Opinião  

Em cima da fotocopiadora

06 Oct 2023
By Diego Armés

O amor no horário de expediente, essa instituição menosprezada por tantos e que a tantos tem feito feliz, é dele que aqui se trata. Colegas de trabalho que acendem a chama a outros colegas de trabalho, chefias que se encantam por subalternos, estagiários que dão a volta à cabeça e ao coração de superiores. É todo um mundo, umas vezes mais secreto outras menos, de possibilidades. O que importa é não permitir que amar e trabalhar se tornem incompatíveis.

Foi só quando a máquina começou a apitar que Joana e Ricardo se aperceberam do que estava a acontecer. O toner vermelho tinha acabado enquanto o rabo de Joana estava a ser, incessante e involuntariamente, fotocopiado a cores, desfocado e cheio de grão. Os seus glúteos, arduamente tonificados à custa de intensas sessões de ginásio, apareciam espalmados nas fotocópias como se fossem nádegas já velhas e flácidas. “Vamos parar com isto”, sussurrou Joana, alarmada, primeiro pelo plim-plim esfomeado da máquina, depois pelas imagens deformadas da sua retaguarda espalmada, ali impressas num maço de 47 folhas descansado sobre a prateleira da fotocopiadora. Pôs-se de pé, vestiu as peças de roupa que lhe faltavam e ajeitou as que, restando-lhe no corpo, estavam desarrumadas. Pegou nas folhas, rasgou-as, deitou-as no cesto do lixo. Ricardo assistiu a tudo sem pronunciar palavra. Quando Joana se afastou, levantou as calças, compôs-se, e disse “Joana”, como se gritasse, mas muito baixinho, como se gritasse e sussurrasse ao mesmo tempo – e, mesmo assim, Joana censurou-o, “Não faças barulho, olha que nos ouvem.” O amor no local de trabalho não é apenas uma ciência inexata de intercâmbio químico – chega mesmo a ser um exercício pós-moderno de artesanato humano contemporâneo. E não há melhor maneira de introduzir o tema do que fazê-lo recorrendo a uma caricatura pitoresca que lhe seja alusiva. Falamos em relações no local de trabalho e a mente – pelo menos esta que vos escreve, uma mente habituada a pensar em coisas excessivas, transgressivas e, por vezes, escabrosas – viaja logo para um plano em que dois colegas de profissão, funcionários da mesma empresa, encontram maneira de fintar as várias regras sociais que delimitam um comportamento adequado para, no calor da função laboral, estreitarem laços com quem com eles partilha o local de trabalho. Quando falamos de regras, referimo-nos a um vasto leque de normas, que pode ir desde as leis que regulam o casamento – sim, o casamento é também um contrato legal – nos casos em que este seja posto em causa ou desrespeitado, até aos regulamentos internos de uma empresa, que normalmente preveem e condicionam as relações românticas – e aqui o romantismo é usado em sentido lato para descrever reciprocidades que começam por ser químicas e que depois avançam para o estado físico – entre funcionários. Há teses inteiras sobre o assunto – não é exagero: há mesmo trabalhos académicos dedicados ao tema –, diretrizes seguidas por departamentos de recursos humanos, opiniões genéricas de comentadores ocasionais da Imprensa e mais um sem número de inputs, como se diz em linguagem laboral pós-moderna, tendo em vista as vantagens e as desvantagens – ou os upsides e os downsides, vá –, os riscos e as vantagens potenciais de duas pessoas que, estando empregadas no mesmo sítio, se deixam enamorar uma pela outra. Fomos em busca de casos de relacionamentos amorosos em contexto de trabalho, que tratámos de retocar, ficcionando generosamente. Todos têm contornos diferentes, até porque a ideia era procurar desenlaces distintos para cada situação. Só no detalhe dos nomes fictícios estes casos parecem coincidir, uma vez que, surpreendentemente e sem explicação aparente, todas as histórias são protagonizadas por uma Joana e um Ricardo. Go figure. Para quem diz que não há coincidências: expliquem lá esta situação.

