Em março, a fotografia de Dariia e das suas colegas abalou o mundo - depois, estas mulheres foram capturadas pelo exército russo e, como forma de pressão moral, os ocupantes raparam os seus cabelos.
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Criar e interessar-se por Beleza no meio da guerra não é uma tarefa fácil, no entanto ao longo dos últimos meses os ucranianos descobriram uma imensa e interminável fonte de inspiração: as pessoas que estão a lutar pelo seu país e pelas suas vidas. A ideia de criar um projeto dedicado às mulheres a servir na guerra surgiu em março - quando a equipa da marca ucraniana NUÉ se encontrava a tentar resgatar a sua produção de Kiev. O resultado de vários dias de sessões fotográficas e entrevistas são seis histórias da constante batalha pela vida, pela pátria e pela Beleza - como uma humilde forma de agradecer a estas e a todas as mulheres ucranianas que lutam, protegem e reconstroem o seu país.
Dariia Anisimova é uma médica militar, que serve nas Forças Armadas da Ucrânia. Em março, a fotografia de Dariia e das suas colegas abalou o mundo - depois, estas mulheres foram capturadas pelo exército russo e, como forma de pressão moral, os ocupantes raparam os seus cabelos. Ainda assim, não conseguiram quebrar o espírito guerreiro das mulheres ucranianas, que felizmente conseguiram libertar-se do cativeiro. Conseguimos falar com Dariia pouco antes do seu regresso ao serviço das Forças Armadas.
Sobre a própria
“Nasci na Ucrânia, a minha terra natal. Vivi em Kiev tal como os meus pais. Uma grande parte dos meus familiares são médicos: o meus avós e bisavós também. A minha bisavó era coronel do serviço médico durante a Segunda Guerra Mundial. Uma vez, quando ainda era pequena, a minha bisavó disse-me que eu era muito gentil e que, por isso, devia ajudar os outros. Depois do nono ano, os meus pais insistiram que eu entrasse na Kyiv Medical College. Era uma rapariga muito animada, e não acabei a faculdade logo à primeira, mas, quando consegui, o diretor da escola convenceu-me a estudar mais tempo para tirar a especialidade paramédica. Quando terminei o meu percurso escolar, não queria trabalhar sob a supervisão dos meus familiares, por isso decidi começar a trabalhar nas urgências. Já que todos os médicos têm de ter uma licença militar, fui aos escritórios do exército e disseram-me que o meu lugar era lá. Foi assim que o meu serviço começou - primeiro no regimento do Presidente da Ucrânia, onde servi até maio de 2021, antes de ser transferida para a minha brigada atual.”
Sobre trabalhar durante a guerra
“Agora ocupo a posição de chefe de uma estação médica de uma certa unidade militar. Antes do inicio da invasão de larga escala, esta unidade não participava em nenhuma batalha. Claro que havia oficiais com essa experiência, mas não eram muitos. Antes de 24 de fevereiro, já tinha estado em zonas ATO [N. do R.: áreas do Leste da Ucrânia temporariamente ocupadas pela Rússia desde o início da guerra em 2014] em 2017. Nessa altura, estava mais na retaguarda, relativamente em segurança, mas trabalhava com pessoas que tinham vivenciado batalhas duras em Ilovaisk e Debaltsevo. Emocionalmente, era algo ao qual tinha dificuldade em me habituar. Um mês antes do começo da invasão, decidi que precisava de mudar. Fui transferida para a brigada que está sediada nos subúrbios de Kiev. Quando lá cheguei, percebi que tudo o que aconteceu na minha vida me tinha levado até ali. Foi lá que encontrei o meu lugar, exatamente onde era precisa.
