Desalinhados. Um pouco amarelados. Ligeiramente tortos. Os dentes querem-se saudáveis, sim, mas acima de tudo naturais. Depois de décadas de tirania estética, há uma nova vaga que defende os sorrisos como personalidade. Rebeldes de todo o mundo, uni-vos!
Desalinhados. Um pouco amarelados. Ligeiramente tortos. Os dentes querem-se saudáveis, sim, mas acima de tudo naturais. Depois de décadas de tirania estética, há uma nova vaga que defende os sorrisos como personalidade. Rebeldes de todo o mundo, uni-vos!
© Getty Images
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A imagem é o grande plano de um dente, em cima de um caixão, no que parece ser uma igreja. A letras garrafais, lê-se “Morreu porque não usou a pasta medicinal Couto.” Depois há mais algumas informações sobre o produto-milagre que podia ter evitado o óbito, o preço e ainda uma nota de rodapé: “Não confunda pasta medicinal Couto com pasta Couto vulgar.” É tudo a preto e branco, dramático, assustador. Ou melhor, quase tão assustador como aquela figura negra com uma foice, que associamos à morte, e que surge num outro anúncio, com a legenda “Na morte lenta dos dentes que não são lavados com um produto medicinal / Pasta Medicinal Couto / Não é uma pasta vulgar / Evita e trata todas as doenças da boca.” Os senhores que geriam as campanhas da pasta medicinal Couto (criada em 1918 e um ex-líbris da cultura portuguesa) não brincavam em serviço. Em vez de sublinharem características como a hortelã-pimenta, ou a menta refrescante, ou a dupla função branqueadora, os criativos de meados dos anos 30 do século passado apostavam tudo na informação curta e grossa: uma má higiene oral pode conduzir a sérios problemas de saúde, para usar um eufemismo millennial.
Por essa altura, ainda quase ninguém se preocupava com os dentes alinhados e ultra-brancos. Talvez nem todos os portugueses tivessem o hábito de escovar os dentes três vezes por dia, e os aparelhos fixos estavam a milhas de distância - os primeiros braquetes de aço, dispostos num sistema já muito parecido com o que é utilizado atualmente, surgem nos anos 50; antes disso, todos os modelos se pareciam a instrumentos de tortura. Porque é que refiro isto? Porque talvez a publicidade vintage da pasta Couto, no seu devido contexto, me ajudasse a usar com mais frequência o Invisalign, o tratamento ortodôntico a que me rendi em meados de 2016. Tinha tudo para dar certo: é invisível, removível, quase indolor. E rápido. Num ser humano normal, corrige os dentes num ano e meio, dois anos. Não pretendo quebrar nenhum recorde, mas já ultrapassei os três e não há fim à vista. É certo que existe um problema de saúde pendente que condiciona as gengivas, e que provoca alguma tensão, mas o cerne da questão é capaz de ser a ausência da foice. Quero muito ter o tal “sorriso perfeito”, mas se calhar não quero assim tanto. Por vezes tenho a sensação que estou satisfeita assim, a meio caminho entre o está quase e o já está.
“HÁ PESSOAS QUE JÁ NÃO QUEREM A PERFEIÇÃO. ALIÁS, A MAIOR PARTE NÃO QUER O ASPETO FALSO. SEJA PARA CORRIGIR A POSIÇÃO DOS DENTES, SEJA PARA FAZER BRANQUEAMENTO, A PREOCUPAÇÃO É QUE NÃO FIQUEM DEMASIADO PERFEITOS NEM DEMASIADO BRANCOS, OU TODOS EXATAMENTE IGUAIS.” FILIPA NETO
Sempre tive péssimos dentes, ou aquilo que a sociedade considera “dentes feios.” Amarelados. Estranhos. Tortos. Não sei, aliás, como é que esperei até aos 34 anos para os arranjar, sendo fumadora e bebendo café. Mas nunca quis saber. Só quando chegou a loucura das fotografias nos telefones é que comecei a reparar no sorriso disforme e tosco. A minha mãe quis pôr-me um aparelho em criança, recusei; voltou a insistir na adolescência, esperneei; falou disso pela última vez quando arranquei três sisos, já semiadulta. Não voltou a tocar no assunto até que lhe apareci, desesperada, porque estava com medo de ficar com a boca disforme... quando fosse velha. O resto é história em movimento.
