Inspiring Women  

Filipa Martins: "Quando escrevo eu procuro autenticidade"

25 Oct 2018
By Irina Chitas

Filipa Martins não é só autora de quatro romances, nem apenas uma das guionistas por detrás de Três Mulheres - a série que estreia amanhã na RTP 1 - nem apenas nada. Filipa Martins é muito mais, muito maior do que qualquer palavra.

Filipa Martins não é só autora de quatro romances, nem apenas uma das guionistas por detrás de Três Mulheres - a série sobre Snu Abecassis, Natália Correia e Vera Lagoa que estreia amanhã na RTP 1 - nem apenas nada. Filipa Martins é muito mais, muito maior do que qualquer palavra.

Filipa Martins © D.R.
Filipa Martins © D.R.

Apesar de ter feito das palavras a sua vida e, com as suas palavras, fazer a nossa. Não nos vale a pena alongar o discurso: Filipa fá-lo por nós.

O que é que queria ser quando fosse grande?

Escritora. Quando era criança não tinha essa perceção exata que aquilo que me impulsionava, que era o contar histórias, o coser textos, eram no fundo as sementes de uma profissão - não é uma profissão, é um modo de estar, é um modo de vista a escrita - que eu queria fazer de uma forma mais recorrente e mais sistemática quando fosse adulta. Mas tenho uma série de pistas na minha infância que me dizem que era uma inevitabilidade. Tem muita graça teres começado por essa pergunta porque ao longo da minha obra - eu tenho quatro romances publicados - o meu bairro sempre foi a memória, de diferentes ângulos, de diferentes perspetivas. Os primeiros romances são uma obra mais histórica, sendo que há sempre uma efabulação sobre a memória factual, que é daí que nasce a literatura, a ficção, mas a memória era também uma personagem, e sempre foi ao longo dos livros. E neste último, Na Memória dos Rouxinóis, houve uma equiparação entre memória e esquecimento como os dois lados de uma moeda, como quando Cervantes escreveu o D. Quixote quis equiparar vitórias e derrotas para nos dizer a nós leitores que uma coisa não funciona sem a outra, ou seja, é a derrota que dá significado e significância à vitória, e a vitória dá significado à derrota, portanto são duas entidades que têm de se correlacionar. Neste último livro eu trabalhei exatamente a memória e o esquecimento nessa vertente: percebendo que os processos de esquecimento e os processos de memória estão intrinsecamente ligados e valorizam-se mutuamente. Acho que estou pronta para dar, não direi um salto, se for um salto é um salto para dentro, um bocadinho na senda do título do livro do Valério Romão, Cair Para Dentro - que é um título maravilhoso -, acho que estou preparada para dar o salto para dentro e escrever algo que seja marcadamente autobiográfico. Sendo que isto ainda está com uns contornos muito pouco definidos na minha cabeça. Acho que a melhor forma para essa expressão autobiográfica será provavelmente num registo um pouco diferente do que fiz até agora, mais ligado se calhar à poesia, à micronarrativa, ao aforismo. É essa vertente que eu estou a começar a explorar. E onde me quero centrar do ponto de vista autobiográfico é exatamente no meu universo de infância e juventude, daí ter muita graça teres feito a pergunta.

 

