Há cada vez mais campanhas de publicidade cujos protagonistas têm rugas, ou sardas, ou vestígios de estrias e celulite. Há cada vez mais marcas de maquilhagem e cosmética que abraçam a diferença, criando produtos pensados para todas as peles. Mas quererá isso dizer que a indústria da Beleza é inclusiva? Apesar de muitos avanços, a verdadeira mudança ainda não aconteceu.
Há cada vez mais campanhas de publicidade cujos protagonistas têm rugas, ou sardas, ou vestígios de estrias e celulite. Há cada vez mais marcas de maquilhagem e cosmética que abraçam a diferença, criando produtos pensados para todas as peles. Mas quererá isso dizer que a indústria da Beleza é inclusiva? Apesar de muitos avanços, a verdadeira mudança ainda não aconteceu.
Fotografia de Mehran Djojan
Fotografia de Mehran Djojan
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São poucas as imagens que me ficam na memória durante os passeios virtuais pelo Instagram mas uma, em particular, ficou gravada no meu pensamento de uma maneira que ainda não consigo colocar em palavras. A foto em questão focava apenas dois elementos: no fundo, uma televisão em que se podia ver uma das personagens do mais recente filme da Disney, Encanto, e, em primeiro plano, uma criança que sorria como se não houvesse amanhã. Da pele ao cabelo, cada detalhe deste desenho animado se assemelhava à aparência do pequeno menino com uma gargalhada sem fim. E na legenda lia-se: “É por isto que a representação importa.” A representação importa. Uma frase que já tinha visto nos quatro cantos das redes sociais, mas que ainda não tinha percebido na totalidade. Porquê? Porque raras foram as vezes em que não me senti representada, principalmente no seio da indústria da Beleza.
Não sei o que é sair de uma loja de cosmética sem ter encontrado um tom de base que se assemelhasse à minha pele. Não sei o que é olhar para um anúncio na televisão e pensar: “Não há ali ninguém como eu.” À primeira vista, poderá parecer algo positivo — e tem, na verdade, o seu lado bom. O facto de me sentir integrada neste setor fez com que me aproximasse dele, ao ponto de fazer da Beleza uma parte da minha carreira profissional. Mas também me prejudicou. Prejudicou-me porque me limitou, diminuiu os meus horizontes e a minha capacidade de pensar a indústria. Impediu-me, de certa forma, de quebrar uma corrente que continua a ser perpetuada, a corrente que pensa a Beleza segundo uma única perspetiva: a de uma mulher branca, magra, cisgénero, sem quaisquer características que possam dificultar a sua experiência no setor.
"(...) as coisas melhoraram, e já há uma maior diversidade, no entanto, não vejo nenhuma melhoria garantida" Nyome Nicholas-Williams
“Gostaria de começar por dizer que, enquanto consumidora e alguém que está dentro da indústria da Beleza, a representação importa, mas a representação nem sempre aborda ou resolve o problema.” Quem o diz é Sophia Hernandez (no Instagram, @flvmeprincess). É verdade que vemos cada vez mais pessoas de cor em campanhas publicitárias, ou modelos com corpos diferentes nas passerelles, mas até que ponto será isso um símbolo da verdadeira mudança? Para Sophia, é apenas um começo: “Mesmo que pessoas negras e de pele mais escura estejam a ser colocadas no primeiro plano de publicações e campanhas publicitárias, ainda há muita gente que não se revê ou não se sente confortável (…).” O problema reside na forma como a representação tem sido tratada, quase como se fosse um puzzle em que basta unir as variadas peças para se ver garantida a verdadeira inclusão. Uma pessoa com pele escura aqui, uma pessoa com pele clara ali, uma pessoa com um corpo maior acolá, e voilà, está a campanha montada. Not.
