Descrevem mundos, criam laços, declaram amor e descobrem verdades. Para Anabela Mota Ribeiro, são muito mais que uma ferramenta de trabalho.
Publicou quatro livros, foi curadora e colaboradora de diversos festivais, conferências e programações culturais, já teve programas de rádio e durante anos colaborou com diversos jornais e revistas. Já entrevistou centenas de pessoas, desde as mais mediáticas às mais incontornáveis ou mais reservadas e enigmáticas e desde 2013 que é possível aceder ao seu arquivo no seu blog (anabelamotaribeiro.pt). É a entrevista que marca e distingue o seu percurso. Atualmente é autora e apresentadora do programa de televisão Curso de Cultura Geral, na RTP2, que já vai na sua segunda temporada e foi recentemente nomeado para os Prémios Autores da SPA na categoria de melhor programa de entretenimento.
No discurso que leu em outubro de 2014, na Universidade Nova, a propósito dos seus 36 anos, para além do seu agradecimento especial dirigido a Maria Filomena Molder, sua professora de Filosofia Medieval e outras reflexões, Anabela falou da sua relação com a palavra, que na sua imaginação deve ser amorosa e atenta. Disse que o resto se aprende e muito se aprende fazendo. Foi o que fizemos. Na edição de abril já nas bancas, publicámos um excerto da entrevista em que lhe perguntámos (entre outras coisas), como fazer uma entrevista. Agora, pode ler quase toda a entrevista aqui.
©Gonçalo F. Santos
©Gonçalo F. Santos
É mais fácil entrevistar uma pessoa sobre si própria ou sobre determinado tema? Não é mais nem fácil nem mais difícil. São coisas diferentes. O que é importante é ter claro desde o princípio qual é o foco da entrevista, para não se perder o rumo. Porque se estamos a entrevistar uma pessoa sobre si própria, apesar de todas as digressões que naturalmente fazemos durante a conversa, aquilo tem um fio condutor e tem um propósito. A mesma coisa quando estamos a entrevistar uma pessoa sobre um tema especifico. Portanto eu posso preferir fazer entrevistas de vida a entrevistas sobre um tema, mas isso não quer dizer que seja mais fácil ou mais difícil.
E prefere uma à outra? Acho que sim, acho que prefiro as entrevistas que me permitem conhecer mais profundamente a pessoa com quem estou a falar. Isto porque tenho curiosidade sobre a espécie humana, mas também é muito estimulante falar com a pessoa sobre aquilo que ela faz, aquilo em que se especializou. O que resulta sempre, num caso e no outro, acho que é uma aprendizagem sobre ou um assunto especifico ou sobre a diversidade que todos temos.
Diria que a preparação para cada tipo de entrevista é diferente? Como é que costuma preparar-se para uma entrevista? Acho que ainda há uma coisa anterior à preparação que é a escolha do entrevistado. É um elemento a que é preciso dar a devida atenção porque se queremos entrevistar a pessoa porque ela é especialista num tema, temos que ter a certeza que não há outros especialistas do mesmo tema que possam resultar em melhor entrevistados. Antes mesmo de partir para a preparação, acho que o casting, a escolha da pessoa que vamos entrevistar é um elemento muito importante. Há pessoas que são muito boas escritoras e nem por isso são muito boas entrevistadas. Esta distinção, entre o talento que cada um tem para o exercício do seu ofício e o talento que tem para comunicação, para a revelação de si próprio, é uma distinção que importa fazer. É por isso também que podemos encontrar alguém que admiramos muito e de repente a entrevista não resultar,
Sente que é possível saber isso ou ter essa sensação de antemão? Muitas vezes só é possível quando estamos no momento, na ação. Mas acho que em todo este processo, temos que contar com a nossa intuição.
Então todas as pessoas que entrevistou até agora foram pessoas que quis entrevistar? Há sempre uma mistura, uma combinação entre as pessoas que eu quero entrevistar e proponho e aquelas que me são propostas pelos editores e diretores ou aquelas que se impõem eu função do momento mediático. É uma combinação destes três fatore. Há aquelas que eu quero entrevistar porque tenho curiosidade acerca delas, outras que me são propostas e eu aceito ou não aceito (normalmente aceito pelos editores e diretores das revistas) e depois há aquelas pessoas que naturalmente se impõem como incontornáveis porque estão a fazer qualquer coisa que é tão forte, tão mediatizado, que existe um interesse à volta delas. Se nós podemos escolher, e é importante sublinhar isto porque nem sempre podemos escolher, é preciso perceber ´quero mesmo entrevistar esta pessoa? Ela vai mesmo suscitar este interesse junto da opinião publica?
