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Última chamada: a questão da eutanásia

29 Apr 2020
By Joana Moreira

Morrer quando chega a nossa hora? Ou quando decidimos que a vida, por si só, já é morte? Falar da eutanásia é, também, falar de direitos. Incluindo os que já temos.

Morrer quando chega a nossa hora? Ou quando decidimos que a vida, por si só, já é morte? Falar da eutanásia é, também, falar de direitos. Incluindo os que já temos.

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© Bea De Giacomo
© Bea De Giacomo

Onde há vida, a morte é uma inevitabilidade. Mas a decisão de a antecipar, ainda que para poupar o sofrimento de alguém, é uma matéria que move paixões, divide indivíduos e instiga o debate. Na Europa, os primeiros países a descriminalizar a eutanásia foram a Holanda e a Bélgica, em 2002. Hoje, a morte medicamente assistida não é crime em mais dois países europeus: Suíça e Luxemburgo. Em Portugal, a eutanásia, ou morte assistida, o ato que leva à morte de um doente por sua vontade, não está explicitada como crime, mas pode incluir-se em três artigos do Código Penal: homicídio privilegiado (artigo 133.º), homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º) e crime de incitamento ou auxílio ao suicídio (artigo 135.º). Entre 2009 e 2019, terão sido sete os portugueses que foram morrer à Dignitas, na Suíça, segundo o Jornal de Notícias, que, em fevereiro, adiantava que havia outros 20 inscritos na associação sem fins lucrativos que "ajuda as pessoas a morrer com dignidade.”

A discussão não é nova, tampouco os seus argumentos. Entre os principais fundamentos de quem defende a despenalização da eutanásia está a possibilidade de os doentes terminais poderem acabar com um sofrimento prolongado e sem fim à vista. Além disso, também a questão dos direitos individuais, da dignidade e da liberdade de escolha são as pedras basilares de quem acredita que a morte medicamente assistida deve ser descriminalizada. Do outro lado, os opositores à eutanásia defendem que a vida humana é sagrada e inviolável, muitas vezes com base em crenças religiosas ou mesmo éticas. Outro argumento é o receio de a lei criar precedentes e levar a uma banalização da morte assistida, passando esta a abranger cada vez mais quadros clínicos.

Porém, a questão é complexa e ultrapassa a simplicidade dos argumentos acima descritos. Não foi a primeira vez que o tema foi discutido em São Bento, mas foi, em fevereiro, que se deu o primeiro passo para a despenalização da eutanásia em território português, com a aprovação no Parlamento dos cinco projetos de lei, do BE, PAN, PS, PEV e IL. Todos foram aprovados na generalidade (o do PS foi o mais votado, com 128 votos a favor), dando início a um processo legislativo longe de terminar. É que depois da aprovação na generalidade, os projetos de lei seguem para a especialidade, onde sofrem ajustes até se chegar a um texto final. Esse novo texto tem novamente de ser votado na especialidade e, depois, ser submetido a uma votação final. Só então é que a lei segue para Belém, onde o Presidente da República (que já disse que só se pronunciará sobre o assunto no “último segundo”) a pode vetar, promulgar ou enviar para o Tribunal Constitucional. Um processo moroso, apesar de muitos já cantarem vitória com este primeiro passo.

Todos os diplomas aprovados se apoiam em princípios comuns: o indivíduo que requer eutanásia tem de ter mais de 18 anos e um quadro clínico isento de doenças mentais; tem de fazer um pedido expresso, bem ponderado e de livre vontade, através de um médico, e tem de estar consciente e mentalmente capaz; a sua situação clínica não pode apresentar quaisquer perspetivas de evolução favorável, e o seu sofrimento tem de ser constante e insuportável; o médico a quem o pedido for feito tem de conhecer bem o requerente, seguindo-se ainda um processo de certificação com intervenção de outros médicos. A despenalização em todas as propostas de todos os partidos abrange também quem pratica a morte assistida, nas condições da lei, ficando garantida a objeção de consciência para médicos e enfermeiros.

Mas a aparente (nem todos votaram a favor dos diplomas) sintonia entre partidos não se estende necessariamente fora das portas da Assembleia da República. Em declarações à Agência Lusa, minutos após a aprovação histórica, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, considerou não existir “suficiente maturidade para fazer esta discussão, porque há muito a fazer pela vida antes de fazermos pela morte”. “Não temos uma rede de cuidados paliativos, não temos equipas domiciliárias para toda a gente, e, portanto, teríamos de começar por aí e, então, fazer essa discussão”, alegou.

Em 2018, quando o tema foi pela primeira vez votado no Parlamento, a Antena 1 falou com Jan Berhein, um médico reformado especialista em eutanásia e um dos primeiros defensores da lei da eutanásia na Bélgica. “Primeiro que tudo, os cuidados paliativos têm de ser oferecidos ao doente, e recusados. E isto acontece. Raramente, mas nalguns casos acontece. Ou então aceites, mas sem resultados efetivos. Esta é a primeira condição”, disse então à rádio portuguesa.