Por muito que estas quotas possam ter sido importantes no início, funcionando como um motor para o progresso da representatividade na indústria, sabe-se perfeitamente que o ser humano é demasiado complexo para se ver traduzido através de uma mera fórmula matemática. Nyome Nicholas-Williams (conhecida por @curvynyome nas redes sociais) luta há muito pela introdução dessa complexidade na indústria, tendo sido uma das primeiras modelos negras plus-size a integrar os desfiles de vários designers de Moda. Nas suas palavras, “as coisas melhoraram, e já há uma maior diversidade, no entanto, não vejo nenhuma melhoria garantida. (…) Até haver uma verdadeira representação visual de todos os que representam as várias comunidades, o trabalho não está completo.”
Cada ser humano possui um conjunto de características que o torna singular e inigualável, por isso é natural que seja difícil, ou até impossível, montar uma campanha que se dirija a todos os grupos, minoritários ou não, ou criar um produto cosmético que possa ser utilizado por qualquer pessoa. No entanto, há uma clara distinção entre aqueles que escolhem tentar e partir para a ação — mesmo que surjam algumas falhas pontuais pelo meio — e os que preferem ignorar o assunto. “Quando comecei a mostrar a minha pele, sem filtros ou sem Photoshop, não me senti aceite. (…) Era algo novo para muita gente, incluindo para as marcas.” Um testemunho que pertence a Kadeeja Sel Khan, a influencer que, através da sua conta de Instagram (@emeraldxbeauty), partilha o dia a dia real de uma pele com acne. “Quando quis começar a trabalhar com maquilhagem e marcas de Beleza, elas nem olhavam duas vezes para mim. Queriam alguém perfeito.” Perfeito. Alguém sabe sequer definir este conceito? Talvez alguns de nós tenham uma imagem clara, e até bastante uniforme, desse conceito. Provavelmente será algo como uma mulher jovem, magra, sem acne ou outras imperfeições cutâneas, sem qualquer deficiência motora ou singularidade corporal.
Será uma coincidência que esta noção de perfeição seja em tudo igual à imagem que a indústria da Beleza tem escolhido perpetuar? Mafalda Fonseca (no Instagram, @myfavouritemilkshake), criadora de conteúdos e “rainha da body positivity”, sente na pele como esses padrões de “perfeição” são, na verdade, um dos caminhos em que o setor cosmético mais necessita de progredir. “Enquanto mulher gorda não me sinto bem representada pela indústria da Beleza. Acho que o simples facto de ficar admirada cada vez que vejo alguém minimamente semelhante a mim é representativo de que a diversidade de corpos e quebra de padrões eurocêntricos na indústria ainda não é algo comum.” Até numa questão como o envelhecimento, algo que, mais cedo ou mais tarde, toca a todos/as, é possível sentir os preconceitos que surgem face à normal flacidez da pele provocada pela passagem do tempo. Renata Jaz fez do combate a esses preconceitos uma das suas mais importantes missões e, através da sua página de Instagram (@venswifestyle), sensibiliza consumidores e marcas para que “não nos sintamos surpreendidos quando vemos uma mulher madura a publicitar um creme para mulheres maduras” ou quando vemos linhas de Beleza serem desenvolvidas “para responder às necessidades das peles mais exigentes.”
“Enquanto mulher com deficiência, a coisa que mais preciso é ver mais mulheres com deficiências” Sophie Butler
Mas o grande calcanhar de Aquiles da inclusão nesta indústria espelha igualmente uma das grandes falhas do nosso próprio funcionamento enquanto sociedade. Lucy Edwards é invisual e não tem dúvidas quanto ao que a representatividade significa para si: “Até eu poder pegar num produto de forma independente e poder comprá-lo sozinha, eu, enquanto consumidora, nunca me sentirei completamente incluída.” E não é por falta de soluções. A jornalista e criadora de conteúdo, que partilha o seu quotidiano no Instagram (@lucyedwardsofficial) refere-se aos códigos de barras NaviLens como um dos mecanismos que, estando presentes na embalagem dos produtos de Beleza, facilitam a sua independência no processo de compra. O problema é que ainda são muito poucos os produtos que possuem esta tecnologia, ou outras alternativas igualmente eficazes que já existem no mercado. Da mesma forma, é importante apostar na representação.