Então e como é que consegue responder a essa pergunta? Normalmente estas pessoas já foram entrevistadas ou há alguns elementos que nós podemos recolher ‘googlando’, vendo filmes, lendo, falando com pessoas. Há alguns elementos que podemos recolher e que nos podem ajudar a compor esta convicção de que nos vamos alimentado de que aquela pessoa é uma boa pessoa. Depois, pegando em qualquer coisa que ficou lá atrás e que é muito importante, é a preparação para a entrevista. Eu gosto muito de estar muito preparada, mas não excessivamente preparada. É uma coisa que costumo dizer. Porque se eu estiver excessivamente preparada acho que fico com a ilusão que acho que já sei tudo sobre aquela pessoa, então para que entrevista-la se eu já sei tudo? Acho que é importante recolher material, saber e esquecer ou pelo menos tentar trabalhar aqueles elementos que já sei de uma outra maneira para que eles possam ir dar a novos lugares e para que aquela entrevista não seja simplesmente um resumo de tudo aquilo que já foi dito nas entrevistas anteriores. É importante ter o conforto de quem se preparou, mas ter também a liberdade para poder esquecer o papel, esquecer aquilo que nós já sabemos e para receber aquilo que o entrevistado nos dá.
Vai sempre com perguntas preparadas? Não. (ri-se)
Mas há alguma situação em que seja necessário ir com perguntas preparadas? Às vezes vou com perguntas preparadas. Por exemplo, quando entrevistei o Plácido Domingo, tinha tempo contado para a entrevista. Acho que eram 45 minutos. E como tinha aquele tempo e não o tempo todo, não me podia dar ao luxo de ir testando caminhos, correndo o risco de aquele não dar nada e ter que regressar a um outro ponto. Tinha que ser mais focada, mais precisa na formulação e aí por exemplo levei perguntas. Mas mesmo assim, o que acontece é que há um momento qualquer em que eu parto das perguntas, para sabe-se lá onde. Onde a conversa nos levar. Gosto sempre dessa liberdade.
De partir das respostas que a pessoa dá para outras. Então, mas qual é que é para si o propósito de uma entrevista? Vai sempre com um objetivo bem definido? Há pouco referiu que é importante quando se prepara uma entrevista e se escolhe um entrevistado, ter noção do que é pretendido. Vou e ao mesmo tempo com uma liberdade muito grande para, a partir daquele enunciado, aquilo ser estilhaçado e de repente resultar noutra coisa. Acho que não deve haver nada de muito rígido. Acho que devemos ter alicerces suficientemente fortes para que o edifício possa ser chocalhado.
E quando há limitações impostas como o tempo ou pessoas que se recusam a falar sobre determinados temas. Há alguma condição à entrevista que a Anabela não aceita que seja imposta? Não sei responder. Não tive muitas situações em que as pessoas dissessem ‘não quero falar disto’ e quando tive, tinha sempre que ver com o mesmo que era não quero falar da minha vida privada e isso parece-me perfeitamente legitimo. Respeito.
Mas e se uma pessoa for famosa ou uma figura publica por causa da sua vida privada? Isso é diferente! Nunca entrevistei uma pessoa que é famosa por causa da sua vida privada.
Sim, mas há aquelas pessoas que revelam umas coisas e não revelam outras. Não sei, isso teria que pensar em termos concretos. Abstratamente não sei que dizer a isso. Uma coisa é entrevistar as pessoas por aquilo que elas fazem. O que as distingue entre outras seja um politico, um empresário ou alguém da cultura. Agora entrevistar uma pessoa que só existe mediaticamente porque expõem a sua vida privada, não sei teria que pensar porque nunca me confrontei com essa situação.
