A Primeira-dama da Ucrânia fala sobre os frenéticos primeiros dias de Guerra - e como o país está a andar para a frente.
A primeira-dama da Ucrânia fala sobre os frenéticos primeiros dias de Guerra - e como o país está a andar para a frente.
Olena Zelenska em 2021. Fotografia: Stephan Lisowski para a Vogue Ucrânia
Olena Zelenska em 2021. Fotografia: Stephan Lisowski para a Vogue Ucrânia
Podemos pedir-lhe para descrever os primeiros dias da invasão? Do que se lembra com mais clareza?
Lembro-me muito bem do início. Era um dia e uma noite normais de trabalho: as crianças estavam a voltar da escola, as tarefas domésticas habituais, preparavam-se para o dia de aulas seguinte... Tínhamos estado sob tensão. Houve muita conversa, em todo o lado, sobre uma possível invasão. Mas até ao último minuto era impossível acreditar que isso iria acontecer... no século XXI? No mundo moderno? Acordei, algures entre as 4 e as 5 da manhã, por causa de um estrondo. Eu não percebi imediatamente que era uma explosão. Não entendi o que poderia ser. O meu marido não estava na cama. Mas quando me levantei, vi-o logo, já vestido, de fato, como de costume (esta foi a última vez que o vi de fato e camisa branca – a partir daí, foi militar). "Começou." Foi tudo o que ele disse. Eu não diria que houve pânico. Confusão talvez. "O que devemos fazer com as crianças?" "Espera", disse ele, "eu depois digo. Mas por salvaguarda, reúne algumas coisas essenciais e documentos.” E saiu de casa.
O seu filho tem 9 anos e sua filha tem 17. O que lhes disse sobre o que estava a acontecer?
Não há necessidade de explicar nada às crianças. Elas vêem tudo, assim como todas as crianças na Ucrânia. Seguramente, isto não é algo que deveriam ver, mas as crianças são muito honestas e sinceras. Não se pode esconder nada delas. Portanto, a melhor estratégia é a verdade. Por isso, discutimos tudo com a minha filha e o meu filho. Tentei responder às perguntas que tinham. Falamos muito, porque dizer o que dói, não ficar calado dentro de si mesmo, é uma estratégia psicológica comprovada. Funciona.
Obviamente tem pensado na segurança da sua família – ao mesmo tempo que testemunha a violência contra outros cidadãos ucranianos. Consegue descrever este mix de sentimentos pessoais e cívicos?
A guerra imediatamente combinou o pessoal e o público. E este é provavelmente o erro fatal do tirano que nos atacou. Somos todos ucranianos primeiro, e depois tudo o mais. Ele queria dividir-nos, despedaçar-nos, provocar um confronto interno, mas é impossível fazer isso com os ucranianos. Quando um de nós é torturado, violado ou morto, sentimos que todos estamos a ser torturados, violados ou mortos. Não precisamos de propaganda para sentir consciência cívica e resistir. É essa raiva e dor pessoal, que todos sentimos, que ativam instantaneamente a sede de agir, de resistir à agressão, de defender a nossa liberdade. Cada um faz isso da maneira que pode: soldados com armas nas mãos, professores que continuam a lecionar, médicos a realizar cirurgias complexas sob ataques. Todos se tornaram voluntários – artistas, donos de restaurantes, cabeleireiros – enquanto os bárbaros tentam dominar o nosso país. Eu vi que isso despertou os mais profundos sentimentos patrióticos nos nossos filhos. Não só nos meus filhos, mas em todas as crianças da Ucrânia. Eles crescerão patriotas e defensores de sua pátria.
Como tem lidado com tudo, emocionalmente? Existem amigos ou fontes de apoio a quem recorreu durante este período? Conseguiu contactar com o seu marido naquelas primeiras semanas da guerra? E hoje em dia?
