Mesmo com todo o movimento de empoderamento e aceitação dos cabelos naturais, o cabelo de uma mulher negra continua a ser mais do que “só cabelo”. Três mulheres contam à Vogue sobre a sua relação com os seus fios, e como aprenderam a aceitá-los – e a celebrá-los.
Mesmo com todo o movimento de empoderamento e aceitação dos cabelos naturais, o cabelo de uma mulher negra continua a ser mais do que “só cabelo”. Três mulheres contam à Vogue sobre a sua relação com os seus fios, e como aprenderam a aceitá-los – e a celebrá-los.
Fotografia de Stella Morais. Realização de Elodie Fromenteau. Maquilhagem de Coco Hirani. Cabelos de Richard Phillipar.
Ana Sofia Martins é, para qualquer um, um rosto conhecido. Para outros, a sua presença na televisão simboliza bem mais do que isso. “Sinto que nasci com esta coroa por algum motivo, percebes? Quando as miúdas ou as mães das miúdas vêm ter comigo na rua a dizer que as filhas aceitaram o cabelo porque viram a personagem da Mara [o nome da protagonista de uma novela da TVI exibida entre 2015 e 2017], fico mesmo feliz e penso que nada foi em vão”, partilha com a Vogue.
“Às vezes digo que cabelo é só cabelo, e é, mas quando passam a vida a gozar com o teu cabelo, deixa de ser só cabelo e passa a ser um handicap. Portanto, cabe-nos a nós ultrapassar isso. Mas, para isso, é preciso haver mais representatividade. Porque eu não represento toda a gente, nem toda a gente se sente representada por mim. Eu represento um nicho. Acho que deveria poder ligar a televisão, ou ver uma revista ou o que for e sentir que toda a gente está representada. Se calhar é uma filosofia um bocadinho United Colors of Benetton, mas é o que devia ser”.
Apesar do tom confiante com que fala hoje, a atriz, de 33 anos, nem sempre teve uma relação fácil com o seu cabelo: “Hoje em dia é uma relação de amor-amor, mas já foi uma relação de amor-ódio. Isto porque finalmente percebi o que é que tinha de fazer para o meu cabelo responder da forma que eu queria. Dantes era amor-ódio porque eu não sabia o que fazer com ele. Aliás, eu tinha expectativas sobre o meu cabelo que nunca poderiam corresponder à realidade. Eu queria que o meu cabelo fosse como o das minhas amigas, e claro que não era (risos). O meu cabelo nunca poderia ser assim, liso, flowy e sedoso e maravilhoso. É tudo isso, mas à minha maneira, percebes? Quando comecei a perceber que produtos usar, a hidratação que tinha de fazer, o que é posso fazer quando ele não está a responder da forma que eu quero, porque há vários penteados que eu posso fazer mesmo quando ele não está numa forma maravilhosa... É preciso aprender a contornar essas limitações. E a partir daí é uma relação maravilhosa. Não duvido em nada que a minha carreira em Moda começou também por eu ter este cabelo. Devo muito ao meu cabelo, digamos assim (risos).”
Ainda assim, o momento em que abraçou a naturalidade capilar chegou relativamente cedo, nos tempos em que era modelo. “Participava em concursos de Moda na minha agência na altura. Já estava agenciada, mas eles punham-me em concursos para ganhar experiência. E há um dia em que eles começaram a alisar o meu cabelo, mas só tínhamos metade do cabelo alisado e as horas em que aquilo já ia... Porque, claro, quando as pessoas não sabem o que fazer ao cabelo levam mais tempo, é normal. Lembro-me que a Nayma [Mingas] chegou lá dentro ao backstage e disse, ‘Mas porque é que ela não há de ir com o cabelo natural?’. E fez-se luz”, conta, explicando que esse foi o verdadeiro aha moment. “Porque é que eu hei de estar aqui a combater esta coisa? Se houve um lado meu que aos 14 anos adorava a ideia de me estarem a esticar o cabelo porque era uma coisa que eu não fazia, por outro lado [também foi importante] chegar outra pessoa que diz ‘não, mas ela está ótima como está, what's the big deal?’. E a partir daí ficou definida essa imagem, a imagem afro, que ao início me custou a aceitar, porque não estava habituada a ver-me de cabelo solto, mas que a partir do momento em que percebi que funcionava e que ia marcar pontos pela diferença aceitei logo”.