Sente que existe uma diferença entre entrevistar figuras publicas que são reconhecidas e pessoas comuns que não o são? Pode existir ou nós podemos esbater essa diferença. Eu gosto muito de entrevistar anónimos, vamos chama-los assim. Pessoas que são pouco conhecidas ou não são conhecidas de todo. O que eu acho mais importante é ter a mesma atitude em relação a uns e a outros e tem que ver com a curiosidade e disponibilidade para escutar o outro, escutar verdadeiramente. O que implica isso que a Catarina está a fazer que é esquecer as perguntas e seguir um determinado raciocínio, entrar na conversa. O facto de a pessoa ser reconhecida do grande publico não faz com que eu lhe dirija uma atenção especial ou a trate de uma maneira diferente daquela que trato uma pessoa que é anónima. Se eu decido entrevistar uma pessoa que é anónima, é por alguma razão então ela tem que ser tratada da mesma maneira e a minha curiosidade, a minha preparação e a minha disponibilidade para a escuta têm que ser a mesma.
Quando uma pessoa diz que não costuma dar entrevistas como é que tenta contornar a situação? Muitas, muitas, muitas, muitas entrevistas só foram dadas depois de meses em que a pessoa pensou, em que chegou o momento. Há certas coisas que de facto têm muito a ver com aquele momento especifico. Há outras para as quais é preciso um tempo de maturação e eu espero o tempo que for preciso para que a pessoa diga ´quero´.
Mas há pessoas que pode deixar de fazer sentido entrevistar se não for naquela altura. Claro. Há umas que faz sentido que seja naquele momento, é o momento que impõe aquela entrevista. Há outras, estou a pensar especificamente numa entrevista que fiz ao Alexandre Quintanilho e ao Richard Zimler, ao casal, aos dois ao mesmo tempo. A primeira vez que tinha pedido aquela entrevista e tinha escrito ao Richard, foi dois anos antes ou coisa assim antes dela acontecer. Naquele momento, a resposta que me deram acho que foi ‘o Alexandre não quer dar esta entrevista, acha que não está preparado para falar da sua vida privada, para falar da nossa relação homossexual.’. Passou mais de um ano, foram dois. Pode acontecer que daí um ano volto a lembrar-me e volto a contacta-los e a perguntar ´e agora já seria um bom momento?’ (ri-se). Passados dois anos já seria um bom momento? Isto não tem nada a ver com um disco que está a ser lançado ou qualquer coisa que se impõe naquele momento. Tem que ser na minha curiosidade em entrevistar aquelas duas pessoas e conhecer aquela história de amor. Portanto esperei o tempo que foi preciso e felizmente foi possível.
Há pouco falou das pessoas anónimas que às vezes entrevista. Como é que as encontra? Nas nossas relações.
Um dia conhece uma pessoa e... Claro! E acho que aquela pessoa é interessante. Amigos de amigos, alguém me falou daquela pessoa.
Então todas as pessoas podem ser potencialmente interessantes para ser entrevistadas? Potencialmente sim. Agora no meu programa de televisão por exemplo, esta é a segunda temporada, mas quer nesta como na primeira, era ponto assente para mim que eu ia ter figuras completamente anónimas e que ia mistura-las no programa com figuras públicas.
E como é que funciona essa dinâmica? Gosto muito disso. As pessoas reagindo ao programa dizem que gostam muito destas novas vozes porque não temos a impressão de que já ouvimos aquelas pessoas, de que estamos sempre a ver os mesmos. Uns são mais interessantes e uns são menos interessantes, mas são novos discursos. Eu valorizo muito isso. E a audiência que o programa tem também me faz perceber que as pessoas não ficam só a ver aqueles que já conhecem. Na primeira temporada por exemplo, o programa mais visto foi o último. Teve 52 mil espetadores o que é imenso para um programa de cultura que passa na RPT2 e tinha como convidados um poeta que é cirurgião que ninguém conhece, uma especialista em estudos islâmicos que ninguém conhece e uma historiadora que aparece na televisão que é mais conhecida, mas mesmo assim é dentro de um determinado grupo. Eu penso que isto quer dizer qualquer coisa. De facto, as pessoas podem ficar a ver outras pessoas que não conhecem de lado nenhum. Gosto dessa misturada, de trazer novas vozes, ouvir esta pessoa ou alguém me fala de alguém que conheceu. Normalmente, fico a matutar e depois posso ter interesse em falar com ela e perceber como é que ela é.
Como é que sente que a sua relação com a palavra a levou a fazer entrevistas? Eu comecei a trabalhar com a palavra dita. Comecei a trabalhar em rádio. Depois com a palavra dita e visível, que foi a televisão e só depois é que veio a palavra escrita. O lugar onde me sinto mais confortável é na escrita.