No início, não havia tempo para emoções. Era preciso cuidar das crianças, dos seus estados emocionais. Por isso, tentei ser confiante, sorridente, enérgica, explicando-lhes que, sim, é necessário ir pra a cave e é por isso que não se pode acender a luz. Tentei responder com otimismo à pergunta deles: “Quando é que podemos ver o pai?” "Em breve." Naqueles primeiros dias, esperava que pudéssemos ficar com ele. Mas o escritório do presidentetornara-se uma instalação militar e os meus filhos e eu fomos proibidos de ficar lá. Recebemos ordens para nos mudarmos para um lugar seguro – se na Ucrânia for possível encontrar um lugar seguro agora... Desde então, temos comunicado com o Volodymyr apenas por telefone.
“Este é provavelmente o erro fatal do tirano que nos atacou. Ele queria nos dividir, nos despedaçar, provocar um confronto interno, mas é impossível fazer isso com os ucranianos”.
Que desafios as mulheres no seu país, em particular, enfrentaram quando a Rússia invadiu?
Quero que todas as pessoas do mundo entendam que as mulheres ucranianas viveram uma vida pacífica e moderna, como vivem os leitores da Vogue em todos os países. Na verdade, elas eram as suas leitoras, porque existe a Vogue Ucrânia. Elas não estavam a preparar abrigos antibombas para ataques com mísseis. Mas desde o início, desde que os mísseis russos começaram a atingir prédios residenciais em diferentes cidades, ficou claro que a Rússia não tem misericórdia por vidas pacíficas. Todos os ucranianos deixaram de se sentir seguros. Tivemos que aprender a reunir rapidamente os entes queridos ao som da sirene e ir para ao metro ou para a cave mais próximos. No terceiro dia de guerra, uma criança ucraniana nasceu num abrigo antiaéreo. E depois disso, milhares de mulheres tiveram que dar à luz em abrigos antiaéreos, porque vimos o que pode acontecer com maternidades como a de Mariupol, que os russos bombardearam. Há um problema em tratar crianças também, especialmente aquelas com doenças graves. Mães e avós vivem em hospitais com essas crianças há meses. E agora teremos de levá-los para o exterior para tratamento. As mulheres tiveram que deixar as cidades ocupadas – como Bucha e Gostomel, arriscando as suas vidas sob fogo – com crianças e idosos, muitas vezes a pé, muitas vezes sem homens, porque os homens não seriam libertados pelos ocupantes. O mundo viu isso no início de março, quando as pessoas atravessaram uma ponte que explodiu na cidade de Irpin. E agora que essas cidades estão desocupadas, sabemos mais sobre o que as mulheres ucranianas enfrentaram: insegurança total, ameaça de violência. Uma investigação internacional deve ter uma palavra a dizer aqui. E quantas mulheres permanecem nas cidades ainda ocupadas de Kherson, Melitopol, Berdyansk? Elas não podem comunicar à sua família o que está a acontecer, porque não há rede, ou qualquer contacto que façam seria rastreado. Há dezenas de milhares de mulheres com filhos nas ruínas de Mariupol. E pode-se imaginar o pesadelo que estão viver, à procura de comida sob fogo há um mês, porque a ajuda humanitária não é permitida. Cerca de quatro milhões de mulheres e crianças migraram e agora estão noutros países. E ser um refugiado é difícil tanto mentalmente quanto fisicamente. Porque tens de começar tudo de novo. Como é viver quando não podes nem usar as tuas roupas? Como explicas a uma criança por que é que não está a dormir na sua cama? É um teste que não desejas a ninguém.
Há alguma história específica de alguma mulher – entre tantas – que gostaria de partilhar?