“O Invisalign é um aparelho que funciona muito bem e que tem as suas vantagens em termos de estética e de higiene, porque se pode tirar, não obriga a restrições alimentares. É ótimo. E funciona especialmente bem em pessoas que são muito metódicas, e nesse aspeto temos tratamentos bem mais rápidos do que com o fixo, porque se as pessoas usarem [conforme as indicações] é galopante. Isto em situações simples. Mas depois depende das horas que [efetivamente] se usa, porque o facto de ser removível permite isso. E há quem leve mais na desportiva e pense ‘Não vou sofrer com isto e não vou deixar isto dominar a minha vida’ e demora um bocadinho mais de tempo.” Filipa Neto é médica dentista. A minha médica dentista. Garante que não sou a paciente que está a estragar as estatísticas do Invisalign (é importante sublinhar que estou 200% melhor do que há três anos e quase não há vestígios dos dentes de coelho). Há outros como eu que, quando conseguem equilibrar a satisfação com a aparência e a preocupação com a saúde, se deixam levar pelo laissez faire laissez passer. Sinais dos tempos?
“For the bold, the bright and the beautiful” (qualquer coisa como para os ousados, os brilhantes e os belos) é o mote da recente campanha de batons da Gucci, Rouge à Lèvres Satin, fotografada por Martin Parr, que relança a linha de maquilhagem da marca italiana. Em vez de imagens ultra cuidadas e com elevadas doses de sensualidade, somos confrontados com quatro bocas que fogem ao estereótipo de beleza a que fomos acostumados — adeus poses sedutoras, dentes brancos e alinhados, olá caretas e sorrisos assumidamente imperfeitos.
O mago por detrás desta mini-revolução é Alessandro Michele, que tem por hábito pegar no caos do dia-a-dia e transformá-lo em objeto de desejo. Tem sido assim desde que aterrou na cadeira de diretor criativo da Maison, em 2015. O seu objetivo, a cada temporada, é representar a liberdade total de autoexpressão de cada indivíduo. Estas fotos não fogem à regra. Transmitem, de forma clara, a mensagem de que a beleza autêntica está na diferença - na imperfeição. Como é normal nestes casos, as reações dividiram-se. Alguns internautas consideraram os anúncios o cúmulo do mau gosto (“Pensei que isto fosse um meme” ou “Guccio Gucci está às voltas no túmulo”), outros aplaudiram a ação (“Muito bom ver dentes como os meus” ou “Acho muito estimulante ver uma marca de moda de luxo abraçar todos os sorrisos”). Esta tendência, contudo, está longe de ser uma novidade.
Há dezenas de celebridades que assumem os handicaps do seu sorriso. Principalmente, quando o que está em causa são dentes separados — nome de código, diastema. No cinema, Brigitte Bardot nunca precisou de sucumbir à tortura de um aparelho corretor, tal como Vanessa Paradis ou Léa Seydoux. Na moda, o gap teeth é imagem de marca de modelos bem sucedidas como Lauren Hutton, Laetitia Casta, Lara Stone, Lindsey Wixson ou Abbey Lee Kershaw. E na música, a rainha da pop, Madonna, ostenta com orgulho o seu (suposto) mau posicionamento dentário. Com os anos, o defeito estético passou a tendência. Existe até um documentário sobre o tema, Gap-Toothed Women, lançado do final dos anos 80, que faz a apologia das mulheres com dentes separados. Claro que há quem leve a coisa ao extremo: na temporada 15 do concurso America’s Next Top Model, Tyra Banks sugeriu que uma das concorrentes, Chelsey Hersley, aumentasse ainda mais o seu gap teeth. O procedimento não lhe valeu de muito...
“Penso que agora não há uma moda tão definida, porque a procura é mais pelo natural. As pessoas agora gostam de dentes não muito grandes, mais quadrados, mais salientes, mais brancos, procuram os sorrisos que não são demasiado excessivos e onde seja impercetível que foi feito um trabalho." Filipa Neto
O diastema é, de facto, um dos pedidos mais populares nos centros de reabilitação oral. “Normalmente são mulheres, raparigas mais novas, que o procuram, muito por causa de certas celebridades”, explica Filipa Neto. “Provavelmente, começou com a Madonna e depois continuou com algumas modelos. Normalmente, aparecem-me com referências específicas, como aquela inglesa, a Georgia May Jagger.” São jovens “entre os 15 e os 19 anos, mais ou menos” e nem todas chegam com a saliência. “Nem sempre. Às vezes procuram, outras vezes já têm e/ou querem aumentar ou querem manter. Querem tratar os dentes todos, alinhá-los, mas manter o espaço daqueles. Não é uma coisa dolorosa de fazer porque os dentes não são desgastados. As pessoas têm de ter um cuidado extra, porque têm mais tendência para ter tártaro, mas fazendo uma consulta de higiene a cada seis meses não há problema.” Apesar de ser cada vez maior o número de pacientes que quer assumir o gap teeth, ainda não ultrapassa a percentagem dos que pedem para suprimir o espaço.
