A série documental 'Príncipes do Nada' volta à RTP para a sua 5ª temporada, focando-se desta vez na crise dos refugiados. A Vogue conversou com Catarina Furtado sobre esta tragédia avassaladora, falácias populistas, ignorância, racismo e empatia.
A série documental Príncipes do Nada volta à RTP para a sua 5ª temporada, focando-se desta vez na crise dos refugiados. A Vogue conversou com Catarina Furtado sobre esta tragédia avassaladora, falácias populistas, ignorância, racismo e empatia.
Fotografia de Ricardo Freitas
Fotografia de Ricardo Freitas
Catarina Furtado. Há 20 anos no cargo voluntário de Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População. Há 14 anos a reportar as histórias e as experiências dos que, em contextos adversos, lutam pela melhoria das condições de vida das populações mais desfavorecidas, promovendo a cidadania e os Direitos Humanos através do programa Príncipes do Nada.
De braço dado com o realizador Ricardo Freitas, com imagem de Hugo Gonçalves e som de Pedro Santos, Catarina rumou até aos campos de refugiados da Grécia (Ilhas de Samos e Lesbos), do Líbano, do Bangladesh e do Uganda. Percorreu ainda a Colômbia para conhecer as histórias dos migrantes venezuelanos, mas também dos milhões de deslocados internos colombianos. Ao longo de 10 episódios (divididos em duas histórias de dois países diferentes em cada episódio), a 5ª temporada de Príncipes do Nada, que estreia dia 9 de Junho às 21H na RTP, vai documentar a pior crise humanitária do século, segundo a ONU. Mais de 70 milhões de pessoas no mundo foram forçadas a fugir dos seus países ou a deslocar-se internamente, devido a guerras, conflitos ou perseguições. Nunca a humanidade teve tantos refugiados: 26 milhões, sendo que 1 em cada 2 são crianças e o número de deslocados ultrapassa os 40 milhões. Números que não param de aumentar perante as respostas ineficazes dos governos.
Pessoas como nós
“Nesta série decidi ir para cinco países onde o contexto dos refugiados vai-se modificando um bocadinho”, conta Catarina ao telefone com a Vogue. “Uganda, onde – apesar de algumas problemáticas - existe o melhor modelo de acolhimento de refugiados porque as pessoas estão integradas no país, os jovens e as crianças podem aceder à educação pública e têm acesso à saúde. Depois fui ao Líbano, que faz fronteira com a Síria e neste momento é o país que tem mais refugiados por habitante, o que significa que a situação está descontrolada e agravada por um governo conservador e intolerante, o que impede o funcionamento do modelo de integração. Depois fui ao Bangladesh, que acolheu os refugiados vindos do Myanmar, a população Rohingya que está a sofrer uma limpeza étnica porque são maioritariamente muçulmanos e o país é maioritariamente budista. Estas pessoas são escurraçadas, não são consideradas cidadãs, as aldeias são bombardeadas, as crianças são atiradas às chamas... é uma situação horrível”, explica a embaixadora. “O campo de refugiados no Bangladesh é o maior do mundo, mas não lhes dá estatuto de refugiados, portanto não podem trabalhar no país, as crianças mais uma vez não podem frequentar as escolas nem podem sonhar. Ficam ali presas até alguma vez existir paz e uma mudança de atitude e mentalidade do Myanmar.”
"Estas pessoas são escurraçadas, não são consideradas cidadãs, as aldeias são bombardeadas, as crianças são atiradas às chamas."
