundo está saturado de idiotas pretensiosos que se acham os novos Steven Spielberg e é preciso insistir nas coisas que nos arrepiam corpo e cabelo. “Nada supera a realidade”, sublinha o realizador. Estamos tentados a concordar. Se ainda tiver dúvidas, perca uma hora e quarenta do seu novo ano e mergulhe nesta jornada incrível que acompanha as vidas de 17 pessoas únicas, cujo único problema, ao fim e ao cabo, é serem maravilhosamente especiais. A 18.ª, arriscamos, é o próprio Duffy, prova viva de que as aparências iludem, e de que a “deficiência” é um conceito cada vez mais vago. O filme está disponível no iTunes em 49 países e, globalmente, no Vimeo on Demand.
Porque é que decidiu fazer este documentário? Quero assumir, alto e bom som, que a razão pela qual fiz este documentário foi AJ Murray, o jovem que surge no início do filme com paralisia cerebral. Em 2016, tive a sorte de conhecer AJ, e ele olhou para mim e disse: “Ben, devias fazer um documentário sobre o amor e a sexualidade na comunidade com deficiência.” Senti que era algo que devia fazer. A princípio, fi-lo para encontrar [uma espécie] de restauração mental e emocional na minha própria vida, porque na época era alcoólico e sofria muito com isso... Mas depois passou a ser realmente sobre encontrar o que parecia ser um lar no seio da 'incapacidade'. Encontrar esta casa ajudou-me a começar uma jornada que transformou a minha própria dor em arte. Fazer este filme foi a melhor decisão da minha vida até agora.
O Ben é uma pessoa “normal”, não sofre de nenhuma deficiência. Como é que se preparou para o filme? Gosto que digam que sou um tipo normal... Faz-me sentir melhor a meu respeito, do que realmente sinto. A verdade é que tenho um distúrbio bipolar e uma psicose, ambos em tratamento, e falo nisso em boa parte do filme. Portanto, embora não tenha nenhuma deficiência física, luto imensamente com as minhas próprias deficiências mentais. Sinto que, de certa forma, essa empatia que carrego por pessoas com qualquer tipo de desvantagem, seja psíquica ou mental, me dá a capacidade de fazer um filme como este sem a ajuda de médicos ou especialistas. Não me preparei para este filme, de todo. Era incrivelmente ingénuo no campo das deficiências físicas, mas sei como é questionar se encontrarei o amor ou se alguma vez aprenderei a amar alguém.
A pesquisa mais notável que fiz foi quando estava na unidade psiquiátrica de um hospital, cerca de três meses depois de terminar o filme. Conheci um tetraplégico e pude ver, em primeira mão, como ele se sentia enquanto alguém que está paralisado... Vê-lo sentado na sua cama o dia inteiro, sem se mexer, sem nada para fazer exceto usar o computador durante algumas horas por dia... Antes disso, estava a passar por uma depressão severa devido a pensamentos em espiral de que este filme nunca veria a luz do dia, que ninguém jamais o iria ver. Quando assisti, em primeira mão, ao tédio e à dor desse homem, foi quando finalmente vi o quadro geral. Ele perguntou-me sobre o meu filme e eu disse-lhe que era um documentário sobre o amor e a sexualidade entre pessoas com deficiência. “Sexualidade? Ah, isso deixou de ser uma cena para mim há dez anos, quando fiquei ferido.” Disse para mim mesmo, naquele momento: “Se ele pudesse assistir ao meu filme enquanto estiver aqui no hospital, isso poderia mudar a sua vida.” [...] Não faço pesquisa e acredito que, como realizador de documentários, o conhecimento do assunto deve ser adquirido no processo de aprendizagem acerca das pessoas que conheço ao longo do caminho e, claro, da profunda admiração que vem com isso.
O filme centra-se numa série de personagens. O que vemos é a sua vida real, não é encenado, correto? Está correto.
Como é que encontrou estes 17 protagonistas? Em 2014, fiz um documentário chamado Tin Soldiers, sobre o mundo do desporto adaptável. Uma empresa chamada Yoocan, sediada em Israel, viu o filme e depois fui contratado para fazer 40 vídeos para eles, todos sobre pessoas da comunidade com deficiência. Acabei por conhecer muitas das pessoas que estão no Take A Look At This Heart assim. Ali Stroker e Steve Wampler conheci num festival de cinema em Cincinnati, Ohio, que estava a exibir o Tin Soldiers. Vasu Sojitra conheci noutro festival de cinema que mostrava o mesmo filme. Ena, acho que nunca tinha pensado nisso antes, mas a maior parte das pessoas que estão neste documentário chegaram-me através do filme anterior. So cool.
Algumas cenas são completamente novas para uma audiência habituada a blockbusters e filmes de ficção científica – como aquela em que um casal tenta encontrar a melhor forma de ter relações sexuais. Porque é que estas cenas são importantes? Essa é uma ótima pergunta. Estava a mostrar essa cena para o melhor amigo de um rapaz amputado e ele disse-me que os dois primeiros minutos dessa cena o deixaram muito desconfortável. Mas confessou que, após esse tempo, se forçou a aceitar que isso é a realidade das pessoas que vivem com deficiência. Acabou por me dizer que sentia que tinha sido ignorante a vida toda e que a cena brilhava como um holofote para ele. É por isso que estas cenas são tão importantes. Sinto que, por essa cena ser tão leve, bonita e [feita] com bom gosto, talvez faça com que a maioria das pessoas deem uma hipótese e não desliguem tão cedo. Talvez eles tenham a mesma reação que o melhor amigo daquele rapaz amputado. É muito importante dar às pessoas a hipótese de se tornarem a melhor versão de si mesmas – menos ignorantes, mais abertas e mais open hearted.
Depois desta experiência, qual considera ser o maior equívoco relacionado com a intimidade entre as pessoas com deficiência? O maior equívoco é que as mulheres não podem engravidar e que os homens não conseguem ter ereções e fazer sexo. O outro equívoco é que os homens e as mulheres que estão paralisados não conseguem sentir nada enquanto fazem sexo. Acho que o filme faz um bom trabalho ao responder a essas perguntas.
O que pretende alcançar com este documentário? Quero que as pessoas fisicamente capazes reparem nos corações das pessoas com deficiência antes de assumirem que são menos seres humanos porque estão numa cadeira [de rodas]. Quero que este filme consiga ajudar as pessoas a entender que é importante ter empatia. A empatia é o que faz com que não nos sintamos sozinhos, não odiemos os nossos semelhantes. Isso faz-nos sentir menos inseguros sobre nós mesmos. E isso faz com que sintamos mais amor pelas pessoas que partilham este mundo connosco. A empatia será a chave para o sucesso que gostaria que este filme alcançasse.
Não é a primeira vez que conta uma história real. Como explica o seu interesse por estes temas? Porque os colegas da minha escola de Cinema, que pensavam aos 18 anos que já eram os próximos Stevens Spielbergs, eram uns idiotas pretensiosos e me fizeram prometer a mim mesmo que faria algo diferente deles. O mundo precisa de histórias menos pretensiosas e de mais filmes pelos quais as pessoas se sintam tocadas e compreendidas. Nada supera a realidade, por isso conto histórias reais para tentar melhorar a realidade em que todos vivemos.
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