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Christmas tales

23 Dec 2020
By Ligh House Publishing

Todas as pessoas têm memórias especiais associadas ao Natal. O mesmo acontece com os membros da família Light House, editora responsável pela publicação da Vogue e da GQ em Portugal. Por isso decidimos abrir o álbum de recordações, e partilhá-lo com todos os leitores. Como prova do nosso imenso, e inesgotável, amor.

Todas as pessoas têm memórias especiais associadas ao Natal. O mesmo acontece com os membros da família Light House, editora responsável pela publicação da Vogue e da GQ em Portugal. Por isso decidimos abrir o álbum de recordações, e partilhá-lo com todos os leitores. Como prova do nosso imenso, e inesgotável, amor.

FOTOGRAFIA: SARA TASKER @ME_AND_ORLA

Sara Andrade, Diretora de Novos Projetos 

As minhas histórias de Natal mais queridas começam sempre no mesmo sítio: no Funchal. O sítio onde passei todos os Natais da infância e mais além, partilhando a casa dos avós com a família direta. A moradia de dois andares, onde chegámos a ficar dez de uma vez, tinha duas grandes portas em madeira com vidro amarelo, fosco e martelado, e eu lembro-me de estar com o meu irmão e o meu pai do lado de dentro a tentar ver para fora porque o meu pai dizia que o Pai Natal estava a passar no trenó. Devia ter uns sete ou oito anos, mas lembro-me perfeitamente desse momento e de dizer ao meu pai que sim, que estava a ver o trenó e as renas e o São Nicolau. Recordo-me também, perfeitamente, que não estava a ver absolutamente nada. Mas continuo a ver aquele momento entre os três, que podia ter ficado esquecido nos arquivos da memória, perfeitamente na minha mente.

Rui Matos, Jornalista

Não há músicas a ecoarem pelos corredores. Não há ninguém vestido de Pai Natal. Há barulho e muita ansiedade. Isto porque, um ano qualquer que não sei precisar porque fiz questão de o eliminar da minha memória, a minha família decidiu aderir a um jantar de Natal extenso, com uma mesa farta e rodeada de tios e primos, numa cena muito cinematográfica, com um elenco de mais de 20 pessoas. O horror. A tragédia. Toda a gente falava por cima de toda a gente. Os ideais não eram compatíveis com o parceiro do lado. E os gostos de cada um eram tão divergentes que arrisco a dizer que se erguiam uns três ou quatro muros de Berlim naquela sala de jantar. A pior parte deu-se quando a troca de presentes aconteceu, pois claro! Um alvoroço provocado pelos meus primos mais novos, uma histeria desmedida e uns guinchos sem fim. Um filme de terror classe B que nem os mais alternativos conseguiriam ver até ao fim... Para mim uma noite de Natal especial passa por não tirar o pijama o dia todo, vestir a coisa mais confortável que existir para o jantar, e passar a noite com os meus pais, o meu irmão, e os meus padrinhos a conversar em frente à lareira. Isto sim é um Natal especial – pode parecer enfadonho, mas é tudo aquilo que preciso e peço. E é óbvio que os meus pais nunca mais se meteram noutra ceia de Natal com mais de sete pessoas...

Ana Murcho, Chefe de Redação

Nem sempre fui este Grinch que hoje treme assim que alguém menciona coisas como “iluminações de Natal.” Tempos houve em que gostava, genuinamente, da época. Quando era criança, por exemplo. Lembro-me das vésperas de Natal passadas em casa da minha tia, com a confusão e o barulho gerados pelo impacto de 20 e tal pessoas que se tentavam organizar num caos impossível de controlar. Era delicioso. Entre os jantares que se prolongavam muito para lá da Missa do Galo (a que nunca íamos) e as traquinices próprias de um bando de crianças que já não acreditavam no Pai Natal e apenas queriam descobrir onde estavam as suas prendas. Havia uma certa magia no ar que se foi perdendo no tempo, e na ausência das pessoas que, com o tempo, se foram embora. Lembro-me daquele ano em que, no meio da revolução de embrulhos, eu e os meus primos atirámos parte de um presente para a lareira, algo de que só nos demos conta quando o cheiro a queimado era demasiado intenso para ser “apenas papel.” Ou aquela vez, provavelmente das últimas que tivemos enquanto família grande e feliz, em que a minha avó disse à minha prima: “Que bonequinho tão lindo, Filipinha, quem é que to deu?” Ao que ela, incrédula, respondeu: “Foi a tia que me deu! Não se lembra de o ter comprado?” O Natal, agora, tem muito menos graça, tem muito menos tudo, mas quase posso jurar que ainda consigo ouvir a minha avó, que agora nos acompanha lá de cima, a rir-se perdidamente, um riso que destilava felicidade e amor.