Porquê? Porque acho que permite um tempo de reflexão e um vagar que é mais difícil, muito mais difícil, de ter na televisão ou na rádio que vivem do instantâneo. Mesmo que o meu programa de televisão não seja em direto, é gravado como se fosse em direto. Na escrita posso pensar em cada palavra e tenho um tempo comigo própria de silêncio e de reflexão que acho que é muito precioso. Por isso é que acho que gosto mais e me sinto mais confortável na escrita. Não quer dizer que não goste e não me sinta também bem a fazer radio e televisão. Estive mais ou menos dez anos praticamente a fazer jornais e revistas e nos últimos dois anos e meio, três, tenho estado mais exposta e a fazer coisas só com um palco como no CCB ou a fazer o programa de rádio que fiz o ano passado ou na livraria Bertrand. Tudo isso são coisas em que eu estou mais visível e são coisas mais do imediato. São coisas mais fragmentadas também. A escrita é um ritmo, que se não é o oposto, é muito diferente disto. Por outro lado, como venho destes dez anos de reclusão da escrita, acho que posso aguentar mais algum tempo nesta exposição e nesta diferente maneira de viver a palavra. Mas a palavra é sempre o elemento fundamental em tudo isto porque tem que ver com comunicação.
Então esse afastamento momentâneo da escrita foi uma decisão pensada e ponderada? Porque exigia muito de si? Não, porque depois de dez anos achei que era interessante voltar a experimentar outros formatos e a fazer outras coisas. Na verdade, eu nem tinha intenção de me distanciar tanto da escrita e durante tanto tempo, mas acabou por ser assim. Também aconteceu que no primeiro ano e meio publiquei os livros e isto não é senão relação com a escrita. Era preciso algum tempo de trabalho e de investimento sobre os livros para que eles saíssem mesmo. Isto era difícil fazer com aquele ritmo semanal das entrevistas, aquele ritmo de jornal e de revista que tem que sair dai a uns dias. Portanto sim foi uma coisa pensada e foi a coisa certa no momento certo. Daqui a uns anos não sei como é que vai ser.
Sente que o valor da palavra ou da comunicação é mais forte na entrevista ou na escrita feita de forma individual? Penso que num caso e noutro o importante é perceber que as palavras dizem coisas. Lidar com as palavras percebendo que elas não são uma forma vazia. Dizer pedra não é o mesmo que dizer pessoa. As palavras têm um significado. Perceber o significado íntimo das palavras, perceber exatamente o que é que as palavras querem dizer, isso é que é o elemento fundamental. E isso é válido quer para a escrita própria, e, portanto, mais autoral, quer para a escrita como elemento de comunicação e fundamental num trabalho, seja numa entrevista ou numa reportagem. O que eu valorizo é o gostar da palavra e atentar nesse significado das palavras.
Alguma vez teve receio de não ter a mesma interpretação das palavras que alguém que está a entrevistar disse? Ah, mas isso acontece tantas vezes (ri-se). Por isso é que é tão bom ter isto gravado (aponta para o gravador). Porque existe uma grande diferença entre o que a pessoa diz e o que a pessoa quer dizer. Pode existir uma grande diferença. Mas existe depois um outro elemento fundamental que é a transposição deste discurso que é oral para a linguagem escrita e eu considero este exercício difícil. Parece uma coisa muito banal, é só escrever o que a outra pessoa disse, mas se o jornalista não souber muito bem português, não souber pontuar muito bem, acho que pode ser um desastre. Porque colocar reticências onde existia um ponto de exclamação ou um ponto de interrogação pode adulterar o sentido da frase. E aí sim. A pessoa não disse exatamente aquilo ou a entoação era outra. Mas nós estamos permanentemente sujeitos a um mal-entendido. O que devemos fazer é esforçarmo-nos para evitar o mais possível o equívoco. Mas temos de perceber que o equívoco é assim uma espécie de sombra que vai connosco em todas as formas de comunicação. Estamos sempre sujeitos a isso. Devemos tentar combater isso, mas pode sempre acontecer.