Fotografia de Lesha Lich
Fotografia de Lesha Lich
Já no dia 26 de fevereiro, a nossa unidade militar estava praticamente cercada. Gostomel, Bucha, Irpin - ouvíamos o que estava a acontecer e onde, para onde iam os comboios militares, e os aviões estavam a voar por cima das nossas cabeças. Apanharam-nos a 7 de março. Encontraram-nos e começaram a disparar contra nós. A nossa equipa fez um excelente trabalho, porque todos se envolveram nos primeiros 2 ou 3 dias, sem explicações longas do que precisava ser feito. Era claro para toda a gente - tens de te defender a ti e às pessoas à tua volta. Foi apenas difícil quando percebi que teria problemas com os recursos médicos, porque tinha acabado de aceitar a posição, e ainda não tinha tido tempo para reunir todos os medicamentos que precisava. Estou muito grata por todas as pessoas e voluntários, ajudaram muito. Trouxeram o máximo que conseguiram sempre que tinham oportunidade. Quando não havia nada para comermos, os habitantes locais, desde que conseguissem chegar até nós, traziam-nos alimentos, comida enlatada, bolos e doces em carrinhos de mão. No dia 19 de março, até consegui como que por milagre evacuar um rapaz que estava gravemente ferido com a ajuda dos voluntários. E já a 20 de março, às 6:30 da manhã, a nossa unidade estava completamente cercada. O combate durou 8 horas, fizemos tudo o que podíamos. Infelizmente, houve mortes, e nós fomos capturados.”
Sobre o cativeiro
“Quando fomos levados como prisioneiros, fomos primeiro levados para a Bielorrúsia e, após alguns dias, para a Rússia, para um centro de detenção pré-julgamento na região de Bryansk. Imediatamente raparam os nossos cabelos. Foi muito difícil para a maioria, não sabiam porque nos estavam a fazer aquilo, estavam sempre a perguntar. Estavam muito preocupados. Com este ato, os ocupantes queriam humilhar-nos, magoar-nos. Mas não funcionou. Antes de nós, e depois de nós, ninguém teve o seu cabelo rapado, tanto quanto sabemos, porque os meios de comunicação social enfatizam muito isso. E nós sabíamos que já ninguém rapa os cabelos das mulheres. Foi só uma espécie de experiência. Naquele momento, vivíamos um dia de cada vez, sem saber se sequer iríamos acordar na manhã seguinte ou se iríamos viver mais uma hora. Por isso, quando fui capturada, eles definitivamente não me podiam fazer sentir pior do que eu já estava só por um corte de cabelo. Enquanto estávamos na unidade militar, as mulheres costumavam fazer tranças, porque era impossível lavar o cabelo. E quando o raparam, na verdade, até fiquei feliz, porque o cabelo já estava muito sujo - quase não conseguia conter o sorriso de alívio.
Ficámos em cativeiro durante 10 dias. Estava na mesma cela que duas outras mulheres, e nós não sabíamos o que estava a acontecer com as outras quatro, porque não as vimos até ao momento em que fomos levadas para a troca de prisioneiros. E também nem sabíamos que ia haver essa troca. Mas, na cela, era muito difícil. Eu chorava muito, a Annushka lia-me poemas, chorávamos até ir dormir e simplesmente esperávamos que um novo dia trouxesse boas notícias. Estava acima de tudo preocupada pelo facto de não telefonar ao meu marido e filha desde o dia 20 de março, apesar de ter prometido. Falávamos quase todos os dias, mas eu não lhe disse o quão difícil a situação estava. Pensar que poderia não regressar a casa e que a minha filha iria crescer sem mim era muito doloroso.”