Quando eu digo que sempre quis ser escritora era porque eu tinha uma série de hábitos, quer do ponto de vista de personalidade, comportamentais, quer da forma como ocupava o meu tempo, que me remeteram sempre para o universo da literatura e da escrita. Eu cresci nos arredores de Sintra, ali no início dos anos 80. Os subúrbios de Lisboa estavam a crescer quase de forma castelar, estamos a falar do pós-25 de Abril, muitos retornados, e havia ali, apesar de Portugal se estar de alguma maneira a adaptar à liberdade democrática, uma série de medos e de receios que se começavam a tecer nas pessoas. Começou-se a ter, por exemplo, estatísticas oficiais sobre criminalidade, e havia um certo - eu acho que isto de alguma maneira é ciclo, porque hoje estamos a viver uma época idêntica - receio do outro, do diferente, daquilo que não conhecemos, daquilo que vem de fora. Também era uma zona em que havia muita imigração, pessoas que vinham dos PALOP para se estabelecerem naquela zona, e eu cresci nesse confronto de medos, e nesse estranhamento do outro. Lembro-me que os meus pais me proibiam muitas vezes de ir brincar para a rua. Era latente um certo receio porque eu acho que as pessoas também estavam a aprender - felizmente agora tem-se atenuado - com uma informação mais livre, mais factual. Durante o Estado Novo o acesso à informação era extremamente maquilhado, os números oficiais eram uma ilusão, quem lesse os jornais, se não tivesse uma literacia que lhe permitisse ler nas entrelinhas, achava que Portugal era um país de um conto de fadas. Eu nasci em 1983, portanto tínhamos oito anos de democracia, as pessoas estavam a ficar mais letradas do ponto de vista da informação. Havia muito o choque da primeira página, dos crimes, dos assaltos, enfim. Eu não acredito que tenha havido uma explosão de criminalidade, simplesmente as pessoas começaram a ter noção das coisas, ou pelo menos a informação chegava até elas. E a forma como reagiam a isso era muitas vezes com receio e com enclausura. O que é estranho, não é, porque podiam ter aproveitado para viver a liberdade, viver em liberdade, e explorarem o outro. Mas eu não sentia isso na zona em que cresci, o que fez com que uma criança que tenha nascido nos finais dos anos 70 e inícios de 80 naquela zona tenha vivido no ambiente doméstico da casa. E eu vivi muito no meu quarto, vou-lhe chamar, mas sem um tom depreciativo, um quarto-cela, onde consegui criar um universo meu, mas que inevitavelmente - porque nós temos perguntas - as respostas que eu encontrava era através da literatura. O meu pai tinha uma profissão técnica, a minha mãe tirou o 12º estava grávida de mim, e as minhas avós, ambas, materna e paterna, eram - e uma delas ainda é - analfabetas. Eu lembro-me, por exemplo, que a minha mãe tinha uma certa dificuldade em escolher livros, andava assim meio à deriva, então começou a assinar a revista do Círculo de Leitores. E havia um ritual, não me lembro se a revista era mensal ou trimestral, que era: quando a revista chegava pelo correio, eu sentava-me com a revista e, com caneta de feltro, fazia bolas nos livros que queria que ela encomendasse. E eles chegavam efetivamente. Eu escolhia coisas que acabaram por ser um novelo de livros que se iam desfiando. Fazia um exercício, que hoje em dia ainda gosto muito, que é fazer a cosedura de textos. Partir de uma ideia mais genérica, a ideia de memória, ou a ideia de solidão, ou de morte, de amor, o que seja, e conseguir perceber as diferentes abordagens dos diferentes autores, e levava este exercício a um ponto quase de maldade, por exemplo, no caso poético cosia estrofes de vários poetas e depois quase testava os professores na escola para ver se conseguiam perceber onde é que estavam as ligações. Depois cheguei a um segundo nível, ou terceiro nível, em que introduzi frases minhas nesses mosaicos de texto.

 