Fez uma entrevista, gravou a entrevista, qual é o próximo passo que se segue? Faz questão de transcrever logo a entrevista, transcreve todas as suas entrevistas? Pelos anos fora, em períodos que estava muito, muito ocupada, por vezes tinha a ajuda de uma pessoa na transcrição. Não sempre e nem sequer em metade das entrevistas, mas quando estava mesmo aflita recorria a essa pessoa. É uma pessoa da minha confiança a quem eu ensinei a transcrever à minha maneira.
Qual é a sua maneira? A minha maneira é, eu transcrevo tudo. Transcrevo tudo, desbasto aquilo que são advérbios de modo, repetições, bengalas, mas tenho que ter a ideia que tudo o que a pessoa disse está lá. Todas as frases que contêm ideias estão lá. As repetições não. Preciso expurgar o texto daquilo que é palha e por palha quero dizer as tais repetições, os advérbios de modo que muitas vezes estão lá e podemos prescindir deles. Essa parte da transcrição é muito importante. Ás vezes vou falar com alunos de comunicação social, quer na Universidade Nova quer na Escola Superior de Comunicação Social e falando sobre entrevistas especificamente eu acho que há vários momentos na entrevista. E há jornalistas que põem diferentes empenhos em cada um deles. Há jornalistas que apostam tudo na preparação, há pessoas que apostam tudo no momento da entrevista propriamente dito da entrevista e há outras que se empenham em especial na parte da transcrição e na edição daquilo. Eu acho que ponho um especial enfoque no durante. Preparo-me como disse, e essa parte é muito importante para mim, assim como sou muito cuidadosa com a transcrição. Mas eu diria que a entrevista já está no essencial pronta no momento eu que eu a faço. Por isso não é tão indispensável assim que seja eu a transcreve-la porque no essencial, ela já esta feita ali. Corto muito, muito pouco e também não costumo fazer grandes alterações quanto à ordem que a entrevista seguiu. Normalmente sigo, pelo menos 90% das vezes, a ordem pela qual as coisas aconteceram. Não pego numa pergunta que foi dita no final e ponho-a no principio. Não tenho nada contra isso, desde que isso respeite aquilo que a pessoa disse e o espirito da entrevista. Acho que esses jogos de edição, essa composição da entrevista é perfeitamente admissível, portanto não tenho nada contra isso. Pessoalmente, gosto mais de sentir o pulsar da entrevista como ela aconteceu, acho que fica uma coisa mais coloquial talvez, dá mais a ideia ao leitor que está ali a assistir, que é uma terceira pessoa aqui a mesa por exemplo, que está a acompanhar a nossa conversa.
Então prefere por exemplo, sempre que faz uma entrevista, publica-la estilo pergunta-resposta? Sim, sim prefiro.
Quando é que poderá fazer sentido o outro estilo? Bom aí tem a ver um bocado com o estilo de cada jornal ou revista, não é? Há editores que gostam mais de um discurso indireto e que as respostas sejam incorporadas no texto, há outros que gostam mais da pergunta resposta, depende um bocadinho do formato, nós não controlamos, tem que ver com a publicação.
Já alguma vez aconteceu sentir no fim que a entrevista não tem força ou que as respostas que foi à procura, não foram interessantes o suficiente. Claro, claro que isso tudo acontece. Ai é preciso trabalhar muito mais nesta terceira parte da edição. Quando de repente, ela não é tão substancial enquanto acontece temos de ir dando ritmo. Escrevendo de uma outra maneira se calhar, não tendo pergunta-resposta, mas compondo aquilo num texto que incorpora as respostas. Ai temos que coser a peça de uma outra maneira para disfarçar as debilidades que ela tem.
Quando publica entrevistas, inclui apenas material que recolheu na entrevista ou faz questão de incluir informação que recolheu nas suas pesquisas? Quando eu gravo, só transcrevo aquilo que está gravado.
Nunca ficou com vontade de acrescentar alguma informação? Isso posso fazê-lo na introdução.
É sempre importante haver uma introdução? Acho que sim, acho que o leitor tem que saber ao que vai. Acho que tem que ser feita uma preparação, não é? Mas se eu tenho o compromisso com uma pessoa de, há uma coisa que fica gravada, depois devemos respeitar essa transcrição.
