© Benne Ochs / Getty Images
“Memory is never a precise duplicate of the original… it is a continuing act of creation”- Rosalind Cartwright
Uma das coisas mais extraordinárias sobre os seres humanos é que tecemos as nossas vidas de histórias, assentes em memórias sentimentais, que por sua vez estão interligadas ao nosso ambiente físico: as relações que criamos, os mapas emocionais que desenhamos com os lugares por onde andamos, o cheiro que nos transporta no espaço e no tempo, o que vestimos… As roupas que nos protegem, as que nos divertem, as que servem de uniforme, as que nos ajudam a afirmar a nossa identidade, as que usamos por nos lembrarem de alguém - em todas elas estão codificadas as histórias das nossas vidas. Todos nós temos um livro de memórias que vive numa roupa que usamos.
Jairo Garcia e Grecia Figueroa
Fotografia © An Le
Uma Vogue é também um álbum de recordações, por todas as histórias que a moda conta e pela arte fotográfica. A fotografia, que imortaliza um momento, parece preservar o nosso passado e torná-lo invulnerável às distorções da memória. Mas as fotografias também podem ser o oposto, suplantam e corrompem o passado, criando ao mesmo tempo as suas próprias reminiscências. Muitas vezes já me surpreendi ao perceber que uma lembrança minha, de infância, não é uma memória real mas apenas a memória de um registo fotográfico antigo, completado pela minha imaginação.
É tão desconcertante quanto fascinante perceber que o nosso cérebro absorve apenas uma fração dos acontecimentos e fenómenos que se desenrolam dentro e à nossa volta num determinado momento. A nossa memória retém apenas uma fração do que assistimos em momentos passados. Ao recordar, pegamos nesses fragmentos de fragmentos e tentamos reconstruir a partir deles a totalidade de uma realidade que é lembrada e parcialmente imaginada. Como observou o neurocientista Antonio Damásio, "muitas vezes usamos a nossa mente, não para descobrir factos, mas para ocultá-los”.
Naddié Kurgan e Hanna Nicole
Fotografia © Emily Soto
Fazemos isso a nível pessoal – a partir dessa memória seletiva e por meio de uma exclusão tão requintada, compomos a narrativa que é o pilar da nossa identidade. Fazemo-lo a nível cultural: aquilo a que chamamos História é uma memória coletiva, seletiva, que exclui muito mais realidades do passado do que inclui. Quaisquer que sejam as minhas memórias, certamente já devem ter sido alteradas pela passagem do tempo. Tenho tendência a concordar com a teoria de que se quisermos manter uma memória imaculada, não devemos recorrer a ela com demasiada frequência, pois cada vez que ela é revisitada, alteramo-la irrevogavelmente, lembrando-nos não da impressão original deixada pela experiência, mas da última vez que a recordámos. Até que ponto a nossa memória nos aproxima ou afasta do passado, com todas as pequenas diferenças que podemos acrescentar ou retirar a esse momento real, nunca saberemos, porque a memória que guardamos, traiçoeira ou não, será sempre a presente e verdadeira.
Mila Ramirez e Ian Martinez
Fotografia © An Le
Com o tempo, aprendi a aceitar humildemente quaisquer traições que a memória me traga. Ao distorcer a informação que deveria manter segura, o cérebro, para seu crédito, muitas vezes se curvará a alguma sabedoria estética instintiva, conferindo aos acontecimentos da nossa vida uma coerência, uma lógica e uma elegância simbólicas que não estão presentes na verdade de alguns acontecimentos vividos... afinal, mesmo inconscientemente, somos sempre os realizadores do nosso próprio filme. Verdadeiras, ou verdadeiramente falsas, no fim do dia, e da vida, somos o somatório das nossas memórias.
Gosto de acreditar que a memória, em última análise, reside no amor, na criação e na vida de cada dia presente. As pessoas que mais amamos tornam-se uma parte física de nós, enraizadas nas nossas sinapses e nos caminhos onde as memórias são criadas.
Publicado originalmente no The Memories Issue, de abril 2024. For the English version, click here.