Por fim, Catarina e a equipa viajaram até à Grécia e em vez de uma Europa com valores humanistas, encontraram interesses desajustados e uma integração muito aquém das esperanças que nela foram depositadas por 120 mil requerentes de asilo. Nas ilhas Samos e Lesbos, considerados infernos a céu aberto, em campos construídos para 650 (Samos) e 3100 (Lesbos) pessoas coabitam, neste momento, cerca de 8000 e 20 mil respetivamente. Em cima umas das outras, no meio de ratazanas, com uma casa de banho para 200 pessoas, uma fonte de água para 1500 e dois médicos para as 8000. “São pessoas como nós e por mais que eu diga esta frase parece que não entra nos ouvidos”, denota Catarina num misto de revolta e indignação. “E, portanto, a Europa tem que resolver isto, tem que acelerar os processos de requerimento. Não é possível famílias inteiras atravessarem o mar mediterrâneo, pagando a traficantes para porem as suas vidas em risco em barcos de borracha e depois chegarem ali e terem uma entrevista de recolocação num país qualquer para daí a dois anos. E é só por falta de vontade política e falta de vontade económica. É preciso dizer que seria tudo mais fácil, e eu vi com os meus olhos e falei com muitas pessoas que percebem desta questão, se de facto a Europa se organizasse convenientemente e cada país acolhesse um certo número de refugiados fazendo a integração como deve ser dentro do próprio país.”
O pico de requerentes de asilo na União Europeia registou-se em 2015. A falta de vontade dos estados-membros da União Europeia em redistribuírem os requerentes de asilo levou à decisão de fazer um acordo com a Turquia, que é o principal país anfitrião de refugiados no mundo. A União Europeia prometeu seis mil milhões de euros de ajuda financeira e comprometeu-se a receber refugiados através de um sistema de recolocação em países da União Europeia que se voluntariaram para os receber. A União Europeia tem prometido criar um novo mecanismo comum para asilo e migração, mas a profunda divisão entre os estados-membros, com muitos países a recusarem-se a aceitar mais pessoas, parece deixar os europeus nas mãos da Turquia.
Fotografia de Ricardo Freitas
Fotografia de Ricardo Freitas
Populismo falacioso
Catarina chama firmemente a atenção para o facto de existirem dados recentes e concretos que mostram que os migrantes contribuem mais em impostos e contribuições para a Segurança Social do que aquilo que recebem em benefícios individuais e resultam num salto financeiro extremamente positivo para o estado. “Quando os governos populistas dizem que estas pessoas são parasitas da sociedade porque consomem recursos do Estado, é completamente mentira. Houve um salto financeiro positivo de 514 milhões de euros de contribuições para a Segurança Social, segundo os dados mais recentes. Eles beneficiaram muito menos do que contribuíram e as pessoas têm que saber isso. Ou seja, com o seu trabalho, os imigrantes e os refugiados contribuem para o cofre de Portugal. Não são pessoas que se limitam a usufruir dos nossos apoios sociais. É mentira. É uma falácia que perpetua a discriminação, o racismo, a xenofobia.”
A convenção de Genebra dita os seguintes motivos para pedir o estatuto de refugiado: etnia, religião, nacionalidade, grupo social e opiniões políticas. Estes cinco motivos excluem outros que são fundamentais como crimes de honra: em países em que é proibido uma mulher divorciar-se ela passa a correr risco de vida. É ameaçada de morte e pode ser morta. E este motivo, por exemplo, não está na convenção de Genebra - desatualizada em relação a estas questões. Outro exemplo: a violência doméstica. Há países em que o homem bater na mulher não é um crime e pode fazê-lo até à morte. Mulheres fogem com os filhos às costas desta realidade. Tudo isto leva a muitos problemas e estes atrasos todos nos processos não são justificados. “Uma pessoa que é salva em alto mar e depois por causa dos acordos é deportada para um porto que é inseguro - como o da Líbia - para que não entre na Europa. E nós não podemos aceitar isso. Temos responsabilidades”, afirma Catarina.
Não nos podemos deixar engolir por uma sociedade carente de empatia, incapaz de se colocar no lugar do outro, de sentir compaixão. Este exercício é absolutamente necessário e deve ser diário. Nas palavras de Catarina Furtado: "Uma opinião é o grau mais baixo do conhecimento. Quando temos conhecimento verdadeiro passamos a ter empatia. Não conhecendo, passamos a achar que tudo aquilo que é o medo do desconhecido e medo da diferença vai tomar conta de nós. Por outro lado, quanto mais conhecemos a realidade, as dificuldades que estas pessoas passam, mais nos identificamos com elas e mais somos elas. Esta divisão do nós e dos outros não existe. Nós somos os outros."