Do direito à prática

Há oito anos que o direito ao acesso a cuidados paliativos está contemplado na lei para “doentes em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, assim como às suas famílias, com o principal objetivo de promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual.” Mas da lei à prática vai um longo caminho. O Relatório de Outono 2019, do Observatório Português dos Cuidados Paliativos (OPCP), analisou a cobertura da rede em Portugal e caracterizou os recursos humanos, com dados vigentes em 31 de dezembro de 2018. As conclusões foram reveladoras: seis distritos sem nenhuma equipa e outros com taxas superiores a 100%. O estudo concluiu, tendo em conta o horário a tempo inteiro ditado no SNS, de 40 horas semanais para os médicos e 35 horas para os restantes profissionais, que estão em falta cerca de 430 médicos, 2.141 enfermeiros, 178 psicólogos e 173 assistentes sociais. Números alarmantes que se traduzem em pessoas que, na mais vulnerável altura das suas vidas, não estão a usufruir de um direito que lhes assiste.

“Mantém-se a constatação da presença de uma Rede Nacional de Cuidados Paliativos com serviços especializados, mas com nível de prestação generalista. Tal afirmação sustenta-se no preconizado de que apenas com dedicação plena a cuidados paliativos se poderá considerar que os cuidados prestados por estes profissionais se enquadram no nível de diferenciação especializado (…). Embora exista evolução no número de recursos desta tipologia de cuidados, continua-se com uma cobertura, estrutural e profissional, nacional e na generalidade dos distritos, muito abaixo do minimamente aceitável a que acrescem profundas assimetrias, a nível distrital. Esta assimetria não garante uma abordagem especializada integrada e articulada entre as diferentes valências/equipas, por ausência de uma ou mais valências, sendo um sério obstáculo à acessibilidade a estes recursos como um direito humano e condição nuclear para uma cobertura universal de saúde”, sublinha o estudo.

Mais. De acordo com o presidente da Associação de Cuidados Paliativos, muitos doentes só têm acesso a cuidados paliativos nas últimas horas de vida. Em entrevista à TSF, Duarte Soares explica: "É uma realidade que preocupa muito, porque passamos muitos anos a pedir mais camas de cuidados paliativos, percebemos que o Estado fez uma transferência do setor social, quase dando a ideia que não confia no setor social para prestar cuidados paliativos e apostou em trazer essas camas para o setor público. Mas havendo poucas camas de cuidados paliativos percebemos que há camas que não são usadas... Dentro das poucas camas que há, temos baixas taxas de ocupação sobretudo no setor social. Não se trata só de uma questão de financiamento, o Estado tem de se preocupar em melhorar o que são as referenciações atempadas destes doentes e em desburocratizar estas referenciações." À mesma rádio, Duarte Soares defende que só é possível inverter este cenário se o Estado fizer um investimento.

Se para muitos a questão da eutanásia não deve ser discutida em virtude da gravidade do estado dos cuidados paliativos em Portugal, para outros, cuidados paliativos e eutanásia não são alternativas. Porque são coisas independentes. Os cidadãos nas condições acima descritas têm, desde 2012, o direito a cuidados paliativos. O que se está a discutir agora em Portugal (e em Espanha, curiosamente) é a despenalização da eutanásia. “Em rigor, ninguém tem, nem na Holanda nem na Bélgica, o direito à eutanásia (isso implicaria a obrigação legal e o respetivo dever de satisfação em 100% dos casos). Já é diferente o caso no direito aos cuidados paliativos, em que há o dever de os prestar sempre. O que existe, sim, nesses ordenamentos jurídicos, é o direito ao pedido de eutanásia”, diz Miguel Oliveira da Silva, professor catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no livro Eutanásia em Portugal - Quem tem medo do referendo?. O mesmo autor, em entrevista ao jornal Público, defende que “promover a despenalização da eutanásia quando 80% das pessoas não tem acesso a cuidados paliativos é altamente incorreto do ponto de vista ético e da justiça e da equidade.”

A vida em standby

Sabe-se agora que as Jornadas de Cuidados Paliativos 2020 foram adiadas “por motivos de saúde pública e em obediência às sugestões das autoridades”, por causa do COVID-19. E é, também, à conta do Coronavírus, que a discussão sobre a eutanásia saiu dos holofotes do país. O estado de pandemia obrigou à suspensão quase total dos trabalhos parlamentares, ficando a questão da eutanásia em absoluto estado de espera. As sessões plenárias agendadas foram canceladas, as comissões parlamentares reduzidas aos mínimos. Como explica o Diário de Notícias, “as propostas sobre a eutanásia baixaram à comissão de Assuntos Constitucionais, que nomeou um grupo de trabalho que tentará chegar a um texto consensual, a partir das várias propostas que estão em cima da mesa. Mas esta tarefa não chegou a iniciar-se e só deverá ser retomada quando o funcionamento do Parlamento voltar à normalidade.”

À data de publicação desta edição da Vogue, falar em normalidade é difícil, com os números de infetados com Coronavírus em Portugal em clara ascensão, como de resto em todo o mundo. Com o processo legislativo ainda em curso, e a pandemia sem fim à vista, resta-nos tempo, muito tempo, inclusive para pensar sobre as questões que definirão o nosso futuro – como esta.

Artigo originalmente publicado na edição de abril 2020 da Vogue Portugal.

Joana Moreira By Joana Moreira

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