Falou há pouco de quando tem encontros com os alunos de comunicação social. Qual é que o maior ou melhor conselho que sente que poder dar a esses alunos? Acho que é importante que sintam mesmo curiosidade, interesse e disponibilidade para a escuta do seu entrevistado. Acho que as pessoas percebem se o outro está ali negligentemente, com a cabeça noutro lugar ou se a pessoa quer mesmo saber, se a atenção é uma atenção genuína e se é inteira ou se é uma coisa em que o jornalista está distraído e não se preparou. Acho que a condição para que a entrevista corra bem é que se estabeleça uma relação de empatia e para isso é fundamental que o entrevistado perceba qualquer coisa no outro. E também acho que é muito importante que o jornalista perceba que ele não esta no centro da ação, o que interessa é outro. Tem de domesticar o seu ego (ri-se).
Seria então correto afirmar que qualquer pessoa, desde que tenha uma genuína curiosidade, pode ser uma boa entrevistadora? Não. Acho que essa elação é excessiva. Porque, acho que essa é uma das condições ou pelo menos é um elemento que eu considero importante, mas esta longe de ser o único. Acho que é também muito importante que a pessoa se prepare e é importante que a pessoa saiba perguntar. Há pessoas que não sabem fazer perguntas.
Como assim? Há pessoas que não sabem fazer perguntas!
Acham que já sabem tudo? Pode ser isso ou acham que sabem mais. Sabem mais que o entrevistado, aquilo que elas pensam é mais interessante do que aquilo que o entrevistado tem para dizer e, portanto, não fazem perguntas. Verdadeiramente aquilo é um exercício para se ouvirem a si próprias.
Já alguma fez uma pergunta para a qual já sabia a resposta? Sim. O que acho é que, como parto dessa informação que está disponível, dessa pesquisa que fiz, muitas vezes faço perguntas cuja resposta já sei ou acho que sei. Mas aquilo é uma espécie de primeiro degrau para chegar a outro lugar. Também muitas vezes acontece as pessoas darem respostas que não são absolutamente coincidentes de umas entrevistas para outras.
Porque é que acha que isso acontece? Porque nós não somos máquinas, não é? Porque temos ideias acerca de nós próprios que são oscilantes.
Quando está a entrevistar uma pessoa consegue perceber se ela está a tentar passar uma imagem formatada de si própria? Acho que todos passamos ou tentamos passar um bocadinho uma imagem formatada de nós próprios. Lembro-me sempre daquela cena do filme do Billie Wilder, o Sunset Boulevard, em que a velha atriz de Hollywood que já está demente, termina dizendo, ‘Mr. de Mille, I’m ready for my close up’. Ela própria está pronta para o seu close-up. De uma certa maneira, estamos sempre todos a tentar aparecer muito bem no nosso close-up e quando estamos a dar entrevistas, quando estamos a falar, mesmo com pessoas com quem fazemos alguma cerimónia, estamos sempre a tentar passar uma ideia muito bondosa de nós próprias. Não estamos ali a mostrar as impurezas da pele, não é? Portanto, não é muito diferente o que se passa numa entrevista daquilo que se passa lá fora.
Sente que alguma vez teve dificuldade em criar empatia com algum entrevistado? Não sei, sei lá. Há pessoas de quem eu gostei muito.
Pode dar alguns exemplos? Sim. A Maria de Sousa, cientista. O encontro com ela para a entrevista foi o começo de uma bela amizade como se diz no final do Casablanca. A entrevista pode ser o detonador de uma relação pessoal. Outras vezes não chega a existir uma relação de amizade, mas nós gostamos muito da pessoa e damo-nos muito bem com ela e a entrevista é muito bem resolvida desse ponto de vista. Há outras pessoas com quem a empatia não se faz mas isso não quer dizer nada. Estou a lembrar-me especificamente de uma pessoa mas não vou dizer o nome em que a entrevista resultou muito bem, muito bem mesmo e eu não gostei nada da pessoa. Era uma pessoa com quem eu não me relacionaria cá fora. Mas isso não tem nada a ver com a entrevista ou com aquilo que a pessoa disse na entrevista. Eu tento não levar os meus preconceitos.
E quando a pessoa está mesmo contrariada a dar a entrevista? Já alguma vez aconteceu? Acho que não, não sei. Acho que não. Não me lembro. Quer dizer se a pessoas está mesmo muito contrariada, em principio não dá. Porque eu faço pouco ou fiz pouco daquelas entrevistas de todos os dias, daquelas entrevistas em que a pessoa tem de dar para comentar o assunto especificamente. Em princípio, se a pessoa dá entrevista, quer dar a entrevista.