Em 2016 estive na Casa Museu do Vargas Llosa e é um ambiente assim bastante futurista, tem um holograma do escritor, enfim, e passeamos pelo sítio onde ele nasceu, etc.. Mas uma das coisas que ele dizia - e aqui não querendo comparar - era que achava que o pai dele tinha morrido - na verdade foi isso que a mãe lhe disse porque o pai abandonou a mãe ainda a mãe estaria grávida - e ele diz que começou a escrever para exorcizar os seus fantasmas e como reação a um pai que conheceu numa fase mais avançada da infância e com quem teve de viver, e ele de alguma maneira diaboliza essa imagem. Mas uma das coisas que ele fazia era mudar os finais dos livros. E eu também fazia de alguma maneira isso. Um dos exemplos que eu costumo contar era o Diário de Anne Frank, que tem um final inacabado, e eu prolongo esse final. Mas fiz isso com outros livros, ou então com partes mais intermédias dos livros. Portanto sim, a escrita sempre esteve de alguma maneira presente. Lembro-me de encontrar nos livros as principais respostas. Gabriel García Marquez para falar da solidão, O Processo do Kafka para compreender e aceitar de forma burocrática como nós funcionamos, e coisas que de alguma maneira me prepararam para a vida. Há duas semanas fiz uma escritura de uma casa e estivemos três horas a olhar uns para os outros porque havia um detalhe burocrático que não estava resolvido. E alguém a determinada altura cita O Processo - é que depois há escritores que têm essa capacidade, há situações que são kafkanianas - e automaticamente criou-se ali uma linha de ligação emocional porque aquelas pessoas tinham o mesmo universo literário que as formatou. Nunca tinha visto aquelas pessoas, mas de uma forma muito natural criámos uma ligação afetiva por termos o mesmo universo literário. E eu digo a brincar, que na verdade não é a brincar, é muito a sério, que a literatura preparou-me para a vida. Porque eu acho que os bons escritores, os bons livros, têm uma capacidade profundamente humana. Um bom escritor tem uma característica que nos torna a todos bons seres humanos, que é uma capacidade que hoje em dia infelizmente está um pouco em desuso, que é a capacidade de alteridade, a capacidadede nos colocarmos no lugar do outro. Quando escreves uma história, e crias personagens, e trabalhas a verossimilhança dessas personagens, precisas inevitavelmente de conseguir calçar aqueles sapatos. E isso torna-nos melhores seres humanos, essa capacidade de pensar e de aceitar uma forma diferente, mas inevitavelmente também nos torna melhores leitores e melhores escritores. Essa capacidade é adquirida também pela leitura e deve estar, obviamente, ao serviço da escrita.

Qual foi o primeiro livro a que acrescentou alguma coisa? Foi o Diário de Anne Frank ou houve outro antes?

Eu já não me lembro disto, mas a minha mãe diz que eu devia ter se calhar uns… não sei, ela contou-me a história dos Três Porquinhos e eu ainda não sabia ler, e inventei-lhe um fim alternativo. Eu efabulava muito. É engraçado que em conversa com outras escritoras percebemos que é uma caacterística mais ou menos comum. Eu não efabulava no sentido de mentir de forma descarada. Eu pegava em pontos. Há um verso extraordinário da Adília Lopes em que ela diz “Eu sou a mão e a luva”. Cada história que eu contava, mesmo quando era criança, não havia só a mão, eu tinha de inventar obviamente a luva. Eu criava sempre uma camada de ficção, de imaginação, o tal sonho de Borges, que diz que tudo vem de memória, seja vivida, contada, lida, e é a partir daí que tu crias, daí vem o sonho, vem a imaginação. Lembro-me de achar as histórias infantis extremamente moralistas, e nunca percebi esta dicotomia - e ainda hoje não percebo - porque é uma forma muito perigosa de ver o mundo, entre o bem e o mal. O Capunhinho Vermelho andava na floresta, e depois vinha o Lobo Mau, e o Capuchinho Vermelho obviamente era uma criança encantadora porque ia levar o lanche à avó e depois pimba, era engolido. E os Porquinhos, porque um era preguiçoso e o outro trabalhava e no final… este lado moralista das histórias infantis, na altura não tinha esta consciência, mas sempre me perturbou. Eu questionava muito os finais, discutia-os muito com os meus pais, com a minha mãe que me lia histórias, porque para mim não eram credíveis. E agora quando escrevo eu procuro autenticidade, e tenho uma incapacidade enorme de criar personagens desenhadas e quase personagens-tipo em que tu digas “Sim, este tipo é um atrasado mental, não consigo gostar dele”, ou então “Este tipo é extraordinário”. Eu não gosto dessas pessoas que são um prato. Eu gosto de pessoas complexas, com várias camadas, por isso tendo a criar personagens complexas, com várias camadas, porque as considero mais verdadeiras. Na história do Capuchinho e do Lobo Mau, eu acredito muito mais no Lobo Mau do que no Capuchinho, do ponto de vista das personagens. 

