No mês do orgulho LGBTQI+, damos a palavra a Sandra Cunha, socióloga e deputada do Bloco de Esquerda, para escrever sobre o seu coming out na primeira pessoa.
No mês do orgulho LGBTQI+, damos a palavra a Sandra Cunha, socióloga e deputada do Bloco de Esquerda, para escrever sobre o seu coming out na primeira pessoa.
Sandra Cunha © D.R
Filha de imigrantes, nascida em França, regressei a Portugal pouco tempo após a revolução de abril, em 1978. Posso dizer que tive uma infância tremendamente feliz. A quantidade de árvores e animais, o vento forte e o cheiro a mar preenchem as minhas primeiras memórias de Portugal. Lembro-me da irritação que provocava ao meu pai de cada vez que tinha de me resgatar dos topos das árvores às quais subia, mas das quais tinha medo de descer. Lembro-me do meu primeiro cão, que amei desmesuradamente, da excitação de começar a escola e de entrar na adolescência a ler tudo o que me passava pelas mãos. Os livros que a minha mãe escondia no móvel do hall ou os que a minha irmã, nove anos mais velha que eu, guardava no quarto e até as enciclopédias médicas que o meu pai insistia em encomendar.
Lembro-me de que foi durante os ensaios para uma peça de teatro sobre a evolução humana, no 6º ano de escolaridade e na qual eu devia representar o papel de uma mulher obediente e submissa, que nasceu a convicção de que a igualdade de género é condição para uma sociedade livre, igualitária e justa. Foi por essa altura que percebi que o mundo era diferente para rapazes e raparigas e que descobri também que a minha vida não era a vida de todas as crianças. Mas foi somente no 9º ano de escolaridade que uma rapariga sardenta de caracóis cerrados abalou o meu mundo. Susana, chamava-se. Éramos próximas e lembro-me de sentir o estômago às voltas de cada vez que chegava à escola e de o coração disparar quando dávamos as mãos. Nunca trocámos mais do que carinhos e nunca falámos sobre o que significava. Há 30 anos não se falava de homossexualidade. No máximo trocavam-se comentários em surdina sobre uma qualquer figura pública, necessariamente excêntrica. Um Prince ou um António Variações. Não havia associações, grupos de apoio, nem informação. Não havia Internet e na escola não se conhecia ninguém que se assumisse como gay ou lésbica. Não havia com quem falar nem a quem perguntar.
"Há 30 anos não se falava de homossexualidade. No máximo trocavam-se comentários em surdina sobre uma qualquer figura pública. (...) Não havia associações, grupos de apoio, nem informação."
Ajustei-me ao que julgava ser esperado de mim. Tive namorados e nunca namoradas. Aos 20 e poucos anos regressei a Paris e vivi o meu primeiro grande amor. Partilhámos casa e uma relação disfarçada de amizade. Regressei a Portugal três anos depois, onde novamente procurei viver a vida que acreditava ser a esperada de mim. Vivi com o meu melhor amigo e fui feliz em muitos momentos. Conto entre eles a adoção da nossa filha, na altura com sete anos, e que hoje é uma jovem mulher absolutamente extraordinária, solidária, aberta, empática, determinada e com um enorme sentido de justiça. Mas nem toda a felicidade do mundo conseguia disfarçar um sentimento de insatisfação e vazio persistente. Procurei preenchê-lo de todas as formas. Fui mãe, trabalhadora-estudante, abri uma loja, fui voluntária, ativista, criei uma associação, candidatei-me às eleições autárquicas pelo Bloco de Esquerda e lancei-me a tudo sem deixar espaço para parar ou pensar.
Viver a vida, fiel a quem me sentia ser, aconteceu mais tarde. Foi o corolário de um percurso de resistência mas moldado por uma sociedade conservadora e castradora. Percebi que o vazio que queria preencher nunca seria ultrapassado enquanto não fosse verdadeira, comigo e com os outros. A primeira pessoa com quem falei foi com a minha filha, na altura adolescente. A reação dela não podia ter sido mais aberta. O apoio foi absoluto. A partir dessa altura tudo ficou muito mais leve.
"Percebi que o vazio que queria preencher nunca seria ultrapassado enquanto não fosse verdadeira, comigo e com os outros."
O ativismo enquanto militante e dirigente do Bloco de Esquerda teve um papel importante na consciência de que a igualdade é um direito fundamental devido a todas as pessoas. O primeiro projeto de lei que defendi, enquanto deputada, na Assembleia da República, foi o que veio a consagrar a possibilidade da adoção por casais do mesmo sexo e esse conta-se entre um dos momentos de que mais me orgulho. Por esta altura, o coming out público já só poderia acontecer da única forma que me faz sentido. Sem tabus e sem medos. Aconteceu naturalmente, em resposta a perguntas de uma jornalista para uma peça sobre diversidade no parlamento. Respondi sem hesitação. Sei quem sou, o que sinto, como sou feliz e tenho agora a plena convicção de não tenho de me justificar a ninguém e muito menos de me esconder.
Hoje a igualdade em função da orientação sexual está consagrada na lei. O acesso ao casamento, à adoção, o direito à autodeterminação de género, o princípio constitucional da igualdade que garante tratamento igual e a proibição da discriminação. Hoje, temos centros de acolhimento LGBTI, informação, planos de ação para a inclusão, formação e educação para a cidadania e igualdade. Hoje temos uma sociedade mais aberta, mais inclusiva e mais respeitadora dos Direitos Humanos. Mas a realidade prova-nos que não estamos ainda livres do preconceito e da homofobia. O recrudescimento de setores conservadores na Europa, e um pouco por todo o mundo, mostra-nos como o retrocesso em matéria de direitos humanos acontece num ápice. Esse discurso conservador já se estendeu a Portugal e por isso temos de estar atentos, unir esforços e não largar a mão de ninguém na defesa da diversidade, da igualdade e da liberdade.
"Hoje temos uma sociedade mais aberta, mais inclusiva e mais respeitadora dos Direitos Humanos. Mas a realidade prova-nos que não estamos ainda livres do preconceito e da homofobia."
Hoje conquistamos o direito de amar quem quisermos. Mas a coragem de enfrentarmos os olhares, os comentários, a discriminação e sobretudo, a reação daqueles a quem mais queremos cabe a cada uma de nós. Importa lembrar que o mundo é sempre mais colorido fora do armário.
Testemunho originalmente publicado na edição de maio 2019 da Vogue Portugal.