“Enquanto mulher com deficiência, a coisa que mais preciso é ver mais mulheres com deficiências.” Para Sophie Butler (@sophjbutler nas redes sociais), a sua cadeira de rodas faz de si uma “Disabled-queen” — com D maiúsculo assumido — por isso afirma que, embora “muitas pessoas não associem a deficiência à Beleza, sensualidade ou criatividade”, é preciso passar a mensagem de que “as pessoas com deficiências são todas essas coisas e muitas mais. (…) Quando uma jovem mulher com deficiência puder olhar para as marcas, campanhas ou publicidades e ver-se representada de uma forma bonita, sexy, criativa e poderosa, ajudará muito para que nós mesmas nos sintamos assim”, explica a influencer e modelo.
No fim de contas, como pode a indústria da Beleza acatar (com sucesso) a tarefa de se tornar mais inclusiva? Sophie Butler deixa um conselho simples, mas eficaz: “Pode parecer quase revolucionário, mas a chave passa apenas por ouvir o consumidor.” E não é a única que partilha esta opinião. Segundo Sophia Hernandez, “o maior progresso [que aconteceu nos últimos tempos na indústria da Beleza] foi finalmente dar-se o microfone às pessoas de cor, no que toca ao que queríamos ver, por exemplo, em algo tão simples como a oferta de tons que atendessem às necessidades de todos ou simplesmente ter mais modelos com pele escura em revistas de Moda e Beleza ou em entrevistas como esta.” Providenciar uma plataforma a quem geralmente não se faz ouvir, incluir na criação dos produtos e das campanhas as mesmas pessoas para as quais esses produtos e campanhas estão destinados, são dois dos pontos que a maioria das entrevistadas avança como soluções essenciais à garantia da representatividade na indústria da Beleza.
Até porque essa é também a melhor maneira de evitar cair no erro de lançar iniciativas meramente simbólicas e sem grande significado ou, como define Mafalda Fonseca, “cobertas de tokenismo.” “Não é raro ver marcas a chamar influencers, e até modelos, que diferem daquilo que é a norma em termos de ideal de Beleza quando querem marcar uma posição muito pontual, e que depois nunca mais voltam a criar espaço para existir essa tal representatividade”, evidencia a jovem, sublinhando que “a existência de equipas que espelhem essa diversidade e inclusão” é o primeiro passo para que as marcas se “consigam posicionar como inclusivas de forma muito mais orgânica e fluida.” Além disso, “precisamos de nos afastar de uma definição rígida de Beleza” e, para tal, Renata Jaz acredita que uma grande parte do trabalho passa pela “sensibilização.” E às vezes sensibilizar não precisa de ser muito mais do que mostrar que certo grupo existe, que está lá, e que basta isso para ser considerado.
“Até que a cegueira deixe de ser uma curiosidade e se torne algo que é apenas uma parte da nossa sociedade, algo que as pessoas conheçam, nunca teremos verdadeira inclusão, por isso é que a educação é também muito importante”, remata Lucy Edwards, que afirma estar otimista quanto aos próximos anos: “Eu sinto que as pessoas querem saber mais sobre deficiências e não sentia isso há quatro anos. Há grandes empresas a tentar fazer isto acontecer, e sinto que os próximos cinco anos neste setor estarão cheios de coisas interessantes.” O mais importante é que esta onda de inclusão nos faça perceber que não temos de mudar quem somos para sermos aceites. “É difícil quando existem categorias, porque sentimos que temos de caber nelas ou mudar para poder pertencer”, aponta Kadeeja Sel Khan, terminando com a única frase capaz de unir todos os pensamentos levantados neste texto: “Vamos apenas ser quem somos e divertir-nos com isso.”
Artigo originalmente publicado na edição de março de 2022 da Vogue Portugal.
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