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A poesia da liberdade: Maria Teresa Horta

03 Apr 2018
By Irina Chitas

Estamos no mês da liberdade. A poesia é liberdade e a liberdade é poesia e nenhuma delas existiria sem palavras. Estas são as de Maria Teresa Horta.

Estamos no mês da liberdade. A poesia é liberdade e a liberdade é poesia e nenhuma delas existiria sem palavras. Estas são as de Maria Teresa Horta.

Maria Teresa Horta © Gonçalo F. Santos
Maria Teresa Horta © Gonçalo F. Santos

A poetisa conta-nos, letra a letra, como as algemas não suportaram a força de três mulheres, de Três Marias, de milhares de liberdades. Conta-nos, na primeira pessoa, como as grandes lutaram para que pudéssemos, agora, estar a contar esta história. A história das Novas Cartas Portuguesas.

"Nós escrevemos aqui as Novas Cartas Portuguesas, a Censura proibiu-nos, fomos para tribunal, era perigoso, estavamos no fascismo, íamos para as Mónicas, porque eles quiseram-nos castigar tanto que fingiram que nem era um processo político, nós fomos interrogadas pela polícia dos Costumes, onde estavam as prostitutas. Na sala estavam as prostitutas à esperam de serem ouvidas, e nós. Nunca nos caiu os parentes na lama, só que escritor é escritor e prostituta é prostituta - não é superior nem inferior, é diferente. Aliás, o inspetor Parente interrogou-nos, e o meu advogado, Luís Francisco Rebelo, um escritor, disse ‘Mas elas são escritoras, escrevem livros, o livro é muito bom, não é pornográfico, é um grande livro’, e o inspetor disse ‘Desculpe, mas não me fale se é grande livro que eu não sei nada disso’. Pois não, ele era um inspetor da polícia dos Costumes! Interrogava prostitutas e agora tinha três escritoras à frente. Ele só tinha ordem para a humilhação, a castração, a intimidação, por parte do governo, obviamente.

Quando nós vimos que estava a ser muito perigoso, um amigo da Isabel Barreno que ia para Paris teve a coragem - é preciso ter noção que para isto é preciso ter coragem - de se pôr à disposição de poder levar o que nós quiséssemos. Dois, três livros e cartas para quem nós quiséssemos para dizer o que se estava a passar, porque nem isto passava lá para fora, com a censura fascista era muito difícil, a não ser que alguém fosse lá e dissesse. Então ele levou três cartas, três livros das Novas Cartas. Foi para a Simone de Beauvoir, para a Marguerite Duras e para a Christiane Rochefort. Todas as três feministas, porque o feminismo só é mal visto em Portugal e em países de ignorância. Era assim e continua a ser. A Simone de Beauvoir tinha um grande grupo de feministas ligadas a ela, onde estava um grupo latino-americano, brasileiras sobretudo. Dizíamos que sabíamos que não compreendia português, mas que aquele grupo podia traduzir imediatamente e ‘verá que isto não é um panfleto feminista’, e ela fez duas manifestações, na rua, ao fim da tarde, a atravessar Paris, com os escritores todos atrás, e atores e tudo, até à embaixada portuguesa, com velas na mão."

Nós almoçávamos juntas todas as semanas, eu trabalhava n’A Capital, sou jornalista - a minha profissão é jornalismo -, a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa estavam a trabalhar juntas no INI, e saiam do emprego, metiam-se no carro da Isabel, passavam pel’A Capital, apanhavam-me e íamos comer ao restaurante Treze na Rua do Século. Dizíamos sempre que um dia havíamos de escrever alguma coisa juntas, mas a coisa foi sempre adiando. Eu publiquei a Minha Senhora de Mim, e a minha vida mudou completamente porque foi apreendida imediatamente, não pela Censura mas pela PIDE, oito dias depois. Entraram pela Dom Quixote, que é a minha editora hoje novamente, e levaram. A editora, a Snu Abecassis, foi chamada ao Ministro Moreira Baptista, que lhe disse ‘Olhe, a senhora publicou este livro que está apreendido. Não lhe vou fechar a editora, mas a próxima vez que publicar esta senhora eu fecho-lhe a editora.’ E ela teve aquela ingenuidade de lhe perguntar ‘Mas seja que livro for que ela escreva?’ e ele disse, ‘Eu explico: se for um livro chamado A História da Carochinha, por Maria Teresa Horta, e a senhora publicar, eu fecho-lhe a editora’.