Coincidência ou não, Nayma é uma personagem recorrente nas histórias de Ana Sofia sobre a sua mais emblemática característica física. “Lembro-me da primeira vez que fui à agência, e por acaso a Nayma também lá estava. Se calhar ela é o meu anjo da guarda capilar, agora que estamos a falar nisso (risos). E lembro-me que pus muito gel, assim para [o cabelo] estar todo lambidinho, para fazer que tinha o cabelo ondulado em vez de carapinha. E ela diz-me assim: ‘mas olha lá, como é que é o teu cabelo natural? O teu cabelo natural não é assim’. E eu: ‘é, é’. E ela: ‘então solta lá’. E, bem, quando ela me diz para soltar o cabelo, e eu que tinha estado horas a prendê-lo para ele ficar com um ar achava eu mais aceitável. Depois soltei o cabelo e ela adorou. Por isso é que quando ela chegou ao concurso e viu que me estavam a tentar esticar o cabelo disse logo ‘não, não, o cabelo dela vai natural’”.
Mas esse momento de viragem foi mais do que uma questão de validação dos outros, foi um ponto de mudança de atitude – e de estratégia. “Muita da minha autoestima durante uma fase da minha vida veio daí [do cabelo], para o bom e para o mau, para o mau quando eu era miúda e odiava o meu cabelo e o achava péssimo. Depois, quando percebi que era uma mais valia, valorizei-me por esse lado. Agora cabelo é só cabelo. Mais volumoso, menos volumoso, mais encaracolado, loiro, preto, é só cabelo. E o meu cabelo acaba por ser um acessório de moda que vou mudando consoante as tendências”.
As mudanças são, contudo, feitas com cuidado, sobretudo no local que, para muitas mulheres, não pode ser tão aleatório quanto isso. “Eu já digo para as mulheres negras não se enfiarem em qualquer tipo de salão, porque ninguém está preparado para isso. Primeiro, porque os cabeleireiros, sobretudo os portugueses, são muito preguiçosos em aprender a trabalhar com outras texturas capilares. Ou tens o cabelo liso ou esquece. Eu aconselho sempre a irem a sítios especializados. Porque eu não posso ir a um cabeleireiro que nunca mexeu com a minha textura capilar e dizer ‘agora faz-me aí qualquer coisa’ porque eles não sabem. Não sabem. Não sabem e não têm interesse em saber, isso é a parte mais complicada”, afirma.
Para atriz, é o “medo por aquilo que é diferente” que fundamenta esta atitude. “Agora na novela em que eu estou está lá uma cabeleireira que se chama Oksana. É ucraniana. Acho que foi a primeira vez na minha vida em que eu cheguei a um sítio, a pessoa nunca tinha tocado no meu cabelo, e chegou e meteu as duas mãos [no cabelo] e disse ‘Ana, como é que vamos fazer?’”. O interesse despertado é que a surpreendeu. “O facto de ela perguntar foi a melhor coisa que ela podia ter feito, como equipa. Levei-lhe os meus produtos de casa, expliquei-lhe como é que tudo funciona. Já lhe ofereci uma ida a um cabeleireiro afro, para ela mexer noutras texturas de cabelo, porque o cabelo afro não é todo igual também, não é? Mas o facto de ela querer aprender, uma ucraniana, eu às vezes brinco com ela e digo ‘tu ainda vais abrir o primeiro cabeleireiro afro na Ucrânia. Vais ter três clientes, mas não faz mal”, brinca.
Em Portugal, Ana Sofia vai a dois salões apenas. “O Thon Eduardo, que é onde faço as minhas hidratações, que agora como estou a fazer novela é de 10 em 10 dias, e depois tenho, em Carcavelos, o Bruno Vicente, que é o cabeleireiro que eu uso em todas as sessões fotográficas. Há mais, claro, sempre que quero fazer afros vou à Afrobraids ou ao Martim Moniz. Mas tem de ser alguém que saiba o que está a fazer”, diz.
A atriz não esconde a felicidade em ver o número de salões a aumentar, ladeado pela consequência óbvia: mais visibilidade. “A nível de styling de tranças cá em Portugal, neste momento, a Afrobraids, por exemplo, elas [proprietárias] já abriram um salão no Porto tal é a afluência de clientes que têm. E elas são ótimas. São miúdas que veem na Internet, que pesquisam, chamam clientes para servir de cobaias... Agora têm dois salões cá em Lisboa, um, só para fazer texturização, outro, só para tranças, e são pequenos negócios que estão a emergir e que me deixam super feliz porque quando eu era miúda não existia nada disto. Era preciso ir aos sítios mais recônditos de Lisboa, era tudo muito escondido, muito hush hush. E agora fico muito contente. Mas vou ficar mesmo contente quando for a um supermercado e houver produtos para todo o tipo de cabelos. E eu até nem me posso queixar muito porque a minha textura até já faz um crossover. Para quem tem cabelo carapinha, mais crespo, é complicadíssimo encontrar num sítio normal, num supermercado, coisas para o seu tipo de cabelo.”