Posso contar dezenas dessas histórias. Por exemplo, após a desocupação da região de Kiev, ouvimos a história de uma médica, Iryna Yazova, que havia permanecido em Bucha. Ela resgatou vizinhos e desconhecidos, que procuravam abrigo e tratamento de ferimentos. Anestesiou-os e colocou-lhes ligaduras. Ela até ajudou uma mulher a dar à luz – sem luz, água e gás, numa casa sob fogo. A história dos seus atos diários de coragem já foi contada por vizinhos que lhe devem as suas vidas. Há também a história de uma mãe em Kiev – Olga, que cobriu a sua filha de 2 meses quando um foguete atingiu o prédio onde estavam. Ou a história da professora do orfanato de Chernihiv, Natalia, que morava com 30 crianças (uma das quais a dela) numa cave. Ela alimentou-os e cuidou deles, até que encontrou um veículo e, sob fogo (porque Chernihiv esteve sob bombardeamentos desde o início), levou-os para um lugar seguro.Há quase tantas histórias como há ucranianos. Lancei um canal no Telegram que convida os ucranianos a partilharem as suas experiências de guerra. Cada história pessoal é a história do nosso país.
A destruição de cidades e vilas ucranianas foi horrível. Houve um ataque inicial que lhe pareceu indicador de quão longe Putin e o exército russo estavam dispostos a ir? Foi o ataque à maternidade em Mariupol? Houve uma linha que sentiu que foi pisada no início?
A linha de que fala foi pisada no primeiro dia – no primeiro! A Rússia, na altura (como agora), mentiu quando disse que estava apenas a apontar para locais militares. De facto, no dia 24 de fevereiro, os seus ataques mataram uma despachante civil do serviço de gás chamada Svetlana, em Chuguev, que estava simplesmente a fazer o seu trabalho. Esse foi o primeiro dia! Nos dias seguintes, perdemos crianças. Morreram de ferimentos por estilhaços nas suas cidades natais. Perdemos mais de 200 crianças. Então, cada caso foi indicador para nós. Bloqueada, Mariupol destruída é a nossa dor terrível. Isso continua. E a região de Kiev tornou-se horrível – foi o que vimos quando o exército russo recuou. O mundo aprendeu o nome Bucha. Esta é uma das cidades outrora belas perto da capital, mas os mesmos horrores podem ser vistos em dezenas de vilarejos e cidades na região de Kiev. Pessoas mortas na rua. Não militares — civis! Sepulturas perto de parques infantir. Não consigo nem descrever. Isso deixa-me sem palavras. Mas é preciso olhar para isso. Espero que não sejamos os únicos a ver a mensagem que a Rússia está a enviar. Esta mensagem não se dirige apenas a nós. Esta é a mensagem deles para o mundo! Isso poderia ser o que acontece com qualquer país que a Rússia não goste.
A Olena e o seu marido imploraram às nações que fizessem mais para responder a esta invasão – e especificamente pedem aos EUA que imponham uma zona de exclusão aérea. Ainda sente que é a ação certa para os EUA tomarem?
Sim, nós pedimos, oficialmente e não oficialmente. Assim como todos os ucranianos, nas suas redes sociais, nos protestos. Quando o cerco russo a Mariupol começou, ficou claro que a Rússia não estava apenas a disparar foguetes, mas também a bombardear do ar. Uma das bombas caiu num teatro onde mais de mil pessoas estavam escondidas. Cerca de trezentas pessoas morreram ali. Conheço, por exemplo, uma família que perdeu o filho, a filha e uma neta. Apenas os avós e a filha mais velha permaneceram vivos. Como é que eles vivem depois disso? Pedimos para fechar o céu acima de nós para que os ucranianos não perecessem. Mas a NATO considerou isso um conflito direto com a Rússia. Por isso, posso dizer agora que só a Rússia é a culpada por mais mortes? Pergunta retórica. Pergunta se este é a tomada de decisão certa para os Estados Unidos. Eu digo – e isso não é verdade apenas para os Estados Unidos – dê uma resposta dura às ações do agressor ou o agressor será incentivado a mover-se. A Rússia sabe que o Ocidente não cobrirá o céu, e esse facto encoraja-a a cometer atrocidades. O mundo democrático deve estar unido e dar uma resposta dura, mostrando assim que no século XXI não há lugar para matar civis e invadir território estrangeiro. Eu vi uma caricatura da NATO e organizações mundiais a ver uma casa a cair com a inscrição UCRÂNIA. Talvez isso tenha sido um exagero, porque a Ucrânia tem armas. Mas também precisamos de proteção! É verdade que essa proteção é dada àqueles que foram para o exterior. Milhões das nossas mulheres e crianças recebem agora ajuda de governos e milhões de civis na União Europeia. Sou infinitamente grata por isso.