Paula Bento, Assistente de Redação

Estávamos no ano de 2004, a minha filha tinha três anos, na altura. Lembro-me que esse Natal foi diferente de todos os outros. Pela primeira e única vez, consegui reunir na mesa de Natal quatro gerações da família: eu, a minha filha, a minha mãe e as minhas duas avós, materna e paterna. As minhas avós (que já não se encontram entre nós) estavam embevecidas de ver a sua querida bisneta encantada com todo o ambiente natalício. Nesse ano, fiz algo novo... Fui à serra apanhar musgo (largos pedaços de musgo inteiros e húmidos que coloquei numa caixa) para cobrir o chão em redor da árvore de Natal, formando um tapete, onde colocaria o presépio. A minha avó materna sempre foi dada à confeção de filhoses e coscorões e, nessa noite, estávamos todos reunidos à volta dela e do fogão, onde colherada a colherada de massa, saltava, no óleo a ferver, o que seriam, depois, as maravilhosas filhoses. Era um cheiro tão característico que ainda hoje o consigo identificar. A minha avó amassava sempre a massa na véspera, num enorme alguidar de barro e embrulhava-o numa manta enorme que deixava a levedar não sei quantas horas, até obter a consistência exata. Eu e a minha mãe éramos responsáveis pelo corte dos coscorões, com um utensilio próprio para cortar a massa e que fazia uns desenhos em ziguezague que os diferenciava dos restantes fritos. No fim entrava o meu pai, que passava os fritos por um preparado de açúcar e canela, dando-lhes o toque final. Quando tocou a meia--noite, ouviu-se a voz do Pai Natal. Nada mais nada menos que o meu irmão, que sempre adorou o Pai Natal e se ofereceu para aquele papel, com uma barriga gigante, uma barba fictícia e uns óculos escuros para a minha filha não o reconhecer. Este momento poderia ter sido um sucesso, não fosse a miúda desatar num choro descontrolado e quase desesperado, por não querer o Pai Natal lá em casa. O meu irmão bem se esforçou para alegrar aquele momento, demonstrando que o homem de barbas brancas é bonzinho e leva presentes, mas ela nem o queria ver. Recordo-me do olhar desolado do meu irmão, que não sabia o que fazer para a animar. Ao final da noite, estávamos todos numa bolha de amor que é, afinal, a nossa família, que nos ama, incondicionalmente. Penso sempre neste Natal como o mais especial de todos, e sinto saudades de outro Natal assim.

Maria Nunes, Estagiária Vogue & GQ

Na minha família a personagem do Pai Natal é sorteada a cada ano, mas normalmente são as figuras masculinas mais velhas que acabam sempre por tomar o papel. Até àquele ano, para mim, o Pai Natal aparecia à meia-noite para entregar os presentes e nada mais importava. Nunca me apercebi qual era o elemento da família em falta ou se o figurino estava bem feito. Até ao ano em que o meu padrinho decidiu chegar-se à frente. Um pouco (bastante) mais jovem do que as outras pessoas que já tinham encarnado o papel de Pai Natal, para ele foram necessários alguns acessórios extra. Quando a figura emblemática apareceu às doze badaladas, notei logo que era estranho o homem das barbas brancas estar de óculos de sol e, coincidência, muito parecidos com os da minha mãe, que não eram propriamente discretos. O que me confirmou as suspeitas foi a minha (adorada) almofada gigante cor-de-rosa choque da Barbie, que começava a escorregar por debaixo da camisola dele. Não foi uma boa ideia escolher um objeto amado por uma criança, que não deixava que ninguém tocasse nele e que o levava para todo o lado. Com isto já não me conseguiram enganar. Esperei que toda a azáfama acabasse e depois partilhei a minha conclusão, deitando uma lágrima (ou várias) de tristeza e desilusão. Aquele deslumbre de criança já não voltaria mais. 