Todo o material é válido como possível fonte de pesquisa para se preparar para uma entrevista? Procuro tudo, mas depois tenho os meus critérios e não penso que seja tudo válido da mesma maneira.
Quais são os seus critérios? Por exemplo a Paula Rego. Se a Paula Rego for entrevistada pela Ana Sousa Dias ou se for entrevistada pelo Alvim (e ela já foi entrevistada pelos dois) eu tenho a ideia que espero umas coisas da entrevista com a Ana Sousa Dias e espero outras da entrevista com o Alvim. [nota: Anabela refere-se a Fernando Alvim, a quem eu fiz referência em determinado momento da nossa conversa a propósito de uma participação da jornalista e autora no seu programa É a Vida Alvim, no canal Q]. Provavelmente vou ver ambas, mas aquilo que vou guardar para preparar a minha própria entrevista é diferente. A informação pode vir de muitos lados, eu atento bastante, no caso de serem entrevistas, a quem é que as fez, sobretudo se não tenho tempo para ver tudo. Se vejo uma coisa assinada pela Ana Sousa Dias vou ver porque sou uma grande admiradora do trabalho dela ou uma coisa feita pela Alexandra Lucas Coelho ou Carlos Vaz Marques também é ótimo. Se não tiver tempo para ler cinco e se precisar de escolher e houver uma destes três por exemplo, é por aí que começo. Tem a ver com reconhecer o que os outros fizeram, identificar-me mais com o trabalho de uns do que de outros. Mas há assim uns elementos desconcertantes a que eu gosto de prestar atenção porque, no caso do Alvim por exemplo, como ele é muito desconcertante, isso pode provocar no entrevistado qualquer coisa que uma entrevista mais alinhada não provoca. É outro tipo de substância, outro tipo de coisa que pode ser interessante. Não quer dizer que seja sempre, mas pode ser. Tem ali um potencial que eu não negligencio.
Deu agora dois exemplos como se cada um tivesse um estilo muito próprio. Qual é que considera ser o seu estilo? (ri-se) Sei lá. Não sei. Acho que é mais difícil para mim responder a isso, acho que a Catarina pode responder. Acho que as minhas entrevistas vivem muito da minha concentração sobre o objeto sobre o qual eu estou focada que normalmente é uma pessoa. Vivem muito dessa tensão. Eu imagino muito uma corda retesada que não pode estar demasiado retesada, mas também não pode estar laça. Acho que a atenção, não me dispersar, permitir a dispersão, mas não me dispersar eu, indo para coisas que não têm que ver com aquele entrevistado acho que é importante. Eu gosto de falar com pessoas.
Já alguma sentiu que se tinha dispersado? É fácil manter o foco numa entrevista? Há sempre uma pessoa a comandar a entrevista ou isso nunca deve acontecer e deve haver sempre essa tal troca e essa sintonia? A entrevista é a relação, não é? E é por isso que por mais apurada que seja a pesquisa que façamos, pode resultar completamente diferente porque a dinâmica da relação é outra. Portanto qualquer coisa que eu respondi ao Alvim e que é diferente daquela que lhe respondo a si, podem ser as duas verdadeiras, mas as coisas podem ser muito, como dizer, dinamitadas e depois reconstruídas, a partir da relação e eu acredito muito nesse poder da relação. Nesse entendimento ou desentendimento que se faz com aquela pessoa especificamente e naquele momento especificamente. Eu entrevistei pessoas tão, tão diferentes umas das outras. Posso divertir-me com todas. Não tenho nada essa pretensão de ser eu a comandar a entrevista. Acho que é muito mais o entrevistado a comandar do que eu. Apesar de eu tentar que aquilo não seja a tal corda mole, laça. Eu tenho que ter alguma mão na entrevista e aquilo não é uma conversa porque o nosso estatuto não é igual.
Não é igual em que sentido? O nosso estatuto não é igual porque o que interessa é o que entrevistado diz e não o que o entrevistador pensa, não é? O que é que distingue uma entrevista de uma conversa? E muitas vezes as minhas entrevistas parecem uma conversa porque têm essa coloquialidade que eu mantenho mesmo na transcrição. Porque nós não estamos a falar como dois iguais. Eu tento não aparecer na entrevista. Aquilo que eu penso, aquilo que eu sinto, tento que seja diminuto, só o suficiente para manter a conversa. O que interessa, o foco está no entrevistado não está em mim. É nesse sentido que eu digo que temos estatutos desiguais, não somos duas pessoas amigas que estão a conversar à mesa do café.