Começou a ler livros muito cedo que não diríamos que fossem para a sua idade.

Eu tenho uma irmã mais velha. Ela é da área científica, com outro espectro de literatura, os livros que ela lia eram mais livros técnicos. Nós temos seis anos de diferença, portanto eu herdava a biblioteca dela. Há uma história que eu já contei várias vezes, que é a minha ida ao pedopsiquiatra, precisamente na sequência do Diário de Anne Frank. Eu estava na primária, e a minha mãe ficou muito assustada, porque as mães não respeitam a privacidade das filhas e começou a ler o meu diário e achou que tinha uma criança muito deprimida em casa então levou-me ao pedopsiquiatra, e na altura ele recomendou-me uma série de livros. Mas lembro-me, por exemplo, no 5º ano tínhamos um livro de leitura obrigatória e eu apresentei O Mundo de Sofia, que é um livro muito bom, que é um livro em camadas, provavelmente se pegar nele hoje em dia vou extrair de lá coisas completamente diferentes, mas não deixa de ser interessante eu pensar que no 5º ano andava a ler coisas sobre Platão. Mas eu acho que aquilo que me motiva para a escrita e aquilo que me motivava para a leitura era uma pergunta. Era um porquê. E quando nos meus pares e no meu universo, que era extremamente doméstico - eu não fui para o infantário, eu tive uma ama que era a minha vizinha de baixo, que era como se fosse uma segunda mãe - e sempre fui educada com pouquíssimas crianças até entrar para a escola primária. Sempre fui educada por crescidos, por adultos. Dizem-me que as primeiras palavras que eu disse foi oscular. Não sei se é um mito, pode ser um mito, não me lembro [risos]. Mas para além de mãe, pai e essas coisas, disse oscular. Lembro-me que nessa fase, quando eu era mais miúda, faziam-me perguntas e detestavam-me, quase como se eu fosse uma espécie de espetáculo. Eu sempre gostei muito de palavras, eu adoro palavras. São o meu instrumento, são os meus pincéis, é a minha tinta, é o meu barro.

 

Acha que quem escreve está para sempre na idade dos porquês?

Ai, eu espero que sim. Quanto mais escrevo mais dúvidas tenho, não é, como o outro. Sim, eu acho que a escrita tem várias utilidades no meu caso. Uma delas é criar ordem. À semelhança da pintura, eu acho que há dois tipos grandes de escritores. Aqueles que são empáticos com o mundo, ou seja, transportam para as páginas aquilo que veem, são contadores de histórias natos, conseguem transportar-te para um universo, têm uma capacidade de descrição fabulosa - isso obviamente requer também um vocabulário riquíssimo. E depois há os outros que funcionam um pouco como os pintores abstratos. Aquilo que te mostram não é, enquanto construção, uma coisa pictórica do ponto de vista de ser espelho do real. Percebes que há realidades ali, mas compreendes que há uma série de regras que são intrínsecas aos quadros e que não são as regras exteriores. Eu acho que os meus livros passam muito por aí. Eu inspiro-me no real e na forma como as pessoas se relacionam, a sua complexidade, as suas diferentes camadas, mas preciso de criar regras próprias dentro do livro para explicar o meu dia a dia, a forma como as pessoas se co-relacionam umas com as outras, como não conseguem esquecer, como ficam bloqueadas em determinados momentos das suas vidas. eu não faço isso de uma forma empática e linear, faço isso principalmente através de metonímias e de metáforas. A arte abstrata é isso, é uma metonímia em relação a uma coisa que não está ali pintada de uma forma objetiva, clara, representativa da realidade.