Entretanto, os telefonemas para minha casa, a toda a hora, a todo o momento, atendidos pelo meu filho, que tinha seis, sete anos, estarrecido, coitado, nem percebia o que se estava a passar, ouvia ‘A sua mãe é uma esta, a sua mãe é uma aquela’; o Luís, que lhe diziam as coisas mais variadas; a mim, que não tinha descanso; de tal maneira que A Capital foi abrangida por isto e as telefonistas faziam uma triagem primeira, e depois ainda passava para o Rogério Fernandes, que estava a trabalhar diante de mim, e ele fazia a segunda triagem para chegar a mim. A minha vida mudou completamente. Havia também aqueles senhores muito simpáticos que me telefonavam, que passavam na triagem porque me admiravam muito, e que me vinham convidar para jantar. E depois havia aqueles que, um dia, eu saio para me encontrar com o Luís - ele estava ainda n’A Capital - à noite, morávamos no bairro social do Arco do Cego, aqui ao pé, um bairro muito solitário, e não há táxis. Para apanhar um táxi àquela hora da noite, tínhamos que ir à estátua do António José de Almeida. Era muito solitário. Eu ia subindo a rua, e sabe aquela coisa que a gente só repara depois? Logo que eu saí havia um carro com uma luz, mas eu só reparei depois. Sei que o carro dá a volta atrás de mim, tenta passar para cima do passeio, mas era um passeio muito pequenino, com aqueles candeeiros que vêm até abaixo - e aí ele batia - então parou mais à frente, mas eu nada disto achei estranho. Parou, saíram dois, um fica ao volante; mandam-me ao chão, desatam a bater-me com a cabeça no chão, a dizerem-me ‘Isto é para tu aprenderes a não escreveres como escreves’. Há um senhor que vem, que era ali do bairro social e que pensou que me estavam a roubar, e disse ‘O que é isso? O que é isso?’ e eles fugiram, não queriam com certeza que ficasse a matrícula, não sei. Ele veio ter comigo e disse ‘A senhora tem de ir para o hospital’, não haviam telemóveis, portanto fomos a casa dele, a mulher ligou, eu falei para o jornal com o Luís, ele veio ter comigo, fui para o Hospital Sta. Maria, não tinha nada, voltei para casa. Mas isto é só para você ver o que aconteceu naquela altura, aquilo foi uma catástrofe. Mudou a minha vida. Por causa de um livro."

"Aí, a Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa disseram ‘Bom, isto é um máximo’, e a Maria Velho da Costa disse ‘Agora é que nós devemos escrever. Temos que dizer o que se passa aqui, temos de falar da situação das mulheres em Portugal. Como é que isto é possível?’. Não era possível uma mulher escrever poesia erótica - que horror, que escândalo. Na altura das Novas Cartas, eu falei com homens cultíssimos que me disseram ‘Eu não levei o livro para casa, por causa da minha mulher’, claro, põe maus pensamentos na mulher dele… isto é uma coisa incrível. Aí, a Isabel Barreno, que estava a começar a escrever A Morte da Mãe, não estava muito interessada, e eu e a Fátima íamos falando - temos de arranjar uma mulher existente, não é inventada. A Mariana Alcoforado - e a Isabel disse ‘Vocês estão doidas? Detesto essa mulher. É uma hipócrita.’ Eu nunca percebi porque é que ela era hipócrita e a Isabel, coitadinha, morreu sem me dizer. Acabou o almoço, eu fui para o jornal, elas foram para o trabalho. Na semana seguinte, fomos almoçar e a Maria Isabel Barreno trazia o primeiro texto. Portanto, o único texto que se sabe qual das três fez - nunca nenhuma de nós disse quem escreveu o quê - é aquele. A Isabel escreveu o primeiro texto. A partir daí, tudo o que nos aconteceu já não nos pareceu estranho, porque nós já estávamos à espera de ser um terror. Tínhamos consciência, mas esse era o desafio da Maria Velho da Costa: se uma mulher sozinha fazia esta confusão, este burburinho, esta indignação, três? Vejam bem, três? Mais do dobro. E foi. Claro que foi." 