“Há mais gente a fechar, sim. A maior parte as pessoas.” Até porque, modas à parte... “As pessoas normalmente procuram-me para ter os dentes alinhados. Algumas procuram-me por uma questão de função, porque notam que já não comem bem, ou não mordem, ou têm dores, se bem que a maior parte tem em vista a função, mas também a estética. Há pessoas que já não querem a perfeição. Aliás, a maior parte não quer o aspeto falso. Seja para corrigir a posição dos dentes, seja para fazer branqueamento, a preocupação é que não fiquem demasiado perfeitos nem demasiado brancos, ou todos exatamente iguais. As pessoas procuram muito o natural, e às vezes até dizem, ‘não quero tão perfeitos porque depois vai parecer uma placa’ e, à medida que nos vamos aproximando do quase perfeito, muitas pessoas mudam porque, quando notam que não vai ficar com um aspeto plástico, depois até querem mais um bocadinho.” Filipa considera que não há, atualmente, uma tendência específica no campo da estética dentária. “Penso que agora não há uma moda tão definida, porque a procura é mais pelo natural. As pessoas agora gostam de dentes não muito grandes, mais quadrados, mais salientes, mais brancos, procuram os sorrisos que não são demasiado excessivos e onde seja impercetível que foi feito um trabalho. Há muita gente que não quer que se perceba que foi feita alguma coisa.” Há uma década, não seria assim.
Há dez anos, era normal pedirem-lhe molduras de ouro. Excuse us? “São como umas janelas de ouro, estilo rapper, coladas nos dentes da frente. Fazíamos uma grelha completa, ou então só um... São umas molduras em que no centro está o dente e à volta é de ouro, como nos vídeos dos rappers.” Dói? “Não, mas causa um desgaste dentário e por uma razão estética que às vezes é passageira. Aquilo pode descolar, mas dura tanto como uma coroa, a pessoa tem é de perceber que ao fazê-lo está a desgastar os dentes para a vida.” E em termos monetários, é caro? “É, porque é feito em ouro. Faz-se cada vez menos porque agora os rappers já não estão tanto nessa fase. Mas houve ali uma fase, há dez anos talvez, em que apareciam com umas coisas...” (risos) Não admira que, para a médica, a campanha da Gucci seja mais um passo na normalização dos gostos.
“Acho que há um grupo de pessoas que quer muito manter como está, ou seja, se não há uma razão clínica para tratar, não procuram que os dentes estejam alinhados ou que sejam mais brancos. Essas pessoas não têm problemas em afirmar isso, não têm uma autoestima que varie com isso. A Gucci lançou essa campanha, mas há outras, com pessoas de vários tamanhos, por isso, acho que há uma aceitação maior. Isso vai obviamente responder a esse público, que vai ficar satisfeito por estar representado.” E, como exemplo, recorda uma paciente de 30 e poucos anos com um objetivo específico. “Ela gostava dos dentes dela, com uma ligeira imperfeição, com uma ligeira saliência dos dentes da frente, em cima, mas que entretanto estava a piorar. Ficámos um bocadinho aquém daquilo que lhe propus mas que era o que ela pretendia. Assumimos que não procurávamos um resultado perfeito. E foi ela que definiu quando deixava de usar [o aparelho], porque já estava tudo resolvido em termos de função, etc. E ela ficou toda contente porque era assim que se via.”
Ainda assim, e por mais que os dentes imperfeitos estejam in, há quem deva ter cuidados redobrados com a higiene oral. “A que figura pública gostaria de corrigir, ou melhorar, o sorriso?”, pergunto a Filipa Neto. “Basta ver a maior parte das entrevistas da nossa classe política. Entre falta de dentes, falta de higiene e falta de mais qualquer coisa... Acho que havia muito por fazer.” Pessoas que não conhecem os anúncios da pasta Medicinal Couto, só pode.
Artigo originalmente publicado na edição de agosto de 2019 da Vogue Portugal.