Longe vão os tempos em que uma viagem até ao aeroporto se traduzia apenas e só num ponto de paragem obrigatório a caminho de outros destinos. Entre voltas ao mundo e escapadinhas de fim de semana, esse espaço que partilhamos ocasional- mente com estranhos vindos dos quatro cantos do planeta transformou-se na mais improvável passerelle, onde o chamado “look de aeroporto” prevalece.
Longe vão os tempos em que uma viagem até ao aeroporto se traduzia apenas e só num ponto de paragem obrigatório a caminho de outros destinos. Entre voltas ao mundo e escapadinhas de fim de semana, esse espaço que partilhamos ocasional- mente com estranhos vindos dos quatro cantos do planeta transformou-se na mais improvável passerelle, onde o chamado “look de aeroporto” prevalece.
Improvável” talvez não seja o melhor termo. Pensando objetivamente na questão, a própria definição de passerelle enquanto plataforma onde se caminha ou desfila, rapidamente se aplica a qualquer passeio, rua, ou espaço onde um ou mais se reúnam em nome da admiração por um bom look. O surpreendente do caso não se prende, portanto, com a tendência humana mais ou menos natural para expressar estados de espírito através do que vestimos — uma premissa que podemos dar como adquirida —, mas com as particularidades no contexto deste espaço, nomeadamente do tempo que nele somos obrigados a despender. Não deverá ser difícil recordar o sentimento de tédio e cansaço prematuro que tantas vezes associamos a um aeroporto, especialmente no que toca às exigências na antecedência da chegada — elevada ao expoente da loucura. Objetivamente, três horas de deambulação errática entre o quiosque de revistas e o duty-free não apelam à motivação de ninguém para construir algo remotamente parecido com um outfit do qual nos possamos orgulhar. Considerando as filas intermináveis, os suores frios no drop-off da bagagem (que sabemos perfeitamente estar em excesso de peso), controlos de segurança tão minuciosos que nos fazem questionar se não estaremos por lapso a tentar traficar droga ou armas nucleares, e a procura frenética pela porta de embarque que naturalmente se encontra a trezentos quilómetros de distância, percorridos por um comboio, dois autocarros e um barco a remos... O resultado recorrente? Uma amálgama de fatos de treino, leggings, e todo e qualquer item que fomos obrigados a retirar da mala a custo, na fila do check-in, por entre olhares alheios de reprovação — que atire a primeira pedra... Não obstante, a única nuance deste cenário é que o que antes poderia ser caraterizado como um mero momento de preâmbulo para o que nos aguarda depois de um compasso em modo avião, evoluiu para se tornar num destino por si só e, com essa espera, expetativa, e exposição, um novo sentido de responsabilidade (a nível da indumentária, claro) emergiu. Pensar no que vestir para o aeroporto é, antes de mais, considerar que tipo de viajante realmente somos (ou queremos ser). O viajante pragmático, que dá prioridade à praticidade da sua indumentária acima de qualquer outra caraterística? O viajante cauteloso, que depois de passar a previsão meteorológica a pente fino, escolhe o que vestir em perfeita concordância com o seu destino? O experiente jet setter, cuja carteira de passaporte, bagagens, mochila, e boné, são invariavelmente sempre da mesma tonalidade? Ou talvez um dos fiéis amantes do conforto, para quem viajar em jeans não seria apenas tortuoso, mas inconcebível? As opções são tão ilimitadas quanto o número de rotas aéreas espalhadas pelo globo. Independentemente das oscilações que podemos ocasionalmente experienciar entre uma ou outra estética, aponta-se uma preocupação fundamental que prevalece: a vontade de permanecer confortável, mas cool. O enredo complica-se. A evolução da nossa abordagem coletiva ao airport chic está intimamente ligada à hipersensibilização que temos vindo a desenvolver sobre a perceção dos outros da maneira como nos apresentamos, desde o momento em que cruzamos as portas do aeroporto até quando voltamos a rodar a chave na fechadura da porta de casa. O quão cientes estamos dessa perceção é um produto direto do valor que cada um atribui à sua própria imagem nesse contexto, e as suas implicações multiplicam-se.