Helena Almeida, Estagiária de Moda

Natal, essa palavra que deriva em tantos pensamentos, em tantas associações de palavras, em tantas atitudes e em tantos cheiros. No meu caso específico, contar uma história de Natal ou algo que se assemelhe a isso, o clichê recai sobre a palavra "família." Não consigo pensar numa história, daquelas lindas com introdução, desenvolvimento e conclusão, como seria de esperar, penso antes em "momentos." Ser filha única faz com que a maioria dos momentos vividos no Natal sejam de uma forma mais independente, se é que lhe posso atribuir esse nome, mesmo durante o meu crescimento. Assim sendo, não existe, para mim, história de Natal mais bonita do que uma mesa cheia, cheia de gargalhadas, cheia de conversas, eventualmente uma ou outra nódoa de vinho na toalha mais bonita que a avó comprou para a ocasião, e as novidades do quotidiano que vamos contando em torno dessa mesa. Basta esse momento de fraternidade e amor entre todos ali sentido como se de uma nuvem se tratasse, uma nuvem de purpurinas e cheiro a canela, que paira em cima dessa mesma mesa e dessa mesma família invocando a palavra amor, o amor que sentimos uns pelos outros. Um amor que cresce todos os anos por continuarmos o mesmo número de indivíduos sentados em redor daquele retângulo ao qual chamamos de mesa. Esta é a minha história, e revela a parte mais importante de mim: o amor sentido pelos meus, e pela família. 

Marta Castro, Advertisement and Events Manager

As memórias mais marcantes do Natal remetem-me para quando era mais nova, acho que quando somos pequenos vivemos o Natal com uma intensidade diferente de quando somos adultos. Eu venho de uma família grande, por isso quando nos juntamos a casa fica cheia, barulhenta, e a confusão abunda nos nossos encontros. E não precisa de ser Natal para isso, não somos aquela família que não se vê o ano inteiro e só nas ocasiões especiais é que se junta. Desde que me lembro que cumprimos as mesmas tradições, que fomos adaptando à medida que fomos crescendo. Quando eu e os meus primos éramos crianças nunca ansiávamos ficar na mesa dos adultos, nós queríamos era jantar o mais rápido possível para irmos furar todos os embrulhos e ver o que cada um ia receber e se era aquilo que tínhamos pedido na carta que tínhamos escrito ao Pai Natal. Apesar de a meia-noite ser cumprida lá em casa, lembro-me de uma vez em que nós, as crianças, nos juntámos e invadimos a mesa dos grandes a cantar músicas de Natal porque o jantar estava a demorar muito e estávamos com medo que não se despachassem a tempo. Lembro-me de todos os SingStar que cantámos e dos jogos de Buzz que jogámos enquanto esperávamos pela chegada do Pai Natal. Lembro-me da cara de desilusão da minha prima quando descobriu que o Pai Natal era a mãe dela, após vários anos de "Mãe perdeste os presentes, onde estavam?" e a resposta ser sempre a mesma: "Não acredito, estava na casa de banho outra vez!"- ainda hoje é a minha tia o Pai Natal. São muitas as memórias e neste momento, depois de pensar nelas, sinto-me novamente uma criança que anseia ver a família a entrar pela porta no dia 24 de dezembro.