Sobre a família
“Estou muito grata pelo meu marido, especialmente sabendo que ele é civil. Esteve em casa todo este tempo a tomar conta da nossa filha. Foi muito difícil para ele, e era sempre muito difícil para mim falar com ele, porque via que ele praticamente não estava a conseguir continuar e manter-se à tona. Ele também se juntou à defesa territorial e fez o que pode. Não conseguia lidar com o facto de não ter experiência militar e que, por isso, não era aceite em lado nenhum, por mais vontade que tivesse. Eu disse-lhe que um militar na nossa família era suficiente, alguém precisava de ficar com a nossa filha, era a grande missão que estava sobre os seus ombros. Estou muito agradecida por ele ter conseguido encontrar as palavras certas para explicar à nossa filha o que aconteceu quando fui capturada. Ele disse-lhe que a mãe está viva e que ela vai regressar um dia e que vai ficar tudo bem. E depois, quando tive a minha primeira conversa com ela ao telefone, depois da troca de prisioneiros, percebi que mentalmente ela já tinha dito adeus, já se tinha fechado, e não acreditava que eu ia regressar. Era uma espécie de mecanismo de proteção. Mas meia hora depois liguei-lhe outra vez. Disse-lhe que me tinham rapado o cabelo, mas que não tida sido tão assustador quando pensava - porque a minha Marusya queria rapar o cabelo, e eu não a deixava. Ela ficou muito feliz com as minha palavras [risos] de que agora o podia fazer, mesmo que já não quisesse rapar o cabelo.”
Fotografia de Lesha Lich
Fotografia de Lesha Lich
Sobre Beleza
“A beleza de uma pessoa está na sua alma. Sou muito grata à minha família por este pensamento. Apesar do meu caráter e comportamento de tempos a tempos, eles alimentam a minha alma e o meu espírito, tal como o fizeram a todos os outros membros da nossa família. Temos muitas raparigas na nossa família, e todas tiveram de ter educação musical, esta foi a instrução da minha bisavó. Sei a Sonata ao Luar desde criança, terminei a escola de música com uma especialização em piano - apesar de não gostar muito na altura. Porém, tantos anos depois, às vezes só quero sentar-me e tocar um pouco, só para mim, para aproveitar.”
Sobre 24 de fevereiro
“Fui acordada pela minha filha - ela acordou com as explosões, e eu não queria acreditar. Mas depois liguei à equipa da unidade militar - eles também estavam acordados e tudo tornou-se claro. Depois comecei a arrumar tudo rapidamente porque tinha de chegar à nossa unidade o mais rápido possível. Às 6 da manhã, já estava perto do metro, e a mulher à entrada pediu-me para usar uma máscara. Demorei muito tempo a lá chegar, mas as pessoas, ao ver-me num uniforme militar, ajudaram-me, deram-me boleia na autoestrada. Cheguei ao local já da parte da tarde, e lá foi-me dito que tinha de usar o equipamento completo durante todo o tempo - um colete à prova de bala, com um capacete e uma mala.”
Sobre o dia mais negro
“No dia 20 de março, quando os meus colegas foram mortos, quando eu não conseguia sair, havia tantos bombardeamentos, de tanques, a artilharia a trabalhar. Estava no abrigo e ninguém me deixava sair, não me deixavam ir ter com as pessoas que me eram mais próximas, eu queria salvá-las, essa foi a pior coisa, que eu… eu perdi pessoas, não as pude ajudar.”
Sobre a procura por luz
“Acredito que vai tudo ficar bem, acredito na minha família - é isso que me dá força. Toda a gente quer sempre acreditar que o mal vai acabar, mais cedo ou mais tarde. A esperança num futuro feliz, e agora, na nossa vitória. Tenho a certeza de que não irei ser capturada outra vez. Ou tudo ficará bem ou haverá um fim - isto eu compreendo e sinto claramente. Não quero perder mais ninguém, é muito difícil. Mas acredito que vai tudo ficar bem, porque nós estamos na terra que Deus nos deu.”
Ficha técnica:
Fotografia: Lesha LichDireção de arte: Olesia RomanovaVestuário: NUÉMaquilhagem: Yulia SchelkonogovaCabelo: Nodira TuradzhanovaProdução: Diana Melnikova
Projeto apoiado por NUÉ e Viktoriia Udina.
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