Não é apenas uma Catedral nem pertence somente aos parisienses crentes: Notre-Dame é do mundo, foi palco de momentos históricos, inspirou romancistas e cineastas, faz parte do imaginário de muitas crianças. Recordamos a história deste monumento que toca no coração de todos.
Não é apenas uma Catedral nem pertence somente aos parisienses crentes: Notre-Dame é do mundo, foi palco de momentos históricos, inspirou romancistas e cineastas, faz parte do imaginário de muitas crianças. Da sua construção, no século XII, à beatificação de Joana d’Arc, em 1909, sem esquecer a coroação de Napoleão Bonaparte, em 1804, recordamos a história deste monumento majestoso que sobreviveu a duas guerras mundiais e parecia ser indestrutível, até o fogo chegar.
A Notre-Dame ardeu. A Notre-Dame, agora, está negra. Parte do coração histórico, religioso e artístico da capital francesa foi ontem consumido pelas chamas num incêndio colossal que começou a deflagrar às 18h50 (hora local, menos uma hora em Portugal Continental), após um presumível acidente nos andaimes das obras de requalificação do monumento, segundo os bombeiros que se encontravam no terreno. Através das televisões, dos jornais online e das redes sociais, o mundo acompanhou em direto as imagens da devastação: dos primeiros sinais de fumo, ainda durante a tarde, à formação de labaredas laranjas, já ao cair da noite; da queda do pináculo da Catedral ao colapso parcial do teto. “Paris sempre Paris ferida na sua Catedral em chamas, um símbolo maior do imaginário coletivo a arder, uma tragédia francesa, europeia e mundial”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa na mensagem que enviou ao presidente francês, Emmanuel Macron, ao final da tarde.
Mais de 850 anos de história
A Notre-Dame de Paris não pertence só aos parisienses. Esta é a Catedral de todas as catedrais de França, aquela que carrega o peso da história como mais nenhuma outra igreja e basílica do país, aquela cujo nome os turistas têm na ponta da língua, podendo até ser possível a omissão da cidade, uma vez que o mero uso conjunto das palavras “notre” (“nossa”) e “dame” (“senhora”) nos remete, automaticamente, para a Catedral edificada na Île de la Cité, junto às margens do rio Sena.
"Com os seus 33 metros de altura — quando as suas contemporâneas não tinham mais do que 24 metros, em média — [a Notre-Dame] inaugura a época grandiosa, “a idade colossal”, das catedrais", começa por dizer Joana Ramôa Melo, doutorada em História da Arte Medieval, bolseira de Pós-Doutoramento da FCT e investigadora do Institutos de História da Arte e Estudos Medievais (FCSH, Lisboa) e do Instituto de Historia (Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Espanha). De facto, quando pensamos na referência máxima do estilo gótico, pensamos, em primeiro lugar, na Notre-Dame. Só posteriormente é que a cabeça começa a divagar para construções como a Catedral de Nossa Senhora, na Antuérpia, a Catedral de São Miguel e Santa Gudula, em Bruxelas, a Catedral de Santa Eulália, em Barcelona, a Catedral de São Martinho, em Utrecht, e a também francesa Catedral de Saint-Denis, “o primeiro edifício verdadeiramente gótico”, aponta Jean-Marie Guillouët, secretário científico do Comité Internacional de História da Arte (CIHA) e professor adjunto da Universidade de Nantes. “Existem muitos edifícios que podem ser comparados à Notre-Dame e alguns deles são bastante admiráveis. É o caso de Saint-Denis. Mas a Notre-Dame é especial.”
"Com os seus 33 metros de altura — quando as suas contemporâneas não tinham mais do que 24 metros, em média — [a Notre-Dame] inaugura a época grandiosa, “a idade colossal”, das catedrais"
Rosário Morujão, membro da Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, doutorada em História da Idade Média e professora da Faculdade de Letras de Coimbra de História Medieval e História das Religiões, também reconhece que Notre-Dame de Paris é uma construção que se destaca. “É a Catedral gótica mais conhecida em todo o mundo. Faz parte do imaginário colectivo a uma escala mundial. Se se pedir a uma pessoa de qualquer parte do planeta que refira dois monumentos franceses, um deles será, certamente, Notre-Dame”, diz. Atualmente, a Catedral é o monumento histórico mais visitado de França, recebendo, todos os anos, cerca de 12 milhões de pessoas, o dobro dos visitantes anuais da Torre Eiffel, de acordo com os dados avançados em 2017 pelo Escritório do Turismo e dos Congressos de Paris. Em matéria de longevidade, as duas construções nem conseguem ser comparadas: a Torre Eiffel só foi construída em 1887, ao passo que a edificação da Catedral remonta ao século XII.