A literatura ajuda-me nisso, ajuda-me nesse processo de compreensão mais intertextual, metafísica, como queiras chamar, das leis do dia a dia. É como o Vargas Llosa, que falava da expiação dos seus demónios através da literatura: eu já me vinguei de pessoas nos livros, obviamente, quem é que não fez isso? Há uma história engraçadíssima do Jorge Amado, de um tipo que discutiu com ele na rua por causa de uma coisa casual, e depois disseram-lhe “Olhe, você tenha cuidado que ele vai metê-lo num romance e fá-lo corno”. E acho que é inevitável que isso de alguma forma transpareça para a escrita. Para mim a escrita também tem esse lado de catarse, de te reconciliares com fantasmas, com memórias. Pode não ser um acontecimento, pode ser uma forma que tu intimamente identifiques como nefasta na forma como reages, ou como pensas em relação às coisas, ao passado, às relações, o que seja. Há aquela imagem da mãe de D. Carlos I que depois do regicídio enlouqueceu e andava sempre a regar um tapete de flores. Depois a Filipa Leal escreveu um poema muito bonito que é qualquer coisa como “Na dúvida, também vou regar as flores de plástico”. Eu acho que o meu processo de escrita é exatamente o oposto: na dúvida, vou envasar as flores de plástico e vou guardá-las em páginas para não as ter de regar mais tarde. É um ponto final em coisas que já não dão frutos. Às vezes este processo catártico demora tempo, não é um livro, não são dois, não são três, não são quatro. Precisei de escrever quatro romances para achar que agora já estou pronta para escrever uma coisa mais autobiográfica, sabendo, no entanto, que há um “eu” poético que deve ser mais fiel ao meu “eu” sentimental do que propriamente ao meu “eu” biográfico. Mais uma vez aqui olho para os poemas como uma metonímia, ou como uma metáfora, e não como uma descrição empática do passado ou da realidade. 

Pode falar-me um pouco da série Três Mulheres? Está quase a estrear. Como é que foi o processo?

Extraordinário. É uma série de treze episódios. Vera Lagoa, Snu Abecassis e Natália Correia, três grandes mulheres numa época em que as mulheres, do ponto de vista social, eram bastante secundarizadas. Eram três mulheres de pescoço longo, eram mulheres que conseguiam ver muito à frente do seu tempo. Nós não chegamos até aí, a série termina com a inauguração do Botequim, na Graça, é o último episódio, com o brinde entre as três. Mas esta característica que elas têm em comum é transversal à série toda, que é a capacidade de antecipação, de perceber o que é que estava por vir, e acho que não é indiferente de todo o facto de estarmos a falar de mulheres. Os textos da Natália Correia no dia do 25 de Abril - ela começou a escrever um diário nessa altura - são textos extraordinariamente visionários. Enquanto o país estava todo em absoluta festa, ela conseguia perceber que isto ia correr mal. E é extraordinário ver essa clareza de espírito na noite do 25 de Abril. Isso é bastante visível durante a série.

