Canta desde que fala e nós sentimos que a ouvimos desde que abrimos os olhos.
Canta desde que fala e nós sentimos que a ouvimos desde que abrimos os olhos.
Carminho © Mariana Maltoni
Carminho © Mariana Maltoni
Diz-nos que o fado é maior que ela própria. Que lhe é transversal e que a transcende. Que tentar tirar-lhe as medidas seria injusto porque também seria admitir que o fado tem fronteiras. Deu por ela e sabia-o, assim, sabia cantá-lo porque sabia falar, sabia senti-lo porque sabia respirar. A 30 de novembro lançou Maria, o quinto álbum de originais, dono de uma crueza despida de tudo menos de emoção.
Este álbum foi como um precipício de onde saltou, mas para dentro de si. O que é que percebeu que o fado lhe ensinou?
Ensinou-me, sobretudo, que isto é uma partilha. É uma partilha que tem de estar em verdade, que tem de estar em comunidade. Uma das coisas que este disco apresenta sonoramente acaba por ser um retrato daquilo que me estás a perguntar. Por isso não podia ser gravado sem ser live, foi um live in studio, porque passa muito pelas emoções e pelas sensibilidades microscópicas entre as pessoas. Essa interação perde-se quando estás isolada numa cabine a tocar sozinha, e os músicos precisam uns dos outros para poder respirar da mesma maneira, para poder ir numa dinâmica, porque o fado é algo muito dinâmico, muito sensível. E todos eles me seguem, eles têm de me seguir, só que é seguir como se fosse um cardume, ninguém sai fora da linha, é um bailado. Há uma partilha comunitária, e há uma partilha pessoal. Como nós nos conhecemos todos uns aos outros, isto em termos mais tradicionais, se não formos verdadeiros eles vão sentir, vão saber, é como os nossos pais, é como um médico que sabe que estamos a mentir porque viu nas análises que temos comido muitos chocolates. Há uma verdade da qual não podes escapar, por isso nem vás por aí. Se não queres dizer a verdade, não vás para este género musical. A verdade é uma coisa que compensa, caramba, não é só difícil, não é um peso porque é uma libertação, e o fado, para mim, é sobretudo uma grande liberdade. O que mais me liberta é o fado. Porque eu tenho uma forma de me expressar. Há quem não tenha, há quem esteja preso à inexistência de meio. E eu tenho um meio, tenho uma forma de me expressar. Isso é liberdade. É libertador.
Essa liberdade e essa verdade é o que oferece a quem a ouve. O que é que recebe de volta?
Empatia. Recebo energia, recebo elogio, recebo atenção. Se pensares bem, eu estou uma hora e meia a cantar e a falar e a dizer o que quero a uma plateia que está calada a ouvir-me. Recebo tempo de antena, escuta, e isso é um grande privilégio.
Carminho © Mariana Maltoni
Carminho © Mariana Maltoni
O tempo é tão raro hoje.
Não só é raro como é difícil de ter a atenção do outro. Um artista que dá ao mundo aquilo que pensou e que construiu... acaba por ser uma questão filosófica: o facto de uma peça não ter quem a veja, quem a ouça, se será exatamente uma peça artística, se continua a ser arte ou não. Os filósofos continuam à procura de resposta para isto, e se é preciso procurar é porque é dúbio. Eu gosto de cantar sozinha, para mim, isso conforta-me, mas é muito importante ter quem me ouça, é uma realização muito grande o disco chegar a ti e tu dizeres-me que sentiste coisas tuas sobre aquele disco, e que eu, de alguma maneira, nem o fiz assim, não foi assim que o construí, criou-se um novo mundo dentro de ti por causa disso. É muito gratificante.
O que é que a apaixona perdidamente todos os dias?
