Fotografia: Hulton Deutsch / Getty Images
Nem todos os mistérios pertencem a um grande livro místico; por vezes, os maiores enigmas são os mais triviais. A verdade é que vivemos o nosso dia a dia com três realidades inquestionáveis: que nascemos, morremos e que, eventualmente, uma das nossas meias preferidas desaparece.
No que toca a pares de meias, a taxa de divórcio é digna de qualquer livro de recordes. Sejam coloridas, de padrão ou parte integrante de uma coleção homogénea, no fim, feitas as contas, sobra sempre só uma meia. Contudo, numa espécie de amor platónico, há quem não desista da relação e guarde a peúga abandonada na eterna esperança de reaver o par perfeito. Um mistério digno de uma investigação à la Agatha Christie, o esconderijo das meias perdidas é ainda um segredo por desvendar. Nesta meia-volta enigmática, podemos não saber onde andam as nossas soquetes perdidas, mas a sua história é igualmente fascinante.
A origem das meias é um labirinto que remonta a algumas das civilizações mais antigas da nossa História. Apesar dos egípcios serem os grandes pioneiros na invenção das peúgas como hoje as conhecemos, as coberturas rudimentares de pés datam até à Idade da Pedra. Graças a pinturas descobertas nas paredes de grutas, sabemos que os homens das cavernas usavam algo semelhante a meias para protegerem os pés e os manterem quentes. Fast forward até à Grécia Antiga, as meias fazem a sua primeira aparição entre versos. No poema Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo ilustra as chamadas “piloi”, feitas em pele de animal e utilizadas entre os pés e as sandálias.
Nunca um povo de se deixar ficar para trás, os romanos — que tradicionalmente enrolavam os pés em tiras de cabedal — não perderam a oportunidade de nos presentear com mais um marco histórico e criaram os “udones”, que consistiam na união de tecidos para formar uma cobertura de pés semelhante a peúgas. No entanto, na história das meias, nem todos os caminhos vão dar a Roma e o conceito de nålebinding — que envolve a utilização de apenas uma agulha para criar laçadas de malha — acabou por cimentar os egípcios como os verdadeiros impulsionadores das meias. As coberturas de pés encontradas em túmulos egípcios datam a uma época entre os anos 250 e 420 e, semelhantes aos icónicos Tabi da Maison Margiela, estas tinham uma divisão entre os dedos, de modo a facilitar o uso com sandálias. Numa verdadeira quebra de paradigmas, as meias assumiram-se como um acessório e símbolo de status na Idade Média. Entre paletas ecléticas e padrões coloridos, as simples coberturas de pés descartaram o seu papel meramente funcional, e as meias de seda tornaram-se um dos grandes must-have dos guarda-roupas aristocráticos. No entanto, um dos mais importantes capítulos na história dos nossos pés começou durante a Revolução Industrial: com a introdução dos métodos de produção em massa, as meias começaram a surgir num leque de materiais — como seda, algodão e lã — e tornaram-se cada vez mais acessíveis a todas as hierarquias sociais. Já em plena Segunda Guerra Mundial, a invenção do nylon voltou a transformar irrevogavelmente o futuro das meias. Com esta nova iteração, livre da necessidade de usar ligas para as prender, as meias tornaram-se práticas, extremamente confortáveis e, acima de tudo, um dos essenciais do vestuário contemporâneo.
Apesar da sua história estar repleta de reviravoltas, a verdade é que, hoje em dia, olhamos para as meias apenas como um prelúdio dos nossos sapatos favoritos. Como um eterno vaivém, as meias reverteram para um papel quase secundário no nosso guarda-roupa. Mas, mais do que um underdog na Moda, com uma variedade de materiais, tamanhos e estilos, as meias são o acessório perfeito para elevar diferentes tipos de calçado e dar um toque inesperado até aos looks mais simples.
Quanto ao mistério do seu desaparecimento, há quem diga que as meias desaparecem na máquina de lavar — como se um portal mágico se abrisse e as levasse para outra dimensão. Para outros, a fuga é planeada de uma forma mais minuciosa e acontece ainda antes de chegar ao cesto da lavandaria. Entre ficarem presas no tambor durante a lavagem ou levantarem voo quando as prendemos no estendal, as teorias sobre a fuga das meias não são infinitas — mas quase. O mistério do divórcio entre peúgas continua por desvendar e, à falta da existência de sessões de terapia de casal para objetos inanimados, a verdade é que a espera pelo retorno do par perfeito pode parecer ser em vão. Mas nem tudo está perdido. Volta e meia, numa coincidência inesperada, pode ser que a fatídica soquete apareça, quiçá, que nem uma meia perdida que se arrepende da inconstância de uma vida a sós e regresse em busca do seu “e viveram felizes para sempre”.
Publicado originalmente na edição "The Mystery Issue" da Vogue Portugal, de outubro 2024, disponível aqui.
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