Alguma vez sentiu que nem todo o tempo do mundo seria o suficiente para entrevistar alguém? Há pessoas inesgotáveis. Não sei.
E sentir que fica sempre alguma coisa por perguntar? Isso fica. As pessoas mantêm sempre o mistério, uma zona reservada. Tenho muito presente o caso da Paula Rego porque entrevistei-a cinco vezes. De cada vez que a entrevistava, não lia o que estava para trás. Depois foi muito interessante quando preparava o livro, perceber que havia muitas repetições e que havia temas recorrentes. Acho que isso tem a ver com quem eu sou e com quem a Paula Rego é, com os seus temas preferências. Mesmo que eu não tivesse relido a entrevista na véspera, não tinha aquilo presente, mas ia lá dar. Outras vezes ia dar a sítios diferentes partindo do mesmo lugar, por isso decidi assumir as repetições. No fundo podemos continuar sempre a conversa. Há núcleos que são repetidos porque tem que ver com a nossa identidade, com os temas, com as palavras que dizemos mais e depois às vezes, subitamente, vamos para outro lugar que é novo. Pronto, ok.
Quem é que gostaria que a entrevistasse? A mim?! (ri-se)
Não gosta de ser entrevistada? Não especialmente.
Mas já foi entrevistada muitas vezes. Sim, mas isto faz parte do trabalho. Eu sou muito pragmática. Faz parte do meu trabalho, sobretudo quando estou numa fase em que estou mais exposta ou tenho alguns projetos, seja o programa de televisão, os livros, qualquer coisa que precisa ser comunicada. Ser entrevistada faz parte disso. Mas não é propriamente uma coisa para a qual eu corra.
Então facilmente recusa entrevistas? Sobretudo quando o programa está no ar, as pessoas convidam-me para muitas coisas. Para moderar debates, para falar sobre livros, para entrevistas. A questão é que eu não tenho tempo. As vezes recuso coisas, ou muitas vezes recuso coisas, que seriam simpáticas, mas não é possível. Trabalhar como freelancer e trabalhar tanto quanto trabalho, tantas laranjas ao mesmo tempo que eu tenho de manter a girar e fazer depois todas as outras coisas para as quais sou solicitada. Eu acho que mesmo assim sou bastante disciplinada em relação à minha vida, ao meu trabalho, à agenda, tudo isso. Mas não dá. Não é possível. Não é possível eu ir para Leiria falar numa biblioteca e na semana a seguir ir para Barcelos falar sobre cultura geral. Não dá. Ainda hoje por exemplo respondi a uma pessoa que me desafiou a fazer uma coisa com ela que até seria interessante. E eu tive que dizer ‘eu gosto dessa ideia, mas não tenho tempo algum’. Depois aí é mesmo ser muito pragmática e pensar quais são os meus projetos este ano e como é que faço essa distribuição do tempo.
É possível aprender a entrevistar? Claro, claro que sim. A entrevista é só um género jornalístico como o outro. Há pessoas que têm mais talento para reportagem, outras para noticias, outras para entrevistas. Para começar, acredito muito na polivalência e todos devíamos saber fazer de tudo. Quando eu disponibilizei o meu arquivo no meu blog, vai fazer cinco anos no dia 14 de maio, percebi que era muito desigual aquilo que eu ia partilhar. Porque aquela que começou a entrevistar com, não sei que idade tinha, mas antes dos trinta e aquela que entrevista agora, evidentemente é uma pessoa com uma maturidade profissional e pessoal completamente diferente. É mostrar como nós crescemos e mostrar também os nossos rasgões e tropeções por isso sim, acho que todos podemos aprender. Temos que aceitar que falhamos muito, mas podemos tentar fazer melhor a seguir.
Ficha técnica
Fotografia de Gonçalo F. Santos. Styling de Cláudia Barros. Maquilhagem e cabelos por Elodie Fiuza. Assistente de styling: Guilherme Pamplona. Anabela veste blusa em veludo, Carlos Gil.