Parece que a conhecemos desde sempre, mas Catarina Furtado consegue ser sempre maior que ela própria.
Parece que a conhecemos desde sempre, mas Catarina Furtado consegue ser sempre maior que ela própria.
Catarina Furtado © Renata Paskal
Catarina Furtado © Renata Paskal
Entra-nos pela casa dentro desde os 19 anos. Redutoramente, chamámos-lhe a "namoradinha de Portugal" quando Furtado nos deu provas atrás de provas que, muito mais do que namorar, estava aqui a sério, com tudo, com todos, como quem se compromete para sempre. Nunca deixou que as luzes fossem o seu único universo, mesmo quando o poderia ter feito: o país adorava-a, venerava-a, elegia-a a melhor, a mais bonita, a mais profissional. O que é que se faz quando se tem tudo? Ainda mais. Há sempre muito para trabalhar e tantos - e tantas - para salvar. Catarina Furtado abraçou como missão dar a sua força e o seu coração aos outros. Ao fazê-lo, mostra-nos que é possível. Mostra-nos que podemos sempre ser gigantes. Mostra-nos que a nossa vida seria ainda maior se déssemos as mãos. E, ao fazê-lo, salva-nos a todos. Todos os dias, um bocadinho mais.
Como é que acha que a sua educação e a forma como cresceu influenciaram a sua carreira a nível humanitário?
Eu acho que, basicamente, há aqui dois fatores: obviamente, eu nasci com um apurado sentido de justiça, diria, porque isso é evidente no meu percurso, mesmo desde o infantário à adolescência - aliás, o meu filho também é assim. Nasci com essa vontade enorme de conhecer o outro e de perceber o outro e de apoiar o outro. Depois acho que evidentemente o facto de o meu pai ser jornalista e de trazer para dentro do nosso universo familiar todo um mundo muito diferente, e onde o mundo em desenvolvimento estava muito presente, porque ele fazia muitas reportagens, por países de África e não só. Ele sempre me trouxe essa realidade, sempre me trouxe a realidade das pessoas que não tinham as mesmas oportunidades. Portanto, não de uma forma farmacêutica, diria, ele foi-nos contando, por partilha, e isso para mim foi muito determinante, ouvia histórias de crianças que trabalhavam, de mulheres que não podiam falar, não podiam ter as suas opções de vida, as suas profissões, não tinham escolhas, não tinham oportunidades. Também eu acho que foi absolutamente vital o facto de a minha mãe ter sido professora e ter-se especializado em ensino especial, trabalhou muitos anos na Crinabel, e eu percebi a questão da magia da diferença, e o quanto a diferença para uns era uma coisa terrível e que merecia o dedo apontado, e como para outros era uma riqueza. Como para a minha mãe sempre foi uma riqueza, eu quis mergulhar nesse universo e, aos nove anos, comecei a fazer voluntariado, porque gostava. Em 2015 lancei aquele livro, O que Vejo e Não Esqueço onde conto essas coisas todas porque quis perceber, eu própria quis ter consciência do que é que me levou a fazer isto; porque, para mim, é tão absolutamente vital - muito mais do que a minha carreira - eu continuar esta minha missão até partir deste mundo. Mas eu própria quis perceber, e o facto de me terem convidado para escrever esse livro fez-me também fazer uma espécie de terapia de memória - espera aí, de onde é que isto vem? Essa pergunta que estás a fazer é uma pergunta que eu tive de me colocar. Mas porquê? Isto para mim é natural e não só, é vital, eu preciso mesmo de sentir que o meu papel nesta vida, e enquanto figura pública também, e enquanto mulher, e agora enquanto mãe, tem uma componente de poder interferir, para melhor, na vida das meninas e mulheres. Isto para mim é absolutamente certo. Não tenho qualquer tipo de dúvida que este vai ser o caminho e, por isso, as coisas acabaram por acontecer. Eu acho que é uma espécie de inclinação, nós inclinamo-nos para aquilo que é a nossa verdade e aquilo que nós queremos mesmo fazer e a vida traz-nos de volta. Eu fui convidada há 16 anos para ser embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a População e é incrível como aquilo começou a fazer mais sentido, e tive de trabalhar mais, não é, tive de perceber melhor o mundo e, a partir daí, tudo começou a ser natural; o facto de eu ter desenhado o formato Príncipes do Nada e depois ter constituído a minha associação sem fins lucrativos Corações com Coroa.
