Rodrigo Leão ajuda-nos a perceber como se compõe uma (boa) banda sonora.
Diz-se que uma imagem vale mais que mil palavras mas, no cinema, esse ditado parece cair por terra. Sem uma banda sonora adequada, será que uma imagem, por mais inesquecível, teria o mesmo impacto se surgisse sozinha, isolada? Será que alguns filmes iriam perdurar no nosso subconsciente da mesma maneira?
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© Getty Images
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Tenho ainda muito presente o dia em que vi pela primeira vez o filme Amélie (2001). Não foi no ano da estreia, nem tão pouco nas semanas, ou meses, que se seguiram. Foi muito mais tarde. Era eu um adolescente inquieto que morria de tédio nas férias grandes, aqueles três meses de puro dolce far niente antes do início das aulas. O verão a norte é quente e a brisa do campo nem sempre sopra a favor de uma tarde passada debaixo de uma qualquer laranjeira. Foi precisamente num dia tórrido que escolhi ver Amélie. Lancei-me ao filme de Jean-Pierre Jeunet sem grandes expectativas, mas Amélie depressa me conquistou. Não consigo ficar indiferente a alguém que explora a simplicidade da vida, que vê a beleza em quase tudo. Efémera, particular e maravilhosamente distinta, assim era esta apaixonante Amélie Poulain. A cinematografia é estonteante e muito reminiscente de uma Paris romântica, mas a verdadeira razão pela qual este filme está tão presente na minha memória é devido à sua banda sonora. É impossível não ouvir La Valse d’Amélie e não me lembrar da cena final, ou a maravilhosa Comptine d’un Ature Été: L’Après Midi e não ficar arrepiado, ou não esboçar um sorriso sempre que A Quai arranca no seu compasso frenético. A banda sonora, assinada por Yann Tiersen, carrega consigo todas as emoções que possamos imaginar e muitas são as vezes em que estas músicas me acompanham. Ainda hoje. Por muito que me custe admitir, o filme também não me sai da cabeça, por ser um romântico incurável. Tal como se diz, a determinada altura, nesta longa-metragem: “São tempos difíceis para os sonhadores…”
Outra partitura, que é como quem diz, outra banda sonora — ou original motion picture score, como lhes chamam os entendidos — que está bem presente na minha vida é a de The Virgin Suicides (1999), o début de Sofia Coppola na realização. Na adaptação para o grande ecrã da obra de Jeffrey Eugenides, Coppola transformou um romance obscuro numa história de amor entre adolescentes. E para marcar esse compasso frenético que é ser adolescente, a realizadora convidou o duo de electropop francês Air, que apenas aceitaria o desafio se pudesse trabalhar estas músicas como se de um álbum se tratasse. O resultado tem tanto de cósmico como de atmosférico, a sonoridade é muito influenciada pelo rock dos anos 60 e pela sonoridade psicadélica dos anos 70, com sintetizadores e teclados analógicos, guitarras e baixos que evocam os sons de The Dark Side of the Moon (1973), dos Pink Floyd, ou Abbey Road (1969), dos The Beatles. “As miúdas Lisbon são como um devaneio surrealista quando toca a Playground Love,” escreve Jillian Mapes, features editor da Pitchfork, num artigo sobre as 50 melhores bandas sonoras de todos os tempos. “Quando essa mesma melodia se repete ao piano em Highschool Lover, o lado cool das cinco irmãs torna-se melancólico e intenso.” Mas é Dead Bodies que me deixa inquieto, é nesta faixa que vejo o clímax, é aquela música à qual não conseguimos resistir, é aquela batida a que o nosso corpo se entrega, é aquela emoção indescritível que se sente, apenas.
“O verdadeiro espírito destas músicas é o fascínio pela morte e o fascínio por ter o espírito a flutuar quando se morre e […] sentir-se livre da Terra, de tudo aquilo que somos e do mundo dos adultos que realmente odiamos. Nunca me quis matar e nunca me senti assim tão mal, mas penso que as músicas para este filme são muito sobre esta ideia,” contou Jean-Benoît Dunckel, um dos elementos dos Air, à revista Dazed. Se o número de caracteres não fosse um problema, poderia continuar a discorrer sobre as bandas sonoras que mais me marcaram. Não sendo possível, não posso deixar de mencionar os sons sublimes de Georges Delerue para Le Mépris (1963), ou a tensão bem demarcada que Clint Mansell trabalhou para Black Swan (2010), heads up para a faixa Perfection, ou então o suspense que os Goblin criaram para Suspiria (1977). Há músicas escritas para filmes que se transformam em verdadeiras obras de arte: enquanto servem a visão de um realizador, conseguem traçar o seu próprio caminho.
O cinema pode ter-se iniciado sem diálogos, mas nunca foi de facto mudo. A música sempre povoou esses dinossauros do audiovisual. O som sempre esteve lá, mesmo que nove em cada dez vezes a sincronização não. Na era “muda” da sétima arte, a música que salpicava determinadas cenas era tocada ao vivo com músicos ao fundo das salas. Nas primeiras sessões de L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat (1896), dos irmãos Lumière, diz-se que parte do público saiu da sala por acreditar que o comboio iria sair da tela e invadir o local. Este tipo de impacto ocorreu por nunca terem visto imagens em movimento sincronizadas com o som de um comboio. A construção de uma cena precisa de um grande impacto visual, e isso é óbvio, mas a música é imprescindível — ou isto é uma coisa apenas minha que não vivo sem uma música de fundo? Seja para enaltecer um momento, para incriminar alguém, para acompanhar sentimentos e emoções, para o suspense, o horror e a tragédia, a música e o cinema estão sempre interligados — e essa relação é tão interdependente quanto poderosa.