As pessoas. O conhecimento das pessoas, de como é que as pessoas se dão, como é que elas crescem juntas, como é que elas se podem adaptar umas às outras, construir algo firme, fiel, justo, mesmo nas adversidades. Isso é apaixonante, saber que as pessoas não desistem, que são corajosas e que há sempre alguém ao nosso lado, que nos conhece bem. O mundo vive um bocadinho este mal, as pessoas apartam-se umas das outras e desconhecem as dores dos outros, e como as desconhecem também as ignoram. Há uma falta de sensibilidade e de cuidado pelo outro, porque “não estou a sentir o que tu estás a sentir, portanto não consigo identificar-me”. Mas é apaixonante ver como há correntes contrárias a isso, como há pessoas que lutam umas pelas outras, como há pessoas que também se analisam dentro de si, que se constroem diariamente e que querem ser diferentes, e que conseguem essas pequenas vitórias. Isso é um desafio maravilhoso porque é uma vitória, é uma espécie de etapa que se consegue, um nível que se passa num jogo, uma coisa que é gratificante.
Quanto do seu trabalho é amor?
Não posso dizer que é 100%, porque há muito trabalho que é intelecto, há outro trabalho que é determinação. Eu não sei quanto é que é amor, mas é muito amor, é amor à causa, é amor ao fado, é amor àquilo que eu faço, mas também é uma dedicação ao outro. Não sei… 90%? [Risos]
Carminho © Inês Gonçalves
Carminho © Inês Gonçalves
Três mulheres que a inspiram?
A minha mãe é a primeira. E posso convergir na minha mãe as minhas duas avós, até porque o meu pai diz que tem duas sogras e a minha mãe tem duas mães [risos]. Diz que a minha mãe é super empática com as minhas avós, e o meu pai, ‘pronto, eu fiquei com as duas sogras’. É a brincar, mas é ótimo [risos]. As minhas duas avós, com a minha mãe, resumem aquilo que uma mulher significa para mim, em termos mais verdadeiros, reais, tudo o resto são idealizações, até te posso dizer outras mulheres mas são projeções que eu faço naquela pessoa. Estas três não. São físicas e não me trazem só sabores, também me trazem dissabores, é uma dinâmica de partilha e de aprendizagem, e elas já viveram muito, eu já aprendo com os erros delas, e sobretudo com as virtudes. São três mulheres muito virtuosas em diferentes direções.
Depois, a Madre Teresa de Calcutá, e pode parecer um bocadinho cliché porque “ah, é muito boazinha”, mas eu vou explicar. Como eu estive a viajar, e estive lá, conheci-a, e já conhecia bem a história dela. Foi uma mulher que se manteve fiel a uma causa a vida inteira sem acreditar. Acho que a maior parte das pessoas não sabe, mas ela esteve num deserto de fé quase a totalidade da vida adulta. Ela teve um chamamento, e uma relação muito forte com a sua fé, e com Deus, era uma coisa muito sensorial porque acho que quem tem fé também acaba por perceber que há um retorno, há um consolo, tu sentes-te amparada. A maior parte dos textos a partir do momento em que ela fundou a Ordem em Calcutá são de desamparo. Ela lembra-se do que a fez começar, e nunca desistiu. E ela duvidou, duvidou imenso tempo da vida dela se aquilo teria sido real, se não tinha tido uma alucinação, uma ideia macabra de querer ser boazinha, lá está, de querer ser uma Madre Teresa de Calcutá [risos]. Ela foi muito sozinha, teve uma solidão tremenda a vida inteira. E nós só podemos dizer que ela estava certa porque olha o império de bondade e de partilha, de gente que ela salvou, de gente que ela ajudou a morrer melhor, com mais dignidade, pessoas que ela educou através de uma rede de casas pelo mundo inteiro. Ela fez um trabalho de diplomata e de aventureira e de mulher e de mãe e de gigante sem saber se estava realmente certa. Isto para mim é um exemplo gigante, um exemplo de firmeza, de consistência. Nem sempre temos que sentir a paixão, o amor, o consolo dos outros. Nós temos é de ter a certeza que ele lá está. Não podemos estar sempre a pôr em causa, não podemos estar sempre a duvidar e a querer provas disso, porque isso é que é ter fé, isso é que é acreditar, sem ver. Acreditar sem ver não é necessariamente ser estúpido, é ser fiel. Eu continuo a acreditar muito nesta crença fiel. Eu sou muito dedicada ao lado humano. Podia-te dizer que há grandes cantoras e atrizes que me inspiram, que são mulheres fantásticas, mas eu acho que o ser humano e o trabalho que se realiza com o ser humano é que acaba por transformar. Claro que as atrizes e cantoras chegam ao ser humano, mas é mais difícil. É sempre o lado corajoso e humano das mulheres que me inspira. São pessoas que o usam, que eu chamo as pessoas que são uma engrenagem.
