Celebrar a arte em vidro e os extraordinários artesãos que a criam é o mote desta mostra, onde se destaca o maravilhoso trabalho de Marijke De Cock, uma artista com um discurso sincero e inspirador.
Falar na história do vidro é falar na história da humanidade. É um material com origens antiquíssimas mas, ainda assim, permanece refrescante, surpreendente, e com uma enorme capacidade de transformação e mutação. Criar arte com vidro exige uma enorme delicadeza e sensibilidade, e, por isso mesmo, a exposição Di Vetro, patente na Prime Matter, é uma homenagem aos mestres, aos visionários e à história viva do fabrico do vidro, celebrando este processo mágico. Desta vez a galeria convidou Emmanuel Babled, mestre vidreiro, Andrea Zillio, cujo trabalho assenta nas técnicas tradicionais mais complexas do fabrico de vidro, e ainda a artista e designer Marijke De Cock, que mostra como este material pode assumir diversas formas e feitios.
A Vogue Portugal falou com a artista e teve acesso a um preview da exposição, que começou ontem, dia 14 de setembro, e que pode ser visitada até dia 17 de novembro.
Marijke de Cock
Niccola Van den Heuvel
Marijke De Cock vive e trabalha em Antuérpia. Estudou moda na Royal Academy of Fine Arts e há vários anos que faz parte da equipa de Dries Van Noten, onde cria ornamentos e joias excecionais. Esta arte inspirou-a a criar os seus próprios trabalhos, em que o bordado tem um lugar de destaque. Usa uma técnica antiga e tradicional, que, no fim, se manifesta numa série de esculturas abstratas e altamente intuitivas, adornadas com milhares de missangas de vidro que carregam o seu desejo incessante de criar.
Esta série, Solo Swirls, começa no papel, entre rabiscos criados à mão, e viaja até à Índia, onde uma equipa de artesãos se dedica a transformar estas ideias em objetos tangíveis. O resultado final, conta-nos, são peças de que gosta muito, mas que cria simplesmente por prazer de fazer coisas bonitas. Marijke diz não se considerar uma artista, mas nós discordamos. A sua simplicidade e honestidade fazem-na brilhar tanto quanto as missangas que usa, e o ato de criar em nome da beleza e do prazer é o suficiente para criar impacto - mesmo que este não seja o seu objetivo.
As mãos parecem ser um elemento essencial da sua arte, guiando o lápis através de um pensamento abstrato até uma conclusão muito concreta. Pode falar-nos um pouco deste processo? Na verdade, é um pouco como a escrita automática. Desligo a mente e entro numa espécie de fluxo livre. É como quando desenhamos ao telefone, não pensamos no que queremos desenhar, fazemos o que quer que seja.
E está muito mais relacionado com o sentimento do que com a lógica? Sim. E quando a forma se começa a parecer com algo demasiado concreto, como uma flor, começo a retirar pedaços. Interesso-me por formas “nuas”, que não se relacionam com nada em particular.
Parece ser quase uma forma de meditação para si... Sim, de certa forma é. Começa assim e depois torna-se num processo mais artesanal, mas que se inicia de facto como um fluxo. Não tenho um material e dito o que quero fazer exatamente - simplesmente acontece.
Sente-se na obrigação de criar? Sim, sem dúvida. Desde criança. A minha mãe diz que estava sempre a criar alguma coisa, tinha uma profunda necessidade de o fazer. Mas nunca fui muito de desenhar, fazia recortes, pequenas joias ou coisas com barro.
Quais são as suas inspirações? Depende do momento. O Nick Cave [escultor] é uma pessoa muito inspiradora. Trabalha muitas vezes com bordados, mas usa peças vintage que recorta e distribui. Tem uma mente muito livre, usa materiais e monta-os de forma muito simples. Usa coisas como pequenos ramos e cria uma escultura enorme, um pouco como eu faço com estas missangas.
Mencionou que a imperfeição é também uma forma de perfeição, pode explicar isso? Assim que temos uma forma perfeita, ela torna-se muitas vezes muito aborrecida para os olhos. É o que acontece quando se tem um grafismo digital tão perfeito que já não nos toca. E é por isso mesmo que desenho quase tudo à mão e, quando falo com a equipa que faz os bordados peço que respeitem realmente as imperfeições das peças.
Então, podemos dizer que se esforça pela imperfeição? Não é que eu queira que tudo seja imperfeito, mas dá um toque humano. No passado fazia bordados e, por exemplo, quando fazemos um tecido às bolinhas no computador parece sempre muito morto. Mas assim que começamos a recortar e a colocá-las um pouco fora da grelha, sentimos imediatamente que elas ganham vida.
E, já que desenha tudo à mão, consegue reproduzir estes desenhos ou são completamente originais e únicos? Sim e não. Faço-os numa escala muito pequena que é depois ampliada, mas depois redesenho-o para o tornar um pouco mais fluido, porém as composições mantêm-se exatamente as mesmas.
Enquanto artista, como vê esta “invasão” da inteligência artificial, pronta para dominar tudo e todos? Acho que existe também um movimento muito forte que está a ir na direção oposta. Acho que o artesanato está a ficar cada vez mais forte. As pessoas estão a reconectar-se a tudo o que é artesanal, mesmo com os NFT e tudo o resto.
Há muito que trabalha com bordados, mas agora existem programas que já o podem fazer automaticamente. Como vê isto? Também já fiz bordados gerados por computador, mas têm de ser trabalhados de uma forma muito diferente. Eu desenho tudo até ao fim, o que é uma responsabilidade grande, e é também preciso saber programar este software. A textura de um bordado feito a computador é muito mais clean do que feita à mão, mas é preciso saber fazê-la.
Falando na indústria da moda, trabalhou com Dries Van Noten. A indústria mudou a forma como cria a sua arte? Claro, estou na moda há 20 anos e é uma área muito interessante, mas também tem os seus limites. Sempre gostei muito de fazer bordados, mas a certa altura quis dar ao bordado outro valor. Na moda é sempre usado como decoração ou parte de outra coisa e tem um papel muito servil; eu quis dar-lhe o papel principal.
Existe algum simbolismo específico nas suas peças, como nas cores? Simbolismo não, são apenas as cores de que gosto mais. É um pouco complicado porque as missangas são tão brilhantes que apenas algumas cores são suficientemente estéticas para usar nestas peças. Um vermelho vibrante seria super gritante e muito kitsch, existe uma linha muito ténue.
Quando cria, pretende criar uma mensagem específica ou criar a “arte pela arte”? Não pretendo passar nenhuma mensagem, quero apenas fazer coisas bonitas e das quais gosto. É um pouco difícil considerar-me artista, os artistas têm muitas conversas sobre cultura e coisas profundas... eu não sou assim, só quero fazer algo que acho que é necessário fazer, mas não com muita conversa à volta.
Falo várias vezes de simbolismo porque acho que é muito interessante, mas surpreende-me sempre pela positiva quando as coisas não têm um significado. Às vezes as coisas têm valor apenas porque são bonitas, certo? Sim, claro. Podia inventar uma série de razões e motivos para criar a minha arte, mas faço estas peças porque gosto delas.