"Quando me cruzo com elas não sinto pena. Sinto revolta e indignação pelas condições indignas, humilhantes e degradantes em que se encontram."
“O que eu concluo desta série, falando com muitas pessoas muito diferentes culturalmente”, acrescenta Catarina, “é que todas elas sofrem da mesma maneira. Todas querem proteger os seus filhos, que tenham acesso à escola e a cuidados de saúde. E não são estas as pessoas para quem devemos olhar com pena. Quando me cruzo com elas não sinto pena. Sinto revolta e indignação pelas condições indignas, humilhantes e degradantes em que se encontram. E aquilo que eu sinto profundamente, que retrato nos Príncipes do Nada e partilho com a minha família e amigos, é admiração. São estas as minhas heroínas e heróis. Aprendi imenso e reduzi-me à minha insignificância perante as histórias admiráveis destas pessoas que levo comigo para a vida e cujas imagens jamais abandonarão a minha memória.”
Fotografia de Ricardo Freitas
Fotografia de Ricardo Freitas
De portas fechadas
A quinta temporada de Príncipes do Nada é dedicada a estas pessoas que, de um dia para o outro, tiveram de escapar à morte, mesmo arriscando a vida. Estiveram na mão de traficantes, viram morrer familiares nas águas do Mediterrâneo, perderam contacto com os seus, tentam recomeçar do zero, sem nada. Faltam-lhes comida, casa, acesso a cuidados de saúde e educação, trabalho digno, segurança. Curioso porque no meio de uma pandemia, a indicação que temos é essa mesmo. Ficar em casa. Onde está a casa destas pessoas? Onde está a proteção, a abertura? Da nossa casa! Em cada destino, o Príncipes do Nada procurar retratar as condições indignas em que os refugiados vivem, as violências a que foram sujeitos para chegar onde estão, conhecer o seu passado e os desejos para o futuro. Existe uma mensagem de esperança e incentivo para que toda a gente participe enquanto cidadão. É possível colmatar uma série de necessidades básicas se houver investimento financeiro, uma vontade política real e uma vontade humanitária para o fazer.
Catarina sublinha "a importância de nos insurgirmos, de nos indignarmos junto dos nossos representantes Europeus através do ato democrático, em prol dos direitos humanos". Todos os direitos para todos, sem exceção. Foram dezenas as entrevistas realizadas pela Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), para dar voz a quem não se consegue fazer ouvir. Refugiados da Síria, do Sudão do Sul, da República Democrática do Congo, do Afeganistão, do Myanmar, do Iémen, da Venezuela, e de outros países onde a Paz é uma ilusão.
"Não podemos consentir estas violações dos direitos humanos. Prometi-lhes ecoar o seu apelo e cumpro a minha promessa."
“Eu não quero, não posso e não consigo - não só enquanto comunicadora, não só enquanto embaixadora da Boa Vontade, não só enquanto mulher; mas sobretudo enquanto cidadã deste mundo - ignorar. Se tenho um microfone e uma câmara (e mesmo que não tenha estas ferramentas), não posso deixar estas pessoas esquecidas. Não podemos consentir estas violações dos direitos humanos. Prometi-lhes ecoar o seu apelo e cumpro a minha promessa”, colmata Catarina.
Fotografia de Ricardo Freitas
Fotografia de Ricardo Freitas
A escolha certa
Portugal, enquanto país da União Europeia, tem um nível de acolhimento acima da média, mas tem que continuar a mostrar a sua solidariedade. As pessoas que podem decidir os contornos destas situações e a agilização dos processos de requerimento de asilo, são pessoas que vão ao local. E mesmo assim, assistindo às condições miseráveis destas pessoas e levando com impacto direto nas suas consciências, escolhem não agir. É uma escolha. Os refugiados não têm nenhuma escolha e isso deixa-os com uma linha de horizonte dolorosamente curta.
Por tudo o que aqui foi escrito, Catarina Furtado não se vai calar nunca - palavras da própria, quando terminamos a nossa conversa por telefone. E nós também não. É urgente falar, porque quem cala consente e porque, sem essa urgência, será impossível agir.