Isto foi um projeto que partiu do Fernando Vendrell, o realizador, que se inicia no início da década de 60 e vai, como te disse, até à inauguração do Botequim. O protagonismo delas ao longo da série vai-se alternando, mas há sempre uma presença contínua das três. A que talvez evolua mais paulatinamente seja a Snu, porque nós começamos com uma Snu acabada de casar, estava na casa dos 20 anos, que tinha de se adaptar a um país - ela vinha de viver nos Estados Unidos com o Vasco, o primeiro marido - que vivia sob uma ditadura, em que a maioria das pessoas não sabia ler nem escrever, no entanto tinham, dizia ela, uma alegria natural, que ela não compreendia enquanto nórdica. Já manifestava uma visão muito crítica, muito assertiva e muito atenta à realidade internacional. É ela que diz ao Vasco a determinada altura, “A guerra vai-se espalhar a outros países. Isto não vai estar reduzido aqui. E a França não reconhece a Argélia como foco de guerra, mas Portugal tem de reconhecer o Ultramar como foco de guerra”. Ou seja, ela é uma mulher, para a época, extremamente politizada, é filha de jornalistas, brindou com alguns prémios Nobel - e estamos a falar de uma miúda com 16, 17 anos. O seu ponto de partida não era, de todo, um ponto de partida vulgar, mas a verdade é que sentiu que tinha de fazer alguma coisa e deixar uma marca naquele país que tinha escolhido. Ela não nasceu aqui, ela escolheu viver aqui. E isso foi através de uma editora. Porque é que é interessante esta questão da editora, e depois dos cadernos da D. Quixote a seguir? É que na altura, a imprensa tinha censura prévia. Os jornalistas escreviam e os textos iam à censura. Eram devolvidos da censura e depois eram publicados assim. Os livros não tinham censura prévia. Eram editados e depois eram recolhidos. E entre a edição e a recolha, conseguiam circular de alguma maneira. Foi a forma que ela encontrou de dar à população portuguesa, porque lá está, a maioria não sabia ler nem escrever, mas dos que sabiam, o acesso à língua estrangeira. Ela criou uma estratégia na D. Quixote, absolutamente genial, que foi a publicação através de cadernos de textos da imprensa internacional. Traduzia-os e publicava-os como se fossem livros. Servia, sem qualquer traço azul da censura, a informação em estado puro aos portugueses. Isso nunca tinha sido feito até àquele dia. Estamos a falar de uma mulher que nem 30 anos tinha, numa altura em que era muito difícil uma mulher ter uma editora em Portugal. Fez coisas como publicar as Três Marias… o segundo livro da Maria Teresa Horta foi publicado pela Natália Correia, que também esteve à frente de uma editora. Mas é essa evolução da Snu, de uma jovem mãe recém-casada que chega a um Portugal sob uma ditadura, sem dominar a língua porque ela não sabia falar português, e aprendeu de forma autodidata, comparando livros, comparando traduções, lendo Anna Karenina em francês e lendo Anna Karenina em português, percebendo até a forma como nós traduzíamos os grandes clássicos, de uma maneira podada, cortada à tesoura. Há uma cena em que ela diz ao Vasco “O teu país nunca leu Tolstoi”, porque as coisas chegavam até nós bastante editadas, e até havia um processo de autocensura dos próprios tradutores, para que não tivessem problemas, evitavam determinadas expressões, determinadas frases.

A Natália Correia dá-nos se calhar o fio condutor da série, porque a série começa numa prolapse, com o julgamento da Antologia de Poesia Erótica e Satírica, que ela publicou em 67/68, e que foi automaticamente retirado do mercado, e depois houve uma circulação à socapa dos livros - fazia-se uma segunda edição clandestina, que depois circulava e era vendida. Ela conseguiu reunir textos que vêm desde Gil Vicente até poetas contemporâneos, ela contribuiu com poemas, o Cesariny, o Luís Pacheco, Ary dos Santos, estão lá todos, e depois foram levados a tribunal devido ao caráter pornográfico da obra. É assim o arranque da série. E depois recuamos uns anos e começamos a construir a partir daí. A série termina com o desenlace do julgamento, sabemos que eles foram condenados, foi um duro golpe para a Natália, e com a abertura do Botequim, que significou obviamente um polo de resistência na noite lisboeta até ao 25 de Abril.