"Foi perigoso, e foi terrível, mas isto vai ao primeiro encontro internacional de mulheres, e pela primeira vez, e única até hoje, foi assinado um acordo em que todas as mulheres na parte ocidental do mundo, iam dar apoio às mulheres portuguesas, às Três Marias. E isso mudou a nossa vida. Porque nós podíamos ter ido para as Mónicas imediatamente. Porque nós podíamos ter tido tudo, éramos chacinadas, metidas nas Mónicas durante anos e anos se não tivesse havido o 25 de Abril, mas antes disso, se não tivessem havido estas mulheres que encheram as ruas de Lisboa, que fez com que viesse para aqui a televisão americana, que foi pedir ao juiz, quando ele desse a sentença, licença para filmar em tribunal, e o juiz foi falar com o advogado da Maria Isabel Barreno, Dr. Duarte Vidal, a perguntar: ‘Isto está cheio, dizem de feministas. Elas então vêm por aí abaixo?’. Eu acho isto espantoso. Elas vêm por aí abaixo. Não sei porquê por aí abaixo - podia ser por aí acima, por aí ao lado.

A verdade é que quando nós chegámos, no dia em que ele ia dar a sentença, em março - ainda não era Abril - a praça à frente do tribunal estava completamente cheia de mulheres, de montes de lugares do mundo, desde a Holanda, Brasil, Inglaterra, França, Bélgica, tudo jornalistas. Quando nós chegámos lá, estavam três carrinhas da polícia de choque. Caiu-nos a alma aos pés e dissemos ‘Bom, já sabemos qual é a sentença. E se nós fôssemos perguntar a eles o que é que estão aqui a fazer?’’. Lembrámo-nos que o Carlos Coutinho tinha um processo também na Boa Hora, político, claro, e fomos perguntar. A Isabel disse ‘Ai, eu não estou para isso’, e ficou sentada mesmo ali nas escadinhas da Boa Hora. 

"Nós fomos falar com a polícia e dissemos ‘Olhe, se faz favor, porque é que está aqui tanta polícia?’, e ele disse ‘Ah, as meninas não sabem? Pois, é que as Marias vão presas’. Pronto, já estava. Não era preciso o juiz dizer. ‘E está aqui tanta gente estrangeira que pode haver uma manifestação’. A Maria Velho da Costa, quando ouviu isto, disse ‘E agora? Se nos rapam o cabelo?’. Eu acho o máximo. ‘Olha o que tu te foste lembrar! Tu não és como o Sansão! Continuas a escrever’, e de repente, eu disse ‘Papel. E o papel para escrever? Ai, que horror! Como é que eu posso ir sem papel?’. Chegámos ao pé da Isabel e ela disse ‘E eu ralada, olha, paciência’. Já estávamos nisto há anos. Anos. E de repente estava ali aquela solidariedade, aquelas mulheres todas à nossa roda, e chega a menina do tribunal e diz ‘Senhoras doutoras e senhores doutores, o juiz deu parte de doente’. Não foi capaz, não foi capaz de dar aquela sentença diante das câmaras de televisão americana. Sim senhora, muito bem, cumprindo uma ordem do governo. Claro que se armou logo ali uma grande coisa, apareceu a polícia de choque, estupidamente foi subindo por ali fora atrás de nós e arrebanhando as pessoas que iam saindo das lojas, eles é que fizeram uma manifestação enorme. O juiz marcou o dia dez de maio para dar-nos a sentença e entretanto é o 25 de Abril. E pronto. E aconteceu a coisa melhor da minha vida, mais maravilhosa da minha vida, que eu acho que, entre outras coisas - o nascimento do meu filho, o dia em que eu conheci o homem que amo - o 25 de Abril é das coisas mais maravilhosas da minha vida, é a liberdade, porque nada se pode fazer sem liberdade. Não se pode ter luta das mulheres, não se pode ter luta pela escrita, nada. Não se pode ter nada sem liberdade. Eu sou uma lutadora. Eu acho que sou uma sonhadora da liberdade, porque eu não sou capaz de viver sem a liberdade, é a sensação que eu tenho. E vivi quase trinta anos sem a liberdade."

Leia a entrevista completa a Maria Teresa Horta na Vogue Portugal de abril, já nas bancas.

 

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