O mundo antes era muito grande e, hoje, com a Internet, tornou-se muito pequeno. Sabemos o que se passa em todo o lado, talvez se torne mais fácil agir.
Por outro lado, há uma espécie de anestesia geral, e isso acaba por acontecer porque és tão massacrado com informação, algumas delas são contra-informação e isso é muito perigoso, perceber que nós não sabemos o que é que se passa dentro da Síria, mesmo. E portanto essa dúvida latente que existe e, ao mesmo tempo, essa bomba de informação que nos deixa perplexos com o mundo faz muita gente não agir e dizer “ai, eu prefiro nem saber”. Eu ouço muitas vezes este tipo de frases e isto preocupa-me porque algures estará a dose certa de ingredientes que temos de utilizar na educação dos nossos filhos para que eles tenham muito de empatia e de preocupação em relação ao mundo que nos rodeia. Porque com esta facilidade de termos as coisas muito mais acessíveis, como é que é possível que ainda haja tanto o culto do ego, do egoísmo, do umbiguismo, e não haja mais verdadeira solidariedade. Há, obviamente, grandes excepções, há grandes movimentos, as pessoas respondem a chamamentos - sem qualquer conotação religiosa - as pessoas vêm e até se agrupam e até se associam para mudar algumas coisas, mas eu acho que esse poder cívico tem de ser mais trabalhado junto das escolas para os jovens saberem que têm essa capacidade de mudar leis se tiverem uma intervenção cívica maior, se tiverem uma maior consciência do que é que é este ativismo.
Porque é direito e dever.
É direito e dever e o ativismo devia ser mais trabalhado e não devia ser uma coisa admirável perguntar “Ai é, fazes voluntariado?”, devia ser “Onde é que tu fazes voluntariado?”. Isto é só um exemplo, ou “Quais são as tuas causas?”. Ok, és advogado, ou és médico, ou és jornalista, ou és pedreiro, mas o que é que para além disso? As carreiras, hoje em dia, tomam conta das pessoas e a ascensão das mesmas então toma ainda mais conta das pessoas porque é a tal ambição. E as pessoas às vezes competem muito pouco com elas próprias e competem muito com o vizinho do lado. E isso não te permite teres outras coisas ao mesmo nível da tua profissão que é remunerada, mas que são tão ou mais importantes que a tua vida. Nós termos causas na vida, sejam elas quais forem, dá-nos uma consciência de que estamos muito mais juntos do que aquilo que pensamos. Ao abraçarmos a causa, por exemplo, da sustentabilidade ambiental, que é uma causa deveras importante, obviamente que vamos encontrar outros parceiros e outras pessoas que estão muito preocupados com uma coisa que é uma realidade. Nós vamos ter um planeta muito diferente, que não sabemos como é que vai ser, mas para pior é de certeza.
Alguma vez hesitou?
Não, nunca. Quanto mais mergulho na realidade, quanto mais mergulho no sentimento dos outros, mais quero estar lá, na medida das minhas possibilidades - que não são assim tantas, não é, não sou uma técnica. Há, obviamente, momentos dolorosos que ficam só para mim, que eu não partilho nem nos documentários, nem no livro, nem muitas vezes com os meus mais próximos, mas nunca hesitei, antes pelo contrário.
O que é que sentiu que a levou a criar a Corações com Coroa?