Diego Armés, Chefe de Redação GQ

Às vezes sinto saudades do meu irmão. A minha família nunca foi muito de ajuntamentos massivos, se descontarmos os casamentos de primos em segundo e terceiro grau a que fui em criança e que me davam sempre a impressão de ser parente de uma fatia substancial da população portuguesa. Porém, os nossos Natais sempre foram reservados: eu, o meu irmão, os meus pais, pontualmente os meus avós maternos, uma mesa farta e invariavelmente um jogo de mesa que era o primeiro presente a ser retirado da árvore e desembrulhado para gáudio dos presentes (o meu pai é o mais infantil de todos: às dez da noite, ainda com as sobremesas por comer, não resiste a perguntar – e a insistir – se já pode abrir a primeira prenda). Certa vez, num Natal de finais dos anos 90, o jogo de mesa era o Trivial Pursuit. Começámos a jogar e não parávamos. Os meus pais, entretanto, desistiram; eu e o meu irmão continuámos. Lembro-me de termos percebido que, para as perguntas de escolha múltipla, a resposta certa era sempre a do meio (eram três hipóteses, A, B e C) e de eu ter respondido a uma dessas perguntas com displicência, “A do meio”. Não era. Errei e, profundamente desapontado, deixei escapar um “Pôxa”, como dizem os brasileiros nas telenovelas da Globo quando ficam desapontados. E então começámos a rir, e continuámos, e o riso foi aumentando, e aumentando, até que se tornou incontrolável – ao ponto de a minha mãe se ter levantado da cama para nos vir pedir silêncio e juízo (o meu irmão, por esta altura, rebolava no chão a rir, em lágrimas). Às vezes sinto saudades desse Natal.

Mariana Matos, Designer gráfica 

Para muitos o Natal é uma época jubilosa, símbolo de família, comida, prendas, luzes. Contudo, existem alguns "desafortunados" que não consideram o Natal, por um motivo ou por outro, uma época assim tão especial... Mistério dos mistérios, eu sou uma dessas pessoas. Tentando ver a época pelo lado positivo, desde pequena me refugiei nas longas sessões de cinema que os quatro canais generalistas nos proporcionavam – sim, eu sou uma 90’s kid que, na sua tenra infância, não teve acesso a canais por cabo ou, mais tarde, a boxes do futuro que nos permitiam andar para trás no tempo. Fiz então destas noites de “estreias” televisivas a minha tradição, chegando mesmo a engolir de uma assentada o jantar natalício. Contudo, tal tradição encontrou no ano de 2009 uma ocorrência fatídica. Recordo-me de ter sido o Natal mais tempestuoso da minha vida, não por ter sido um dia superagitado em termos de tarefas, mas sim por ter existido uma tempestade de chuva e trovoada como não há memória – relembro-vos que grande parte do país ficou sem luz durante uns dias, incluindo a minha casa. Nesse ano a grande estrela da minha programação era o filme da Pixar Wall-E, que tinha tido a sua estreia nas salas de cinema doze meses antes, e que eu estava desejosa de ver. Estarei a mentir se disser que não derramei uma lágrima nesse dia, pois durante toda a noite, incluindo o jantar à luz das velas, tive sempre a esperança que a eletricidade voltasse milagrosamente. Spoiler alert, não voltou... Apenas anos mais tarde teria a minha desforra e conseguiria ver o filme com recurso a esquemas piratas. I’m a criminal, I know. Shhh... Chegando ao fim do ano de 2020 (finalmente!), aproxima-se também a tão esperada época natalícia. Ainda não foi revelada a programação, mas já sabem onde me encontrar – esparramada na chaise longue, enrolada em mantas que nem um burrito, em frente à televisão – fazendo figas para que este não seja novamente um Natal trágico.