No livro Audio-Vision: Sound on Screen (1993), o compositor e teórico francês Michel Chion afirma existirem duas formas para a música criar, num filme, uma emoção específica relativa à situação que é mostrada na tela: "Numa das formas, a música exprime diretamente a sua participação na emoção da cena, dando o ritmo, o tom […] evidentemente em função dos códigos culturais da tristeza, da alegria, da emoção e do movimento. Na outra, pelo contrário, a música manifesta uma indiferença ostensiva relativamente à situação, desenrolando-se de maneira igual, impávida e inexorável, como um texto escrito.” Já imaginou o Darth Vader a surgir no ecrã e sair da sua nave sem o famoso “ta na na ta na na ta na na ta na na na na ta na na”, ou por outras palavras, The Imperial March, de John Williams? Pode até ter imaginado, mas não é, certamente, a mesma coisa.
"A música nos filmes é de uma grande importância porque permite muitas vezes reforçar sentimentos, expressões, estados de espírito e acabar por dar alguma unidade à montagem final de cada filme. O cinema é sem dúvida a arte que mais me fascina até porque consegue reunir elementos tão diferentes como a fotografia, a música, o vídeo, os cenários,” começa por contar Rodrigo Leão à Vogue. Desde que se lançou a solo, depois de ter passado pelos Sétima Legião e pelos Madredeus, o repertório do músico lisboeta é muitas vezes descrito como cinematográfico. O álbum Cinema, que editou em 2004, é composto por temas que podem ser considerados excertos de bandas sonoras para diversos filmes, um trabalho que mostra a sua genialidade, a consistência do seu métier e a curiosidade em explorar caminhos inovadores. Leão, além dos mais de 25 anos de uma carreira que impõe respeito, já escreveu bandas sonoras para filmes tão diferentes como a comédia A Gaiola Dourada (2013), de Ruben Alves, ou o drama nomeado para os Óscares The Butler (2013), de Lee Daniels.
Por isso mesmo, quem melhor do que Rodrigo Leão para nos responder à questão: Mas como é que nasce uma banda sonora? “Nascem sempre das primeiras conversas que temos com os realizadores, com os primeiros guiões que nos dão para ler e mais tarde com as primeiras imagens que vemos,” explica. “O mais importante é percebermos muito bem os ambientes sonoros que nos são pedidos para os diferentes momentos. Por vezes, pode existir a necessidade de tentarmos escolher um género musical como ponto de partida. A escolha dos instrumentos, dos arranjos, dos músicos também é essencial quando pensamos na música para um filme.” E continua: “A procura de inspiração, de sons, melodias que possam estar ligadas às imagens que temos à nossa frente. Muitas vezes o mais importante é encontrarmos um tema principal que possa depois ter diferentes arranjos ou interpretações adequadas a cada momento. As personagens também nos podem ajudar a tentar encontrar ideias que ao longo do filme acabam por lhes ficar associadas.” Já sobre o processo criativo, o músico garante que jamais é igual. “É sempre diferente e, por vezes, surge com mais facilidade do que outras. É muito importante sentirmos exatamente o que nos pedem para cada cena, mas também para o ambiente geral do filme. Às vezes chego a enviar seis ou sete ideias para uma só cena de 50 segundos, e do outro lado vem sempre um não. Temos de procurar muitos sons, acordes, ideias e às vezes parece que ficamos bloqueados. Em determinados momentos temos de nos afastar um ou dois dias para depois tentarmos começar outra vez essa busca constante de ideias.”
Voltando à provocação que escolhi para abrir este texto, será que o cinema teria o mesmo impacto sem a música? A resposta de Rodrigo Leão: “A música pode ser mais importante nalguns filmes que noutros, mas a verdade é que temos exemplos de situações em que a música fica muito ligada às imagens e outros momentos que, apesar de não terem música, ganham uma grande dimensão. Há filmes quase sem música que são extraordinários e outros com muita música que não me tocaram tanto.” Mas sobre esses últimos não queremos saber, queremos, obviamente, saber qual é aquela banda sonora que deixa o músico e compositor de alma confortada. “Uma das minhas bandas sonoras preferidas é a do filme The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover (1989), de Peter Greenaway, com música de Michael Nyman, um dos músicos que me influenciou no início dos anos 90. Foi depois de assistir a este filme, no cinema Quarteto, que decidi começar a tentar compor o meu primeiro trabalho, Ave Mundo Luminar.”
As bandas sonoras estão para o cinema como Roma está para o Papa. Estas partituras são essenciais na sétima arte, têm o potencial de acrescentar novas dimensões e camadas emocionais que nem sempre a imagem consegue transmitir. Para uma sociedade tão habituada a ser bombardeada com informação e estímulos, as bandas sonoras conseguem assumir um papel primordial para manter o público interessado e emocionalmente comprometido com aquilo que está a ver, permitindo-o viajar além das imagens que são apresentadas. Mas o mais importante é aquele sentimento de satisfação que nos invade a alma assim que os créditos finais começam a surgir. É um momento libertador, de satisfação, é um momento especial que fica para sempre guardado na nossa memória e que, provavelmente, vamos recordar durante dias, semanas, meses, ou até anos. É esta a magia das bandas sonoras e foi tudo isto que senti naquela tarde de verão quando me lancei a ver Amélie.