Cenas de um casamento

Quando Joana entrou pela primeira vez naquela redação de jornal, em 1998, já Ricardo lá trabalhava há seis anos, praticamente desde a fundação da publicação. Ricardo desempenhava funções editoriais, embora não fosse o editor efetivo da secção. Era uma espécie de subeditor que cobria folgas, férias e demais ausências do verdadeiro editor, um jornalista mais sénior, que assim dava experiência a um jovem que parecia ter potencial. E tinha mesmo, um potencial que haveria de vir a confirmar-se. Os talentos de Ricardo não se limitavam à capacidade de síntese e a uma sintaxe imaculada que faziam de chão a uma escrita rica, criativa, cheia de vida. Ele era também um galã, “desde os tempos de estagiário”, mas as coisas raramente se tornavam sérias entre ele e quem quer que chegasse e lhe despertasse interesse. Até que um dia chegou Joana. “Ouvi falar dele logo que cheguei.” E não há melhor chamariz para um rapaz charmoso, mais experiente e com graça do que um aviso generalizado a dizer “cuidado com ele, que ele não perdoa.” Não terá sido amor à primeira vista, contam que, a princípio, se pegavam com alguma frequência. “Mas isso era sinal de que havia alguma sintonia entre nós”, diz Ricardo, justificando que “se ela era estagiária e eu subeditor e discutíamos abertamente, é porque alguma química havia.” E havia mesmo. Começaram a sair em grupo, com outros camaradas da redação, e durante essas saídas foram ficando mais próximos – as tensões vividas à secretária desfaziam-se em sorrisos e confidências com uma cerveja na mão à porta dos bares do Bairro Alto. “Acredito que, neste meio, as relações no local de trabalho passam muito pelo que acontece depois do trabalho”, defende Joana. “As pessoas juntam-se, sobretudo quando ainda são jovens, como nós éramos, para sair, para beber um copo. Não é propriamente aquele estereótipo dos colegas que se andam a comer quando fazem horas-extra”, conclui. Não obstante, numa noite em que ambos ficaram a fechar páginas até mais tarde, decidiram sair juntos para jantar, mais fora de horas. Só os dois. Nunca mais foram vistos – pelo menos, não mais foram vistos um sem o outro. Em 2002 casaram-se e pouco depois tiveram o primeiro de dois filhos. O segundo chegou em 2008 – “e chega, está muito bem assim”, declara Ricardo. Entretanto, já nenhum deles é jornalista. “Um dos riscos de trabalharmos os dois no mesmo sítio é que a situação pode correr mal a ambos”, conta Joana, “que foi o que aconteceu no fim de 2012.” Um despedimento coletivo levou-os, e a dezenas de outros jornalistas, para fora do jornal e, por desilusão e desencanto, para fora do jornalismo há já dez anos. “Foi triste, mas estamos bem e estamos felizes”, garante Ricardo.

Um triste fim

Depois de quase dez anos a trabalhar na mesma equipa, Joana e Ricardo desenvolveram uma relação naturalmente próxima. Tornaram-se amigos muito para lá dos turnos tardios que faziam semanalmente no bar-restaurante onde ele era responsável pela sala principal e ela pela esplanada. Com o tempo e com o avançar da amizade, as famílias de um e de outro tornaram-se também próximas, ao ponto de passarem, por exemplo, férias juntas, aproveitando as duas semanas por ano em que o descanso de ambos coincidia graças ao encerramento do estabelecimento no fim de dezembro e início de janeiro. Experimentaram destinos de inverno – Andorra, Serra Nevada – e outros menos óbvios e mais veranis, que nessa altura do ano é um pequeno luxo: Joana recorda a viagem a Moçambique. E foi nessa viagem que começou o fim de tudo. Num momento em que a oportunidade surgiu, Joana e Ricardo beijaram-se. “Ficámos sozinhos um bocadinho, tínhamos jantado num restaurante de praia, não sei o que nos passou pela cabeça”, recorda Joana. No momento, o assunto morreu, mas o regresso a Lisboa trouxe uma reabertura do processo. Ricardo quis conversar acerca do sucedido e acabou por revelar sentimentos mais profundos do que a ligeireza daquele beijo fugaz podia sugerir. Joana mostrou desconforto, mas “uma mulher não é de ferro” e “a atenção e o carinho” fizeram com que se deixasse ir. Os turnos tardios tornaram-se cada vez mais longos e mais frequentes. O companheiro de Joana começou a desconfiar do excesso de trabalho, que não tinha maneira de abrandar. Confrontou-a com a situação. Joana não foi capaz de esconder e confessou tudo: sim, tinha um relacionamento com Ricardo. Mas não, não amava o seu colega de trabalho. Era só um escape. “A relação tremeu, abanou mesmo”, diz Joana, “mas não caiu.” Obviamente, a condição foi acabar com tudo imediatamente, uma condição que Joana aceitou. Ricardo, por seu lado, não lidou bem com o desfecho e entrou, segundo Joana, numa espiral destrutiva: separou-se da mulher, primeiro, contando-lhe tudo o que se tinha passado; depois, despediu-se e saiu de Lisboa em busca de uma nova vida. Joana e Ricardo nunca mais falaram um com o outro.