Eu acho que a informação é realmente poder. E portanto, quando as pessoas dizem que não querem saber, as pessoas estão a dizer “Eu quero ficar ignorante”. E, portanto, o que me permitiu este convite de ser Embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a População deu-me um grande contentamento e orgulho, tenho de o confessar, foi deparar-me com as estatísticas, com os números, com os relatórios, e depois ao ir ao terreno como documentarista com os Príncipes do Nada e com o Dar Vida Sem Morrer, percebi que há muita coisa que nós temos de mudar, nomeadamente na questão do papel da mulher nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. Mas nos países desenvolvidos, agora sim, mas há 18 anos - há 10 comecei os documentários, há 18 como embaixadora - não havia esta consciência tão grande desta desigualdade com base no género. Quer dizer, houve sempre movimentos feministas, mas esta consciência generalizada da sociedade em relação à desigualdade com base do género - a desigualdade salarial, a desigualdade de oportunidades, o assédio sexual, enfim - não havia essa consciência. E eu percebi muito bem que havia essa desigualdade mas estava camuflada, ou tem estado mais camuflada em Portugal. Se essas são as temáticas, são os dossiers que eu trabalho há tanto tempo, nomeadamente a saúde materna, a saúde sexual e reprodutiva, a discriminação, a não violência sobre as mulheres, a igualdade de oportunidades, essas são as minhas causas, e percebi que em Portugal há isto tudo para trabalhar. Então foi nessa altura que eu pensei: se eu tenho esses dossiers na mão, se eu tenho alguma autoridade para falar nisto, se eu tenho tido este trabalho, tenho uma consciência dos direitos das mulheres, e há coisas para fazer. Nomeadamente, por exemplo, dar bolsas de estudo a raparigas, já foram 14 bolsas em seis anos, é inacreditável; temos atendimento gratuito todos os dias na nossa sede, onde temos consultas gratuitas com técnicas, nomeadamente psicólogas, assistente social, apoio jurídico, apoio ao nível da nutrição, todo este tipo de apoio gratuito, entre muitos outros projetos (por exemplo, uma intervenção nas escolas contra a violência no namoro, projetos de reflexão e consciencialização da igualdade de oportunidades e de género, tinha que ser).
Trabalho, família, causa. É difícil, mas a Catarina mostra que é possível.
É difícil, é muito difícil, mas é coordenável. Mas é tão importante para mim que eu consiga realizar-me em várias frentes e que, para poder estar bem na minha profissão e na minha missão de vida, eu tenha que estar bem familiarmente, e vice-versa, que aquilo que eu faço é cuidar muito bem de cada canto do meu ser. E portanto eu trato-me muito, e cuido muito, e rego muito e faço muita poda na minha vida familiar, mas também invisto imenso na minha vida profissional, sou muito perfecionista, sou muito cuidadosa, tenho imensos sonhos e não os amarro, deixo-os fluir, depois só tento encontrar tempo na agenda para os concretizar; e na parte da missão, aqui nem é possível ver outra forma: os problemas vão aparecendo, neste caso as raparigas e as mulheres que têm problemas chegam todos os dias, e portanto ter uma associação é ter uma grande empresa. Eu nunca investi em marcas, na minha marca enquanto marca vendável, em que fosse só eu a única beneficiária. Investi numa empresa, é verdade, porque a associação é uma empresa, logisticamente é muito complicado manter. Nós neste momento temos seis funcionárias a tempo inteiro, com contrato, tudo certíssimo, e temos colaboradoras a recibos verdes, portanto temos uma estrutura muito pesada já, que é uma estrutura de uma empresa, e eu faço a gestão dessa ONG como se fosse o meu restaurante, a minha loja, enfim, e portanto é esse o investimento, as coisas no dia a dia têm de acontecer. Claro que tenho uma pequenina equipa, e eu enquanto presidente voluntária tenho duas pessoas ao meu lado na direção que são absolutamente essenciais. Eu acho que as coisas quando se vão plantando e vão semeando isso começa a ficar quase um vício. Tu depois queres plantar mais para veres o resultado e o impacto das nossas ações. Eu sou viciada em ver o impacto daquilo que vou plantando, mesmo, mesmo, é muito viciante, é muito… para já, é uma enorme adrenalina. Aquilo que muitas vezes as pessoas perguntam é como é que eu tenho resistência física. Já tive mais (risos).
E psicológica?