A igualdade é a meta: nos produtos e nos serviços. “Não deveria ser um problema eu estar agora a passar no Amoreiras e se me apetecesse arranjar o cabelo aqui, arranjava. Mas é, porque não há um cabeleireiro que saiba o que fazer com o meu cabelo”, solta. Para chegarmos a esse momento, a essa realidade, “é preciso vontade para isso e nem toda a gente a tem”, reconhece a atriz.
“As tranças dizem muito sobre mim” Sandra Baldé é, no mundo digital, Uma Africana (@umafricana). A criadora de conteúdos fala nas suas redes sociais abertamente sobre racismo, privilégio, e tudo o que afeta uma jovem de 22 anos em 2020. Entre posts, Sandra partilha também as mudanças constantes de visual, um reflexo da sua personalidade. “Diria que a minha relação com o meu cabelo é não muito linear. Desde muito nova que o meu cabelo sempre foi uma parte muito importante na minha vida, para a minha autoestima e para me sentir bem comigo mesma”, conta à Vogue. “O facto de eu ter o cabelo crespo sempre me fez sentir muito inferior às outas raparigas, sempre quis ter aquele cabelo comprido, esvoaçante, loiro... E o meu cabelo não era assim. Não era assim! (risos)”. Quando era mais nova, escondia-se em lenços e panos que cobriam todo os fios. “Era para fingir que era cabelo comprido. E a minha mãe ria-se sempre imenso quando eu fazia isso”.
Hoje, a jovem portuguesa e guineense está a caminhar no sentido de aceitar o seu cabelo natural. “Acho que é um processo que ainda está a acontecer. Quando era mais nova, passei pelo processo de alisamento, usei desfrisantes. Atualmente, eu já não uso nada disso, já não uso químicos no cabelo, deixei há cerca de três, quatro anos. Foi a questão da aceitação, foi a questão de ‘o meu cabelo já não está saudável então deixa-me lá parar com isto e cuidar um bocadinho dele’. No entanto, eu ainda não tenho o à-vontade de usar o meu cabelo a 100%, por aí, na rua”, admite.
Por isso, as tranças são o seu porto seguro. “Uso bastante tranças, sempre usei, desde sempre, e até hoje uso. Uso o meu cabelo natural de vez em quando, mas não com tanta frequência. É muito por esta questão do processo de autoestima, mas muito também pela praticidade porque, querendo ou não, cuidar do cabelo dá muito trabalho, e eu prefiro a praticidade das tranças. E de certa forma também acaba por fazer parte da minha identidade, as tranças dizem muito sobre mim e foi por isso que eu sempre optei pelas tranças, porque fazem parte daquilo que eu sou.” E mostrar o que somos torna-nos confiantes. “Não uso tanto o meu cabelo natural, as tranças são mesmo o meu safe space. Gosto de explorar os penteados, não gosto de usar assim só o afro porque ainda estou naquele processo de ‘será que isto combina comigo, será que não?’, então ainda gosto mais de me aventurar pelos penteados. Confesso que me sinto mais segura quando faço um penteado diferente, porque gosto mesmo de sair da minha zona de conforto. Eu sou um bocado contraditória (risos). Sou tímida e reservada, mas gosto muito de explorar o que é diferente. Acho que o diferente acaba por ser o meu porto seguro”, remata.
Habituada a tratar do cabelo sempre em casa, já que era a mãe que lhe cortava o cabelo e fazia todos os penteados, para Sandra a experiência dos salões é recente. “Comecei agora a ir aos salões por causa das tranças. Nunca tinha tido essa experiência de ir aos cabeleireiros muito porque eu não sabia se ia gostar do resultado, se as pessoas iam entender o meu cabelo, então eu sempre optei por fazer tudo em casa. Assim, de um modo geral, acho que nem toda a gente entende o cabelo afro, daí existirem salões específicos. Mas ainda assim é muito complicado, principalmente para as crespas, para as meninas do cabelo mesmo ‘tipo 4’, que é o meu, que é um bocadinho complicado porque as pessoas não estão tão por dentro de como é que é cuidar deste tipo de cabelo. O nosso cabelo é muito frágil, então qualquer coisa pode gerar danos muito complicados”. É, por isso, através de recomendações de amigas ou com alguma pesquisa que encontra sítios onde confiar o seu cabelo.