Paris começava a prosperar financeiramente quando a Notre-Dame começou a ser construída. Estávamos em 1163, o rei Luís VII ocupava o trono e Maurice de Sully, à data bispo de Paris, havia recebido do monarca a aprovação para iniciar a construção de uma Catedral dedicada à Virgem Maria (Nossa Senhora, “Notre Dame”). As obras faziam parte de um projecto maior que Sully pretendida levar a cabo na cidade, que estava a crescer a olhos vistos e a consolidar o estatuto de capital do reino francês, depois de o rei Filipe I, por volta de 1060, ter optado por se fixar não em Orleães (como acontecera com os antecessores), mas em Paris.
Foram precisos mais de dois séculos e diversas alterações ao projeto original dos arquitetos Pierre de Montreuil e Jean de Chelle para a Catedral ficar concluída, corria o ano de 1345, mas a Notre Dame ainda haveria de sofrer várias mudanças substanciais e restauros ao longo dos séculos XII, XIII e XIV. As obras de restauração que a Notre-Dame sofreu durante o século XIX também tornam a igreja num “testemunho essencial da arte” dessa época, refere Jean-Marie Guillouët, acrescentando que “toda esta história monumental ocorreu em conexão direta com a história do reino francês e, depois, da república [francesa]”.
A mesma opinião é partilhada pela historiadora Joana Ramôa Melo. "Estamos diante de um edifício que representa um determinado momento da história — a criação da primeira grande linguagem arquitectónica da Europa, o gótico; a consolidação e expansão do reino de França; uma renovação da espiritualidade por influência cisterciense — um edifício que, portanto, tem a capacidade de nos contar tantas histórias e dinâmicas transformadoras de todo o mundo cristão ocidental, qualquer perda significa um empobrecimento cultural irreparável. É também da própria identidade francesa, e mesmo europeia, que estamos a falar."
Coroações, beatificações e a vida nas alturas
Mais do que uma igreja, mais do que um ícone turístico, a Notre-Dame é um dos grandes tesouros da humanidade. A Catedral que saiu praticamente ilesa da Revolução Francesa (1789-1799) e sobreviveu a duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) é Património Mundial da UNESCO desde 1991 e já foi palco de muitos momentos cruciais da história do país. “Notre-Dame assistiu, com maior ou menor protagonismo, a todos os grandes acontecimentos da história de França ao longo dos seus 850 anos de existência”, diz Rosário Morujão, antes de destacar dois acontecimentos, relacionados com a Idade Média. “[Na Notre-Dame] foi velado o corpo de S. Luís, o rei francês que trouxe para Paris as relíquias da Paixão de Cristo, em especial a Coroa de Espinhos, para a qual mandara construir a maravilhosa Sainte-Chapelle, e que faleceu nas cruzadas, em 1271. Ali também tiveram lugar os primeiros Estados Gerais do reino de França, no início do séc. XIV, que constituíram o embrião do sistema parlamentar francês.”
Anos mais tarde, a 16 de dezembro de 1431, um jovem Henrique VI de Inglaterra, na altura com 10 anos, foi coroado rei de França na Notre-Dame. Já Napoleão Bonaparte, que não tinha sangue real, optou por fazer na Catedral uma cerimónia grandiosa que pudesse, de certa forma, legitimar o seu poder político e o Primeiro Império Francês que ambicionava erguer. Assim, ao segundo dia de dezembro de 1804, fez-se coroar imperador. Ele mesmo tratou de depositar na cabeça a sua coroa imperial, ao invés do Papa Pio VII, como se esperava.
