O gossip desempenha, desde sempre, um papel importante em manter a nossa sociedade conectada. Mas se, num passado distante, o poder do gossip era uma skill de sobrevivência e integração, nos dias que correm a fronteira entre a naturalidade lúdica de um mexerico inofensivo e o poder destrutivo de falar dos outros levianamente é muito ténue.
“Some people talk about other people’s failures with so much pleasure that you would swear they are talking about their own successes.” - Mokokoma Mokhonoana
Fotografia de Branislav Simoncik
Fotografia de Branislav Simoncik
Somos seres humanos e compartilhar informações uns sobre os outros faz parte de quem somos em sociedade. Que atire a primeira pedra quem nunca espalhou um mexerico. Essa vontade de compartilhar uma notícia suculenta acabada de saber é intrínseca ao ser humano, uma característica natural da nossa espécie. Segundo os sociólogos, o gossip é provavelmente uma relíquia do nosso passado evolutivo. Por uma questão de sobrevivência, quase sempre foi necessário saber sobre a vida das pessoas em redor: quem tinha amigos poderosos, quem dormia com quem, quem tinha recursos limitados e quem seria capaz de (nos) apunhalar pelas costas quando surgisse uma dificuldade. Esse conhecimento ajudou as pessoas a progredir socialmente — e quem não estava interessado em saber sobre a vida dos outros não era bom a atrair nem a manter companheiros ou alianças, acabando por ser afastado ou eliminado.
O gossip desempenha, desde sempre, um papel importante em manter a nossa sociedade conectada. Mas se, num passado distante, o poder do gossip era uma skill de sobrevivência e integração, nos dias que correm a fronteira entre a naturalidade lúdica de um mexerico inofensivo e o poder destrutivo de falar dos outros levianamente é muito ténue. Numa sociedade cada vez mais informada (mas nem por isso mais tolerante), a falta de noção do que o gossip pode alimentar a alienação ou até a destruição de vidas privadas que se tornam públicas, julgadas e condenadas, só pelo prazer leviano de coscuvilhar.
No filme Dúvida, brilhantemente interpretado por Philip Seymour Hoffman (padre Flynn) e Meryl Streep (irmã Aloysius) há um diálogo em que o padre, ele próprio vítima dos mexericos e julgamentos da irmã, partilha uma parábola, que é para mim, a melhor descrição do poder irreversível do gossip: “Uma mulher estava a coscuvilhar com uma amiga sobre um homem que mal conheciam — sei que nenhum de vós alguma vez o fez. Nessa noite teve um sonho: uma grande mão apareceu por cima dela e apontou para baixo. Ela foi imediatamente surpreendida por um sentimento de culpa avassalador. No dia seguinte foi confessar-se. Foi ter com um velho pároco, o Padre O' Rourke, e contou-lhe tudo. ‘Falar dos outros é pecado?’ perguntou. ‘Era a mão de Deus Todo Poderoso a apontar para mim? Devo pedir a sua absolvição? Padre, será que fiz algo de errado?’, ‘Sim’, respondeu o padre. ‘Sim, mulher ignorante e mal-educada. Levantaste um falso testemunho sobre o teu vizinho. Destruíste a reputação dele, devias ter vergonha.’ A mulher disse que lamentava e pediu perdão. ‘Não tão rápido’, disse o padre. ‘Quero que vás para casa, pegues numa almofada, subas ao telhado e depois abras a almofada com uma faca. Depois disso podes voltar aqui.’ A mulher foi para casa: tirou uma almofada da cama, uma faca da gaveta, subiu pela escada de incêndio até ao telhado e esfaqueou a almofada. Depois regressou para junto do pároco, conforme as instruções. ‘Abriste o travesseiro com uma faca?’, perguntou. ‘Sim, padre.’ ‘E qual foi o resultado?’, ‘Penas’, disse ela. ‘Penas?’, repetiu ele. ‘Penas em todo o lado, padre.’ ‘Agora quero que voltes lá e reúnas todas as penas que voaram com o vento.’ ‘Bem’, disse ela, isso não pode ser feito. Eu não sei onde foram parar. O vento espalhou-as por toda a parte.’ ‘Isso’, disse o padre, ‘são os mexericos.’”
Publicado originalmente no The Gossip Issue da Vogue Portugal, de setembro 2022.For the English version, click here.