José Santana, Diretor GQ

Não me consigo lembrar da idade que tinha quando descobri que o Pai Natal não era real. Não me lembro da idade, mas nunca me vou esquecer desse momento. Talvez por a minha mãe ser muito religiosa, o Natal sempre foi o acontecimento maior da família. Ainda em Luanda, com uns seis anos, vi o Pai Natal, soube muito tempo depois que era uma das minhas irmãs a fazer o papel, mas aquele momento, como numa investigação policial, ficou para mim como uma prova irrefutável da sua existência. De Angola fui viver para uma pequena aldeia na Galiza, terra dos meus avós maternos. Nesses anos, o Pai Natal e os Reis Magos conviveram juntos. O Natal não era só presentes, eram sons, luzes, cheiros, lenha a arder nas lareiras, e claro, o nascimento de Jesus. Os presépios fascinavam-me e naquela pequena aldeia, nesta época, todas as lojas tinham um na montra. Como o meu pai não conseguiu trabalho, com dez anos vim viver para Lisboa. Os cheiros mudaram, mas o fascínio pelo Natal não. Foi aí que pela primeira vez comecei o ser confrontado por colegas, que pareciam já mais homens por saberem mais da vida, por saberem coisas como a não existência do Pai Natal – uma linha que separa o sermos crianças de sermos adultos. E se, nessa altura, ser criança é motivo de gozo, hoje pergunto-me se se terão arrependido de terem tido tanta pressa em largar a inocência da infância. Mas eu tinha a prova “forense” de o ter visto, e quando já nenhum dos meu colegas de escola acreditava, eu, durante os meses de dezembro, deixava de lado parte do dinheiro que tinha para o almoço para comprar uma bola de Natal todos os dias, na feira que havia à frente da estação de comboios do Cais do Sodré, e o momento alto do meu dia era chegar a casa e pô-la na árvore. Até que chegou o tal dia, o dia que não sei exatamente que idade tinha, mas lembro-me de estar no carro, sozinho com a minha mãe enquanto esperávamos pelo meu pai, e lhe disse que sabia que o Pai Natal não existia. Ela negou e eu insisti, como se fosse o rapaz que já não era criança. Quanto mais ela negava, mais eu insistia, desejando no fundo que ela o negasse a vida toda, e já sem estar à espera ela disse finalmente o que eu não queria ouvir. Não sei se ela se apercebeu que chorei em silêncio todo o caminho de volta para casa. Durante algum tempo o Natal perdeu o lado mágico que me fazia acreditar que o mundo era um lugar melhor nessa época e que todas as crianças tinham presentes de Natal. Até que fui pai, e me interroguei se faria sentido fazer a minha filha ter o desgosto que eu tive, mas poupá-la a ele era privá-la de toda a magia que eu vivi e acho que é assim que os pais passam a ser um dos milhões de Pais Natais que há pelo mundo e talvez seja mesmo verdade que ele se torne um pouco melhor nesta época. Talvez por nos lembrarmos de quando éramos crianças e acreditávamos no Pai Natal.

Sofia Lucas, Diretora Vogue

O Amor - na sua beleza e brutalidade - pode desfazer-nos completamente. Mas essa mesma força tem, também, o poder de nos regenerar, de nos recriar, de nos refazer. Dos primeiros laços, que nos formam e moldam, aos grandes amores da nossa vida, as relações são aquilo que semeia o nosso crescimento, o laboratório da invenção e reinvenção de nós próprios. Segundo investigações na área da Psicologia, realizadas acerca do impacto do amor na reconfi guração do cérebro, quem somos e quem nos tornamos depende, em parte, de quem amamos. Mas quem amamos depende, igualmente, de quem somos, e de quem queremos ser. O Amor, como o Tempo, é uma função nossa tanto quanto nós somos uma função dele. Talvez por isso seja tão difícil, ou impossível, materializá-lo em estudos, menos ainda em palavras, em que nunca vai caber.

Quando falamos de amor, voltamos ao início, como se precisássemos sempre de assinalar onde tudo começou. Uma mãe está além de qualquer noção de começo. Isso é o que a torna uma mãe: o facto de ser quem começa a nossa história, ainda antes de nós. As pessoas que mais amamos tornam-se uma parte física de nós, enraizadas em nós, nos caminhos onde as memórias são criadas. Nesta edição dedicada ao Amor, nas suas mais variadas vertentes, era impossível não incluir o Natal - “aquela altura do ano.” Aquela que, como que por magia, parece entrelaçar-se com o amor, e acende todo o tipo de luzes, das mais quentes às mais frias, mesmo as que passaram o resto do ano adormecidas. Aquela altura em que o mundo parece ficar mais sensível e solidário, mesmo que com prazo de validade. Pedimos a toda a equipa que partilhasse uma história pessoal relacionada com o Natal e, ao pensar nas minhas histórias de Natal, todas começavam, e terminavam, na minha mãe.