"Toda a história monumental [da Notre Dame] ocorreu em conexão direta com a história do reino francês e, depois, da república [francesa]”
Para a história de Notre-Dame fica ainda a beatificação de Joana d’Arc, a 18 de abril de 1909, no interior da Catedral. A donzela de Lorraine que liderou o exército francês contra as tropas inglesas durante os conflitos da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) foi elevada à condição de beata pelo Papa Pio X e, posteriormente, em 1920, foi canonizada pelo Papa Bento XV.
Mais recentemente, assistimos às peripécias de Philipe Petit, o equilibrista francês que arriscou fazer uma performance perigosa na Notre-Dame: a 68 metros do chão e sem qualquer equipamento de segurança, Petit conseguiu percorrer a distância entre as duas torres da Catedral sobre uma corda de aço e arrancar aplausos dos transeuntes que, naquela tarde de 26 de junho de 1971, se encontravam perto do monumento. Foi a sua primeira travessia ilegal nas alturas e uma espécie de treino para a sua grande atuação aérea nas Torres Gémeas, em Nova Iorque, três anos depois.
A Catedral que os escritores e os realizadores amaram
Invariavelmente, falar de Notre-Dame é falar de Victor Hugo, o homem que em 1831 publicou Notre Dame de Paris e nos fez acreditar na existência de Quasimodo, o guarda dos pesados sinos da Catedral. Com as suas descrições pormenorizadas sobre o estado de degradação do edifício, o livro, considerado a maior obra-prima do romancista francês, pretendia alertar a população da época para a necessidade de se proceder à restauração e conservação daquele monumento. “O imenso sucesso deste romance histórico não apenas tornou Victor Hugo famoso, mas também conduziu a um movimento da opinião pública a favor do restauro da igreja, que foi levado a cabo a partir de 1844 por Viollet-le-Duc, a quem se deve a construção do pináculo que ontem ruiu”, relembra a historiadora Rosário Morujão.
A obra de Victor Hugo, depois de ter sido adaptada para o grande ecrã, também iniciou o love affair entre os cineastas e a Notre-Dame. Protagonizado por Charles Laughton e Maureen O'Hara e realizado por William Dieterle, O Corcunda de Notre Dame de 1939 mostrou-nos toda a imponência daquele edifício a preto e branco. Doze anos depois, em 1951 e já a cores, voltámos a vislumbrar a Notre-Dame no musical Um Americano em Paris, no momento em que os atores Gene Kelly e Leslie Caron dançam nas margens do Sena.
"Notre-Dame simboliza a capacidade humana de sonhar o transcendente e de o traduzir num edifício cuja dimensão, em especial no plano vertical, impele o homem para uma dimensão espiritual."
De facto, muitos são os filmes onde a Catedral parisiense surge como o cenário perfeito e pitoresco para as cenas românticas. Em 1963, no filme Charade, de Stanley Donen, Audrey Hepburn e Cary Grant passam às portas de Notre-Dame enquanto passeiam por Paris, e em 2004, para a longa-metragem Before Sunset, o realizador Richard Linklater filma por vários segundos o exterior do monumento. “Tens de pensar que a Notre-Dame, um dia, desaparece”, diz a atriz Julie Delpy a Ethan Hawke a dada altura da viagem de barco retratada na cena. Palavras que, hoje, no rescaldo do incêndio, têm um peso imensurável. Mesmo entre o público infantil, a silhueta da Notre-Dame é facilmente reconhecida, graças a filmes de animação como O Corcunda de Notre Dame, da Disney, e Ratattuile, da Pixar: em ambos, lá está ela, a Catedral, sempre a Catedral.
“[Notre-Dame] toca o coração de todos nós”, resume Rosário Morujão. “Ela simboliza a capacidade humana de sonhar o transcendente e de o traduzir num edifício cuja dimensão, em especial no plano vertical, impele o homem para uma dimensão espiritual. E além disso impõe-se, pela sua mera existência, como uma ponte entre o passado e o presente, e até mesmo como uma ponte para a eternidade. Penso que todas estas são razões que ajudam a explicar porque é que ontem nos sentimos em choque ao ver Notre-Dame em chamas e temer pela sua sobrevivência.”