Naturalmente, e como se verifica em tantas outras esferas do comportamento humano, não seria possível pensar sobre tudo isto sem olhar para os efeitos das redes sociais e da celebrity culture nesta instância. Uma rápida pesquisa no Google com o título “airport look” acusa nada menos que mil milhões de resultados em 0,41 segundos. A este ponto na minha pesquisa jornalística, arrisco afirmar que estes se dividem entre dois subgrupos principais: sugestões de bloggers e viajantes experientes (ou não), e fórmulas inspiradas pelos looks de centenas de celebridades, capturados pelos flashes dos paparazzi nos corredores dos aeroportos de todo o mundo. Não ousaria colocar o presente tema ao mesmo nível da importância de qualquer outro tópico que possa povoar os jornais do dia, mas não deixa de ser curioso examinar a relevância do tópico quando a tinta gasta em todos os artigos e colunas que o abordam tem consequências tão diretas nos nossos hábitos de consumo. Simplesmente, não é possível contar a quantidade de páginas online, lojas, e produtos, inteiramente dedicados à construção deste look quase mitológico que nos assombra nas vésperas de uma viagem. Esse sentimento de pânico de não termos definido com antecedência a combinação vencedora de acessórios, gadgets e indumentária que de alguma forma nos pode diferenciar dos nossos demais companheiros de voo, cria uma sensação de necessidade por perfazer — deixa para a procura desenfreada pelo último grito das malas de cabine multiusos, auscultadores com isolamento de som de última gama, e um mergulho a fundo no separador “explore” do Instagram. Tornamo-nos, rapidamente, nas vítimas perfeitas para o rol de colaborações entre marcas de artigos de viagem e influencers, edits inspirados pelas combinações improváveis vistas nesta ou naquela atriz de cinema, até na promoção de todo o tipo de produtos de beleza e tratamento de pele que de uma maneira ou de outra completam o ensemble a vinte mil pés. E por falar em influência e redes sociais, a quantos vídeos, tutoriais, e try-ons, já assistimos como que por rotina, sedentos de inspiração da parte daqueles para quem um voo transatlântico é tão normal quanto uma boleia de um táxi? Eis então um dos cernes da questão: o verdadeiro airport chic é inversamente proporcional ao esforço que se adivinha termos dedicado à sua construção — o problema é que essa aparente descontração pode dar muito, muito trabalho, e quem disser o contrário está a mentir. Viajar, em módulo, denota uma quota-parte de incógnito, de clandestinidade, de alguma distância de quem somos no quotidiano da nossa cidade ou país. O luxo de não ser tão facilmente reconhecido num outro lugar convida à tentação pelos dois extremos: ao completo abandono, ou ao prazer da experimentação - uma dualidade que se aplica ao grande espectro da nossa conduta em viagem, incluindo escolhas de indumentária. Na verdade, é a desculpa perfeita para usar peças que nunca vestiríamos no dia a dia, ou para repetir um oulfit que reutilizamos vezes sem fim no escritório. Na mesma medida que faz parte da natureza humana privilegiar a anexação à maioria, criar pontos de contacto com os que nos rodeiam, e estabelecer mecanismos de integração para nos sentirmos aceites, há também um desejo intrínseco de diferenciação, de destaque e necessidade de expressão da nossa própria noção de individualismo. Com a trivialização das viagens e movimento das massas entre cidades, países, e continentes, há uma contrarreação que se pode traduzir tanto numa imersão completa no efeito de grupo, ou na procura incessante pela perceção alheia de que não somos só mais um peão da globalização, mas um verdadeiro MVP, cujo capital em milhas lhe deveriam conferir, no mínimo, um status de notoriedade numa ou outra companhia aérea. De um segundo para o outro, o ar que circula dentro das paredes de um aeroporto transforma as passadeiras de fast-track numa borbulhante avenida de Nova Iorque, o café sobrelotado num VIP lounge, a meia dúzia de lojas concebidas para gastos desnecessários motivados pelo aborrecimento extremo da multidão, numa Saint-Honoré de improviso. Tanto quanto se sabe, os óculos escuros que exibimos (mesmo dentro de espaços fechados, claro está), escondem a face de uma famosa empresária, de um animal político feroz, de uma irmã Jenner perdida, talvez... e todas as interações alimentam em si mesmas o potencial dessa ilusão - e de quem é a culpa? Duas palavras: big five.
Pode parecer pouco justo culpar as cinco supermodelos originais pelas atitudes e ilusões de gerações inteiras viciadas na cultura obsessiva pelas celebridades. Porém, seria igualmente imprudente desconsiderar a influência dos anos 90, do reinado incontestável das super, e do estatuto de “estrela”, no modo como avaliamos o que está in ou out (dentro e fora da passadeira vermelha). Antes da era dos filtros e FaceApp’s, Naomi Campbell, Claudia Schiffer, Cindy Crawford, Christy Turlington e Linda Evangelista eram cinco das mulheres mais famosas e reconhecidas do planeta. As medidas perfeitas e million dollar faces que lhes conferiram décadas de sucesso enquanto musas de fotógrafos, marcas, designers, e multidões, elevaram a definição de “modelo” de tal forma, que a própria nomenclatura da profissão deixou de se aplicar. As cinco não eram apenas modelos, eram superestrelas — e, onde quer que fossem, deixavam atrás de si um rasto de admiração, não só pela sua beleza excecional, mas porque todos os aspetos da sua vida e quotidiano — incluindo viajar de avião — eram considerados como demonstrações incontestáveis de puro estilo. As big five abriram as portas a uma perceção de celebridade e estrelato apenas comparável ao alcance de Lady Diana, Grace Kelly, e Jackie O’. Quando as barreiras de uma só indústria, profissão ou título, não são capazes de conter o poder que é ser-se considerado um ícone à escala universal, dá-se o que podemos apelidar de um fenómeno "toque de Midas" moderno, em que toda a banalidade, rotina, ou mais insignificante pormenor e atitude, se tornam objeto de escrutínio. Sair para jantar fora implica uma reunião de emergência com os estilistas, ir ao supermercado é um parque de diversões para os tablóides, e viajar de avião implica sobreviver ao campo de minas que é saber o que vestir para o aeroporto. Julia Roberts em jeans e t-shirt, os tons neutros de Rosie Huntington-Whiteley, o pijama de seda de Irina Shayk, os sobretudos coloridos de Gigi Hadid, Victoria Beckham e os seus combinados contrastados, os biker shorts de Kendall Jenner... Enquanto aguardamos uma fórmula que permita o fast-track do assunto, este é um mood board que fica em permanente construção.
Originalmente publicado no The Voyage Issue, da Vogue Portugal.For the english version, click here.