À minha frente tenho o berço. Ainda lhe faltam os lençóis, as almofadas, e tu, embalado num sono leve como o correr de um ribeiro, tal e qual como te imagino agora dentro do meu útero.
À minha frente tenho o berço. Ainda lhe faltam os lençóis, as almofadas, e tu, embalado num sono leve como o correr de um ribeiro, tal e qual como te imagino agora dentro do meu útero. Não sei o teu género, não quis saber, nem que nome te vou dar. Mas conheço bem a coreogra- fia dos teus movimentos dentro do meu ventre. Por volta dos quatro meses de gravidez, ainda que na dúvida, disse: “Acho que senti o bebé”.
Fotografia de Simon Schmidt. Styling de Aimée Croysdill.
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O teu pai pousou a mão na minha barriga mas, na ausência de qualquer movimento, proferiu que talvez fossem apenas gases, fazendo com que os presentes soltassem uma gargalhada. “Talvez”, concordei, embora crente de que as cócegas que acabava de sentir eram distintas de qualquer atividade intestinal. Um momento só nosso, impercetível ao nível da epiderme. Um bailado para o qual apenas eu obtive bilhete. Este espetáculo privado a que me privilegias diariamente vai estar em cena apenas mais umas semanas. Depois hás de começar a tua tournée, onde darás a quem já te ama, mesmo sem te conhecer, a chance de te pegar ao colo, contemplar o lento ondular do teu bocejo e a tua pele aveludada como a dos pêssegos que nascem no quintal da bisavó Elisabete. Ela, a quem a cegueira tirou o privilégio de alguma vez vir a conhecer a cor dos teus olhos, irá percorrer o mapa das tuas feições com os seus dedos tão rugosos como os troncos dessas mesmas árvores onde à sombra nos sentaremos. Embora impossibilitada de te ver, tenho a certeza que dirá, talvez com os olhos alagados em lágrimas: “Que bonito que é o bebé.”
No ar, suspensas, boiavam as nuvens. Estávamos em dezembro. Havia muito pouco tempo que tínhamos tomado a decisão de finalmente criar família. O teste de gravidez revelou duas linhas cor-de-rosa. Uma delas meio pálida, o que me fez duvidar da precisão do mesmo. Enquanto eu, paralisada, as tentava decifrar, o teu pai, numa voz que me parecia muito distante e quase inaudível apesar da sua proximidade, lia o panfleto, confirmando que, apesar da esqualidez do teste, eu estava deveras grávida. Apercebendo-me de que a vida pulsava dentro de mim, desmoronei nos braços dele num choro mudo que lhe ensopou o peito com lágrimas de felicidade e de surpresa. Permito-me rebobinar até ao verão de 2020. O mundo vivia numa angústia ofegante, uma pandemia havia silenciado as ruas e a população mundial via-se cativa nas suas próprias casas onde, uma vez divorciada das distrações do bulício da vida, foi forçada a coabitar com os seus distúrbios e os seus fantasmas interiores. Apesar de doente há muitos anos com esta patologia tantas vezes camuflada por sorrisos postiços, foi por esta altura que o teu pai foi diagnosticado com uma depressão profunda. Uma perturbação mental que, à semelhança do nome do vilão na saga de Harry Potter é, ainda nos dias que correm, um assunto “Cujo-Nome-Não-Po-de-Ser-Pronunciado”. É bizarro pensar que a maior assassina de homens abaixo dos 45 anos de idade seja penas figurante muda nos palcos que são as conversas entre amigos e familiares. Depressão. Depressão. Depressão. Depressão. Repito para que, mesmo no ninho que é o meu ventre, saibas que na casa onde nascerás as tuas dores nunca serão motivo de censura.
Sem querer amaciar a verdade espinhosa, houve vezes em que temi o pior. Em que reconheci no olhar baço do teu pai a incapacidade de ver outra solução se não a extinção. Temi que a felicidade com que, de olhos fechados, todas as manhãs o vejo procurar o cume da minha barriga nunca se concretizasse. Temi que em vez de chama ardente, virasse cinza. Temi que o metro quadrado do meu abraço não tivesse espaço para todos os seus desassossegos. Temi, principalmente, que murchasse como uma folha de outono por tanto chorar pelo avesso. Foi depois de mais uma noite em claro na companhia dos pensamentos intrusos que ininterruptamente lhe atropelavam os sentidos anunciando constantes catástrofes fictícias que tomou a decisão. Esperou que eu acordasse e, desviando-me o cabelo dos olhos, encaixando-o na curva da minha orelha como se de uma cortina se tratasse, disse: “Vou marcar uma consulta com o psicólogo.” Esta não era a primeira vez, mas sim a quarta, que o teu pai se propunha a receber ajuda profissional. A diferença é que, nesta ocorrência, a iniciativa vinha da parte dele em vez de ser insistência minha. Abracei-o e, por fim, desacorrentei um suspiro aprisionado há anos pela impossibilidade de não conseguir ajudar quem até então não queria ser ajudado.
Os meses que se seguiram foram pautados por muitas horas de terapia através de Zoom – curiosamente, naquele que veio a ser o teu quarto. Com o tempo, medicação, disciplina e muitas conversas profundas em atraso, os seus pensamentos negativos começaram a esvanecer-se como bolas de sabão num voo harmonioso. O teu pai virou, por último, um pássaro livre da gaiola que sempre foi a sua mente. Quando neste berço que tenho diante de mim te deitarmos, ler-te-emos contos de desencantar. Contos onde é rachado todo o nosso ser, onde o certo é o imperfeito e nem toda a abóbora é carruagem. Amar é assistirmos a vários funerais da mesma pessoa e escolhermos amarmo-nos em cada reencarnação. Tu, tronco da minha raiz, és fruto desta lenta e longa metamorfose. És semente na terra e rebento na primavera. És amor que se ramifica. És a teoria do Big Bang. És, simultaneamente, primeiro capítulo e final feliz. Tu, que estás mais perto de mim do que alguma vez alguém já esteve, eras um desejo nosso há muito adiado pelo medo. Será que, de dentro do teu casulo, espreitas o mundo através dos meus olhos? Será que, através deles, detetas no rosto do teu coautor a vontade que tem de beijar o vale entre as tuas sobrancelhas e de massajar o rio que é essa tua espinha frágil? Será que, mesmo nesse leito líquido, sabes que por ti ele renascerá as vezes que forem precisas? É nesta vírgula que é o teu nascimento que começa o resto das nossas vidas. Eu, aquário prestes a virar nascente, e tu, célula de um corpo chamado universo. Dois corações num corpo só, aguardando um pelo outro com a euforia de quem espera por chuva no deserto. Não te demores.
Ficha Técnica:
Grooming: Emily Wouters com produtos da Kjaer Weis, Ruhaku e Tata Harper.Iluminação e assistente de fotografia: Nathan Scott.
Editorial realizado em exclusivo para a Vogue Portugal.
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