Uma escolha difícil

“Chegas a um ponto em que tens de optar, e eu optei”, explica Joana, que garante não se arrepender. Conheceu Ricardo quando entrou para a firma de advogados onde ele trabalhava. Ricardo era bastante mais velho do que Joana. Certo dia, chegou um processo que os juntou, “a adjudicação de uma obra pública, uma coisa grande, envolvia muitos milhões”, e que, pela dimensão e pela importância, obrigava a muitas horas de leitura, pensamento e debate em equipa. “O Ricardo tinha-se divorciado há não muito tempo quando o conheci. Eu não tinha ninguém, o meu namorado anterior era ainda dos tempos de faculdade.” Joana conta que não era muito dada a relações amorosas, que sempre prezou a independência, o seu espaço. “Além disso, tinha e tenho as minhas ambições e nem sempre é fácil conciliar a exigência deste trabalho com uma relação amorosa. Principalmente, se fores mulher. Um homem pode ser advogado à vontade, fazer noitadas, levar trabalho para casa. Mas da mulher parece que ainda se espera que tome conta do lar e, acredita, há alturas em que ficava satisfeita só por conseguir dormir mais de quatro horas, quanto mais fazer o jantar.” Ricardo apresentava vantagens: a maturidade, a experiência de um casamento redondamente falhado – “casei-me cedo, ainda antes dos 30, estava muito verde, muito imaturo, acreditava em coisas que acabaram por não ser bem assim” – e o facto de estar na profissão ajudavam a que tivesse uma capacidade de compreensão das necessidades de Joana que esta nunca havia encontrado antes. “A Joana, com a sua juventude, devolveu-me a alegria, mas uma alegria com os pés na terra, sem aquelas fantasias meio tontas das paixões imberbes.” A paixão, contam, foi-se acendendo pela admiração um pelo outro, primeiro, até que evoluiu para o gosto mesmo real – Ricardo confessa que sentia falta de Joana quando o tal processo chegou ao fim. E então decidiu convidá-la para jantar. “Aceitei na hora, nem pensei, claro que sim.” “Foi um começo muito natural, uma coisa que tinha de acontecer, porque fazia todo o sentido que acontecesse”, diz Ricardo. Começaram a namorar, aberta e publicamente, sem esconder nada. Só que a relação não foi vista com bons olhos na firma. “O presidente da administração chamou-me e disse ‘Ricardo, ou acabas com essa miúda, ou pelo menos um de vocês tem de sair’. Não queria que déssemos maus exemplos e tinha medo que perdêssemos o foco.” Joana e Ricardo, apanhados de surpresa, a princípio ficaram em choque. No entanto, depois de ponderarem, tomaram uma decisão. “O Ricardo ficaria na firma e saía eu, era o mais lógico.” E assim foi. “Tivemos de tomar uma decisão pragmática e esta era a única razoável. Não valia a pena deitar tudo a perder na nossa relação e seria uma patetice ficarmos os dois sem emprego.” Ricardo e Joana namoram até hoje, não chegaram a casar, embora esse plano não esteja posto de parte. Joana foi, entretanto, contratada por uma firma concorrente da anterior.

Um segredo só deles

“Separei-me há já muitos anos, mas não teve nada a ver com o caso”, conta Ricardo. “Nunca tive coragem para contar, nem tinha de ter. Contar para quê? Para estragar tudo? As coisas estão muito bem como estão”, afirma Joana. Ricardo concorda, “não nos vejo com uma vida a dois para o futuro, a constituir família, a vivermos juntos.” Ela trabalhava na imobiliária a que Ricardo se juntou, deu-lhe formação e foi sua coordenadora. Tempos mais tarde, decidiu abrir a sua própria empresa e desafiou Ricardo para ser sócio minoritário. Ele aceitou. Por essa altura já tinham o seu affair. Eram ambos casados. Ambos tinham filhos. Era a transgressão pura e dura. Mas Joana não gosta que se fale em traição. “Eu não traio ninguém, muito menos a minha família. Encaro esta relação como uma extensão da minha vida profissional: faz-me falta, mantém-me saudável, ativa, desperta.” Ricardo não se importa de ser “uma extensão da vida profissional de Joana” e até acrescenta que “essa situação” lhe dá uma sensação de liberdade tremenda. “Temos uma paixão um pelo outro muito saudável, não possessiva”, diz. “A Joana tem a família dela, eu tenho a minha vida, a minha privacidade. Somos bons companheiros um do outro. E temos muito desejo um pelo outro, com certeza. Mas sabemos onde fica o limite, aquela linha que não podemos passar.” Não trocam mensagens que não sejam de trabalho. Não se seguem nas redes sociais. Não fazem programas que não passem pelo trabalho. “O trabalho está no centro de tudo na nossa relação”, conta Joana. “E é para ser sempre assim. Não jogo com a minha família, com a minha estabilidade”, garante. “Só que também não abdico desta minha extravagância secreta.” O segredo fica guardado, não contamos a ninguém.

Originalmente publicado no The Coming Back Issue, em setembro de 2023.

ArtworkJoão Oliveira
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