A minha magia do Natal sempre foi ela, mesmo que durante anos não o tivesse percebido, e tivesse tomado por garantida uma alegria e uma felicidade que não entravam pela chaminé, mas sim pelo amor e pelo coração de mãe que só nos queria ver e fazer felizes, a mim e à minha irmã. Os pinheiros enormes, cheios de luzes, fitas e bolas, que nunca condiziam, e que nos deixava decorar à nossa vontade, os chocolates Imperial, em forma de Pai Natal, joaninhas e pinhas, com que nos podíamos deliciar - com um, e apenas um, por dia. Eu não guardava para o dia seguinte o chocolate que podia comer logo, no imediato, já a minha irmã tinha uma arca dos tesouros, onde escondia todos os que ia amealhando. A família toda, junta e barulhenta, à volta da mesa, para o jantar de Natal cozinhado pela minha mãe. O sabor desses chocolates, o cheiro desses dias e dessas noites, impossíveis de reproduzir hoje, continuam nítidos como se tivessem acabado de acontecer. Acho que me lembro de todos os Natais, desde que tenho memória. Com exceção de um, no ano em que o meu pai morreu, quando eu tinha nove anos. Provavelmente, nesse ano, nem a minha mãe, nem todo o seu amor por nós, conseguiram fazer o Natal acontecer. As luzes não se acenderam em nenhuma de nós... daí o apagão total da minha memória.

A luz da minha mãe nunca mais foi a mesma, mas no Natal algo se voltava a iluminar nela, por nós. E continuava a cozinhar para toda a família, como sempre fez questão. Mesmo nos piores momentos da sua vida em que, destroçada e sem dinheiro, passava noites inteiras acordada a fazer, às escondidas, os nossos presentes de Natal. Esses são os presentes que guardo até hoje: numa caixa e no melhor canto da memória, reservado à felicidade, essa que sentia ao abrir os embrulhos e descobrir um estojo feito em tricot, cheio de lápis de cor, um guarda-roupa completo - camisas de noite e roupão incluídos, taylor made, para a minha Nancy (aquela boneca de cara sinistra, que era “a boneca" que toda a gente tinha, destronada pela Barbie nos anos seguintes). Os Natais passaram, a família foi crescendo, eu e a minha irmã casámos, as ceias continuavam a ser cozinhadas com todo o amor e dedicação, cada vez para mais gente, sempre sem se desviar um milímetro das suas receitas, que a minha mãe não é pessoa que improvise ou goste de experimentar algo novo. E começaram a chegar os netos. A minha mãe, tímida, introvertida, pouco dada a máscaras, achou que aos netos não bastava dizer que o Pai Natal existia e que deixava os presentes enquanto dormiam, como fez connosco. Ele tinha de aparecer, com o saco vermelho e as barbas brancas. E assim foi. A minha mãe, franzina e com menos de um metro e meio de altura, mais uma vez costurou magia, e fez um fato completo de Pai Natal, com que se vestia religiosamente e saía de casa, para tocar à porta, à meia noite e meia noite em ponto, no auge do nervosismo das crianças, para entrar na sala a arrastar um saco vermelho maior do que ela, abarrotado com os presentes dos netos. Carregado com um amor maior que ela.

E os Natais passaram e os netos cresceram à medida que minha mãe diminuía. Vestiu-se de Pai Natal até há cinco anos, quando a mais nova dos quatro netos, já com nove anos, lhe confessou que já sabia quem era o "Pai Natal". Continuou a cumprir milimetricamente as suas receitas perfeitas por mais um ano ou dois. Hoje tem 80 anos, e a demência roubou-lhe a luz do Natal e todas as memórias recentes. Mas não lhe roubou as passadas, nem tudo o que (nos) liga nessa luz, que não tem tempo nem distância: o Amor. Porque o amor não tem de ser entendido nem explicado, só precisa de ser sentido. E mesmo que não saiba que dia é, ou onde está, vai sempre sentir-se em casa, e protegida, por quem a ama. Os Natais vão continuar a passar, e mesmo não sabendo como serão os Natais do futuro, da minha filha, dos meus sobrinhos, dos filhos deles, sei que vão ser o que nunca teriam sido, se não tivessem sido tocados pelo amor, e pela magia, de todas as pessoas com quem tiveram o privilégio de crescer.

 

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