“O principal é não habituar-se à a guerra – não transformá-la em estatística. Continuar a ir a protestos, continuar a exigir que os governos tomem medidas. Os ucranianos são iguais a si.”
O que acha dos movimentos recentes do exército russo? Vê algum sinal de que a Rússia está disposta a diminuir a escalada de violência?
O que importa aqui não é o que eu penso, mas o que realmente está a acontecer. Honestamente, ninguém na Ucrânia acredita em qualquer declaração do agressor. E afrouxar a ofensiva ainda não é visível. Os russos retiraram-se da região de Kiev, mas intensificaram os seus ataques nas regiões de Donetsk e Odessa.
O que é que os cidadãos podem fazer para ajudar os ucranianos?
O principal é não habituar-se à guerra — não transformá-la em estatística. Continuar a ir a protestos, continuar a exigir que os governos tomem medidas. Os ucranianos são iguais a si, mas há pouco mais de um mês, as nossas vidas mudaram radicalmente. Os ucranianos não queriam deixar as suas casas. Mas muitas vezes elas deixaram de existir. Os ucranianos há muito que se mudam sem visto, na Europa – muitos podiam viajar e viajaram. A maioria do nosso povo já esteve no exterior, antes. Mas eles não planeavam ser refugiados. Por isso: trate-os como um dos seus. O principal sonho destas mães e crianças é voltar para casa, reunir as suas famílias. Portanto, ajude-os a adaptar-se, por favor – em casa, no trabalho, na escola para as crianças – até que possam retornar. Além disso, todos no mundo devem saber que a Rússia está a conduzir uma enorme guerra de informação no cenário mundial. Qualquer informação deles deve ser tratada com cautela e pensamento crítico. Nos últimos dias, vimos várias ações pró-Rússia na Alemanha, Grécia e outros países em apoio à guerra. Estão a ser feitas por russos. Um russo normal deveria sentir apenas vergonha das ações de seu país, das atrocidades que o seu exército está a cometer. Eu nunca apelo à violência. Mas aqueles que apoiam a guerra não devem ser de confiança.
Como está a sua vida agora?
Vivo da mesma forma que outros ucranianos. Todos nós temos um grande desejo: ver a paz. E eu, como qualquer mãe e mulher, preocupo-me constantemente com o meu marido e faço de tudo para manter os meus filhos seguros.
E o que lhe dá esperança?
A minha família — como todos os ucranianos — e os meus compatriotas: pessoas incríveis que se organizaram para ajudar o exército e ajudar uns aos outros. Agora, todos os ucranianos são o exército. Cada um faz o que pode. Há histórias de avós que fazem pão para o exército só porque sentem esse dever. Eles querem trazer a vitória para mais perto. Assim são os ucranianos. Todos nós esperamos por eles. Esperamos por nós mesmos.
Existe algum momento específico do último mês que sabe que nunca esquecerá?
Cerca de uma semana após o início da guerra, eu estava a ligar para tentar descobrir onde estava a minha família e saber se os meus parentes estavam vivos. E, em determinado momento, percebi que não sabia se os veria novamente - aqueles que amo, o meu amado povo! Essa foi provavelmente a primeira vez que chorei - a primeira vez que libertei as minhas emoções. Não aguentei. Sempre me lembrarei dos meus conhecidos e amigos, todos os homens e meninos em uniformes militares. Sempre me lembrarei de como as minhas amigas são corajosas! O que essas mulheres - frágeis e elegantes em tempos de paz - são capazes de fazer quando há guerra ao redor! As suas histórias inspiram-me. Estou tão orgulhosa deles. E eu sonho com vê-los novamente.
Esta entrevista, realizada por e-mail em colaboração com a Vogue Ucrânia, foi editada para maior clareza.For the english version, click here.
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