Psicológica vou tendo. Eu acho que tenho aqui as coisas bastante arrumadas. Quando acontece alguma coisa, tento não deixar que ela me marque ao ponto de ficar uma coisa aqui cravada e mal resolvida, vou sempre tentando perceber bem as coisas. A nível psicológico, as coisas estão bem arrumadas. Claro que me faz muita confusão aceitar esta desigualdade gigante que existe no mundo, irrita-me e incomoda-me e deixa-me muitas vezes frustrada não conseguir apoiar muito mais causas que aquelas que faço, ou muito mais gente. Mas, por outro lado, é tão poderoso mudar a vida de alguém. Uma das nossas bolseiras, que não tinha capacidade nenhuma de estudar, que tinha notas absolutamente extraordinárias - que eu nunca tive (risos) - na escola, e que ia deixar de estudar porque tinha de ajudar os pais a sobreviver, como é que é possível? E agora vê-la com o canudo… uma enfermeira, uma advogada, uma desportista, uma médica. Isto são tudo bolseiras que nós tínhamos e que não iam ter estas carreiras. Isso é tão poderoso, nós podermos mudar a vida de alguém para melhor é uma coisa que não tem dimensão. Não há nenhum prémio que eu poderia receber enquanto atriz ou apresentadora que tivesse o peso que eu sinto quando recebo um email de uma bolseira nossa, ou de uma mulher que foi apoiada. Ontem recebi um mail de uma senhora que foi apoiada pela nossa advogada num caso de violência doméstica grave, e, passado não sei quanto tempo, o processo foi finalmente concluído. O mail de ontem era dessa senhora a agradecer à CCC, nomeadamente à advogada em questão, porque não só o criminoso tinha sido punido, como tinha pago uma indemnização à senhora. Isto é muito poderoso. Imagina, a justiça foi feita, quando nós sabemos que a justiça demora, e quando nós sabemos que estes casos de violência doméstica nem sempre acabam como deveriam ser. [...] Isto é verdadeiramente aquilo que é “uau” e que nos faz, mesmo com muito cansaço, continuar. E digo-te, há dias em que estou mesmo muito cansada, e com quatro crianças, que já não são crianças, mas tenho quatro filhos, dois já estão bastante crescidos, e também têm as suas mães, mas a quem eu dou uma permanente atenção nas suas educações, e mais os meus dois, não é, e mais o marido que às vezes também precisa (risos).
Quanto do seu trabalho é que é amor?
Grande pergunta! Tu queres em percentagem? Eu tenho de ser mesmo sincera contigo, eu acho que é 100%. Porque aquilo que me move são as pessoas, e, portanto, todos os projetos que fiz até agora em televisão, gostei de todos - uns mais do que outros, tenho que ser sincera, houve uns que me envolveram muito mais, até enquanto cidadã, outros que fui eu que desenhei, inclusivamente -, enquanto atriz também tudo o que fiz gostei bastante, mas, mais do que o resultado final é o processo, e o processo tem a ver com aquilo que nós conseguimos dar aos outros e receber dos outros, e é 100%. Eu converso comigo imensas vezes durante o dia, e digo “Como é que eu vou sentir orgulho de mim no final do dia olhando para de manhã, quando acordo?”, portanto estou sempre a competir comigo, constantemente, a dizer “Não não, tens de fazer aquilo, tens que conseguir, tens de chegar àquele objetivo”, e não posso passar um dia sem que nada tenha verdadeiramente acontecido. Nem que seja só contemplar o mar, mas o objetivo era contemplar verdadeiramente o mar, então foi cumprido ou não foi? Este relacionamento que eu tenho comigo é bastante saudável.
É uma questão de estar sempre muito presente.
E de estar bem comigo, acima de tudo.
Três mulheres que a inspiram?
Eu vou ter que ser sentimentalona. Quatro. As minhas duas avós que já partiram. Por razões totalmente diferentes: uma porque era uma sábia mulher, com uma grande inteligência emocional, que nunca aprendeu a ler nem a escrever, e a outra porque era exatamente o inverso, uma mulher muito à frente do seu tempo, que tirou Belas Artes, doutorada, o que me deu também a noção de que podemos estar muito à frente do nosso tempo mesmo que as pessoas achem estranho as nossas ações. A minha mãe, que me ensinou que é possível sempre não desistir das pessoas, e que cada pessoa conta. E a minha filha, que é uma verdadeira inspiração todos os dias.