“Acredito que ainda haja algum preconceito com este tipo de cabelo. Até pode não ser do género “ó, meu Deus, o teu cabelo é horrível”, mas acaba por ser aquele cabelo que ninguém quer ter porque é aquele cabelo que... eu não quero usar a palavra difícil, mas que requer um certo tipo de cuidados e que, lá está, também não faz parte daquele típico tipo de beleza, dos cabelos lisos, compridos, ou até mesmo dos caracóis que já começam a ter mais aceitação. Hoje em dia começa-se a falar mais de aceitação do cabelo natural, do cabelo afro, mas o cabelo crespo acaba sempre por ser deixado para trás, até na questão de representação e representatividade, quando vemos as marcas a falar de representatividade e de cabelo afro e de cabelo crespo, mas o que se vê mais é o cabelo cacheado, o cabelo dos caracóis perfeitos, o cabelo crespo é deixado um bocadinho de parte. Querendo ou não, acaba por haver um preconceito, mesmo dentro do próprio movimento”.
O debate é, para Sandra, o motor principal para derrubar os estereótipos e conquistar a devida representação. Até porque “ainda há muito preconceito com o cabelo da mulher africana”, confessa.
“O cabelo natural (...) ajudou-me a reconciliar-me com as minhas origens” Laetitia Ky fez do seu cabelo o seu trabalho e a sua matéria prima para criar esculturas carregadas de simbolismo. “Além de ser um instrumento de beleza, o meu cabelo é algo com que eu trabalho e que uso para ajudar os outros a sentirem-se melhor e mais inspirados. Por essa mesma razão, o meu cabelo é extremamente precioso para mim”, conta à Vogue, por e-mail. A artista começou a brincar com os seus fios há dois anos e meio. “Vi uma fotografia incrível de uma mulher africana que tinha este penteado lindo com uma estética incrível. Já tinha habilidade para fazer tranças, por isso quis logo fazer mais experimentações com as minhas tranças, que são o meu penteado favorito. No início não era nada complicado, só coisas bastante simples. Mas quanto mais postava, mais feedback tinha das pessoas que eram tão simpáticas e encorajadoras para que continuasse a fazê-lo”.
Só no Instagram (@laetitiaky), Laetitia reúne 264 mil seguidores, que acompanham todas as suas criações, feitas com recurso a extensões de cabelo, fio, lã e arame. Hoje, a jovem tem uma relação com o seu cabelo que apelida de “saudável”. “Assim como muitas outras coisas no meu corpo, não costumava gostar do meu cabelo, mas hoje em dia estou apaixonada por ele. Valorizo profundamente cada aspeto dele, mesmo não gastando tanto tempo a tratar e cuidar dele como gostaria”, admite, explicando como foi um susto que, em 2012, a levou a optar por usar o cabelo natural. “Costumava fazer relaxamento capilar e usar sempre perucas muito apertadas. Um dia, quando tirei a minha peruca vi que todo o meu cabelo na parte da frente tinha desparecido! Fiquei horrorizada. Comecei à procura na Internet de uma solução para fazer crescer o cabelo de novo e descobri uma comunidade de pessoas que utilizam o cabelo natural. Fiquei estupefacta. Na altura, não sabia que era possível para uma pessoa negra não fazer um relaxamento. Comecei a seguir muitos naturalistas e decidi dar um corte valente, que é como quem diz, cortar o cabelo todo. Fi-lo e desde esse dia tenho-o mantido sempre natural. Ajudou a reconciliar-me com as minhas origens africanas, no geral. Aliás, independentemente de como tiver o meu cabelo, mantenho sempre a estética africana no penteado que escolher”.
Fazer do seu cabelo um veículo para passar uma mensagem, nomeadamente política, só surgiu mais tarde. “A decisão de tornar a minha arte mais politizada veio com o tempo. Quando comecei a publicar [no Instagram], as minhas esculturas não tinham realmente um significado por detrás. Achava simplesmente que eram ‘bonitas’. Sei fazer tranças desde que tenho cinco anos. Por isso, quando comecei a esculpir o meu cabelo, era tudo muito na base da experimentação. Mas, à medida que as mensagens começaram a chegar de mulheres a contar-me que os meus posts tinham elevado a sua confiança, acabei por perceber o impacto que o meu trabalho podia ter. Mesmo que não tenha nenhum significado especial, as pessoas sentem-se empoderadas. E pensei ‘e se eu usar a minha arte para partilhar mensagens importantes?’”.
A suposição levou à ação, e hoje o portefólio de Ky já inclui esculturas de cabelo sobre temas como a violência doméstica ou a sensibilização para o cancro da mama. “No que toca a ativismo, as pessoas vão-se sempre lembrar do que tens a dizer pela forma como o dizes. A minha arte é um bocadinho incomum, por isso pensei, ‘se eu lhe juntar uma mensagem, talvez pegue’. Parece que pegou”.
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