"I’ll tell you what freedom is to me: no fear." - Nina Simone
"I’ll tell you what freedom is to me: no fear." - Nina Simone
Enredada numa rede de comunicação virtual, nos milhares de emails, mensagens de WhatsApp e videochamadas necessárias para fechar esta edição, toda a equipa da Vogue estava longe de imaginar que o tema Liberdade, escolhido há mais de seis meses, para a edição de abril, viria a ser coroado com a ironia de um vírus chamado Corona, que nos privaria da liberdade que tomávamos como garantida todos os dias, sobretudo nos gestos mais simples e invisíveis que só a privação tornou enormemente conscientes.
E tudo parece estar suspenso, até que a vida real deixe de parecer ficção. Sentimo-nos personagens num filme cujo guião até nos é familiar, à medida que as ruas e prateleiras dos supermercados ficam vazias, o desinfetante para as mãos escasseia e as pessoas compram tudo o que se possa imaginar, na antecipação de um cenário apocalíptico, enquanto os hospitais se tornam verdadeiras zonas de guerra. Não deixa de ser assustador, tanto para quem não percebe nada do que está a acontecer como para quem percebe e vê um pouco mais a dimensão real e as implicações futuras... Porque, afinal, o guião é-nos familiar, sobretudo o guião que a própria história da Humanidade tem escrito e reescrito, demasiadas vezes, como se insistisse em ensinar-nos alguma coisa que parece impossível de se aprender.
Mais viral do que o próprio vírus é o medo que infetou uma sociedade inteira, um mundo inteiro, ligado pela tecnologia e pela comunicação social, que mais do que passar mensagens relevantes, insiste numa reportagem em direto de baixas ao minuto, de informação útil misturada com desinformação alarmista, que não peneira o essencial do sensacionalismo, que alimenta vorazmente um medo cego, o verdadeiro pânico, que nos priva mais da liberdade que a própria pandemia. E é esse pânico, precisamente, que poderá causar mais baixas que o próprio vírus.
A consciência e a responsabilidade, individual e coletiva, que deveriam iluminar de alguma forma o caminho, parecem fundir-se com fundamentalismo e histeria, propagados sobretudo pelas redes sociais, onde todos procuram um speaker's corner, um púlpito de atenção, para julgar, apontar dedos, e sobretudo para nos vangloriarmos enquanto seres humanos excecionais e cumpridores. Conter a propagação do vírus, responsabilidade individual e social é um dever de TODOS, dos que se podem dar ao luxo de ficar em casa como dos que têm a coragem de continuar a trabalhar, seja em que área for. Este não é o momento para sermos mais do mesmo, não é o momento para a hipocrisia. Não é o momento para aproveitar brechas de oportunismo individual e, ainda menos, político. Não é o momento de nos dividirmos, não é o momento de querermos ter razão em vez de usarmos a razão. Não é o momento de usar a razão sem emoção. Não é o momento de apedrejar quando só precisamos de voltar ao tempo de abraçar.
É o momento de sentirmos medo, sim, mas não o pânico que paralisa. Perceber do que temos realmente medo, de olhar de frente para esse mesmo medo, para que se possa transformar nalguma forma de ação. Medo e coragem sempre andaram de mãos dadas. O medo está diretamente ligado à sobrevivência, e aos instintos mais básicos que existem para nos proteger. Tudo o que não controlamos pode conduzir-nos a um desespero autêntico. Morte, doença, catástrofes naturais, a dor da perda podem mergulhar a nossa liberdade num fundo existencial, mas o desespero e o medo podem ser emoções construtivas, o prelúdio de qualquer conquista, a da própria liberdade. O momento de nos libertarmos do tanto a que nos apegamos, incluindo as nossas próprias neuroses, ideias pré-concebidas e esperanças ilusórias, o momento de repensar tudo e de nos recriarmos, que não é possível nos moldes confortáveis de uma existência imperturbável. O inesperado assusta, a mudança assusta. O medo é uma reação, a coragem uma decisão.
A coragem de mudar, a coragem de reerguer e começar do zero tudo o que for necessário, a coragem para estender a mão sem medo a quem precisa, a coragem para amar e partilhar em tempos difíceis é a única que pode curar. A vida, tal como a conhecemos, está em pausa. A liberdade, tal como a recebemos, também. Mas a liberdade não é algo que se receba ou um dado adquirido, é algo que se redescobre, redesenha e conquista, todos os dias. O maior paradoxo da liberdade é a sua interação com o destino, onde o acaso e as nossas escolhas convergem para nos tornarmos quem somos. A liberdade está no que decidimos fazer com as cartas que temos, mas as cartas são as que recebemos.
"Tudo pode ser retirado a um homem", escreveu Viktor Frankl, psiquiatra austríaco e sobrevivente do Holocausto, no seu tratado sobre a busca humana por um significado, "tudo menos uma coisa, a última das liberdades humanas: decidir a sua atitude em qualquer cenário de circunstâncias, escolher o seu próprio caminho."*
AMOR EM TEMPO DE CORONAVIRUSNum período em que o mundo editorial viu canceladas a maioria das produções fotográficas pelas questões de saúde mundial, os modelos Bibi Baltovic e Adam Bardy, casal de namorados a viver na Eslováquia, foram fotografados para uma das duas capas de abril, pela lente de Branislav Simoncik. O amor, o beijo, símbolos da liberdade, agora suspensa, como um registo histórico do momento que a Humanidade atravessa. Porque a capa de uma publicação também deve ser vista como uma cápsula do tempo, que guarda a imagem da máscara, criada propositadamente para esta foto pelo designer Lukas Kimlicka, simbólica que suspendeu o beijo, o abraço, a união por que todos ansiamos agora, e recordaremos mais tarde, ao olhar para trás. Para que nos lembremos de nunca tomar nada por garantido.
*You can read the english version of the editor's letter here. Also, grab a copy here.
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