Eu estive em Timor numa comunidade de uma timorense, a Mana Lu, que viveu a guerra com a Indonésia, e, nessa altura, houve uma data de terrores que aconteceram naquela terra, terrores que vão ao mais baixo do ser humano, mortes, violações, crianças que tiveram que assistir a coisas tenebrosas. E ela foi uma guerreira, construiu um exército de paz e andou na frente de batalha - ela foi perseguida, teve várias tentativas de violação, teve que se esconder debaixo de uma pedra durante três dias no meio das montanhas para não ser descoberta. Começou a juntar pessoas - porque ela tinha uma força e segurança que fazia com que as pessoas a quisessem seguir - e faziam guerra com paz, sem armas, ela ia para o meio da milícia com altifalantes pedir para pararem, eram recebidos com pedras, era uma coisa muito violenta mas que quebrou muitas mentalidades, que salvou muita gente, não pelo facto de elas não morrerem, mas pelo facto de elas não desistirem. O que acontece nessa altura é que muita gente que vive esse tipo de traumas desiste da vida, e revolta-se também, é a vítima que quer estar do lado dos que ganham, passam a ser os violadores, os agressores, é inconsciente, é de sobrevivência. Mas isto pode ser contornado com amor, com integração, com aceitação. Ela fundou uma Ordem, que mais tarde veio a ser aceite pelo Papa como uma ordem religiosa, tanto de homens como mulheres, que fazem votos religiosos para servir o outro. Tem uma comunidade que apoia várias pessoas de Timor, em várias aldeias, que as ajuda a ter forma de subsistência, cultivar a comida que comem, ensina as miúdas a cozinhar e a ter a sua higiene, a ter uma tarefa para conseguir arranjar marido, e ter marido é ter uma segurança, ter alguém que as ajude. Neste caso ainda estamos muito longe de ter uma independência das mulheres, muitas delas são dependentes de uma família, mas também há o desejo de ser uma família. Ela promovia o facto de as pessoas cuidarem de si e se entreajudarem, as comunidades são autossuficientes mas ajudam-se umas às outras, e aqueles que começaram lá já são os que formam os outros que vêm a seguir. Ela criou um sistema de sobrevivência, de amor. Eu vivi dois meses com ela em Timor, em Dare, que é uma aldeiazinha por cima de Díli, e eu acordava todos os dias com Díli à minha frente, e com o mar, às cinco da manhã, com elas a cantarem os louvores da manhã, porque é preciso também muita meditação, muita oração, é preciso muito pensamento para as pessoas se perceberem a si próprias e aos outros, nós temos de parar para pensar, e por isso é que a oração é uma coisa tão vital na vida das comunidades, e das pessoas. Eu ensinava português a miúdos pequenos, porque era a língua oficial, e eles não sabiam falar português, e ela contava-me as histórias dela, todos os dias, com uns bolos e café, e eu só percebi quase na última semana que elas tomavam todas banho de água quente e eu andava a tomar banho de água fria que era para não gastar, e elas aqueciam a água para tomar banho [risos]. Eu sempre fui um bocadinho voluntarista, “Não, não vou ser eu a fazer mais lixo; não, não vou ser eu a gastar água”, então andei mês e meio a tomar banho de água fria, com uma caneca.