Maria Armanda Falcão - Vera Lagoa posteriormente - foi interpretada pela Maria João Bastos, já tive oportunidade de ver a série e ela tem uma interpretação brilhante. A Maria Armanda Falcão do episódio número um não é a Vera Lagoa do último episódio, há uma evolução extraordinária. Estamos a falar de uma diferença de doze anos, é praticamente um ano por episódio, e ela conseguiu criar uma evolução extraordinária do ponto de vista de representação desta mulher. Começamos com uma Maria Armanda Falcão casada com o Manuel Tengarrinha, com quem eu tive oportunidade de falar, entrevistar. Entretanto ele morreu, infelizmente muita gente com quem nós falámos para fazer esta série morreu no processo, porque estamos a falar de pessoas já com alguma idade, que ainda estavam vivas, e nos conseguiram contar histórias muito boas, daí eu achar que esta série também é um documento histórico importantíssimo, muitas eram pessoas que nunca tinham falado sobre aquela época específica, e falaram pela primeira vez, nós conseguimos ficcionar, e depois a cada notícia que tínhamos, da morte do Tengarrinha, Maria Eugénia Varela Gomes - nós conseguimos falar com ela e depois ela morreu, ela é personagem nos primeiros episódios. Mas a Maria Armanda Falcão quis ser uma voz, ela tinha vindo da televisão, tinha sido a primeira mulher a apresentar na RTP, mas tinha-se distanciado da televisão e queria ser uma voz assertiva numa área que ainda era muito vedada às mulheres. E ela tinha uma forma de olhar para a realidade muito distinta daquilo que consideramos, ou que era considerado na época, a informação dura. Ela conseguia, e conseguiu através das Bisbilhotices, a coluna que começou a assinar no Diário Popular, aí como Vera Lagoa, fazer um retrato de época que era um retrato muito acutilante com uma dose enorme de humor e de veneno, mas que neste momento, e olhando de uma forma retrospetiva, percebemos que é um documento histórico extremamente interessante, porque eram crónicas sociais, obviamente, mas principalmente eram crónicas de costumes. Fazem-me muito lembrar quando eu leio aqueles folhetins oitocentistas. Ela tem uma personalidade muito engraçada, muito interessante, porque de uma forma quase caricatural dizem que ela passou da extrema esquerda para a extrema direita, criou o Diabo, etc, mas acho que à semelhança da Natália ela era, de facto, um espírito independente. Ela depois divertiu-se - e digo divertiu-se porque deve ter sido mesmo divertido para ela - num pós-25 de Abril a denunciar todos aqueles que foram de alguma maneira vira-casacas, que durante o Estado Novo sempre estiveram muito próximos do regime, e depois do 25 de Abril passaram a estar muito próximos dos Capitães de Abril. Ela sempre foi, ao longo do seu arco de vida, extremamente fiel às suas convicções. E não é fácil, especialmente quando há flutuações tão grandes de história. São três mulheres com personalidades muito fortes e muito honestas com as suas próprias convicções.

Qual é que acha que é a importância de vermos esta série agora, de voltarmos a estas mulheres?

Eu acho que nós estamos a viver uma época bastante perigosa, enfim, não sei se mais perigosa do que outras épocas específicas, se olharmos para a História percebemos que isto é bastante cíclico, mas de tempos a tempos a sociedade tende a voltar às suas necessidades mais básicas. Se nós olharmos para a Pirâmide de Maslow - aquela que diz quais são as necessidades do ser humano, das mais básicas até àquelas mais complexas ou mais sofisticadas - e olharmos, por exemplo, para os resultados das eleições no Brasil, achamos que as pessoas estão a tentar voltar a proteger aquilo que sentem ser mais básico para o seu dia a dia. E mais do que isso, a darem em troca coisas que, na ótica delas, podem não ser tão importantes, nomeadamente a liberdade. Para me sentir segura, ofereço-te a minha liberdade. E de que forma é que isto pode ser balanceado. A questão é que se nós pensarmos - e eu acho que estas mulheres tinham essa capacidade - eu acredito que as necessidades mais básicas do ser humano, ou a mais básica do ser humano, não esteja na sua necessidade de se alimentar, mas na sua necessidade de se relacionar com o outro. Porquê? Porque a verdade é que, ao contrário da maior parte dos animais, nós não somos autosuficientes. Eu quando nasço não me levanto e vou á procura de comida. Inevitavelmente preciso que cuidem de mim. Preciso do outro. Hoje em dia, quando nós estamos a votar pela sobrevivência, a votar no sentido de pormos um voto literalmente em alguém que nos diz “Eu vou-vos manter seguros e vou-vos continuar a meter comida na mesa”, quando alguém diz “Votem em mim porque eu forneço-vos o básico”, nós esquecemo-nos que o básico para o ser humano é a sua afinidade com o outro. É esta capacidade que faz de nós humanos que muitas vezes, e com os diferentes ciclos da história, nos esquecemos. E vamos pagar isto mais tarde. Estas mulheres viveram numa época em que as pessoas sentiam que lhes era garantido o básico.

Os meus avós e os meus pais não pertenciam à elite cultural, e eu falava com os meus avós e várias vezes perguntava-lhes como era, e eles diziam “Ah, se não te metesses em política estavas bem”. Como diz o Voltaire, se regasses o teu jardim - sendo que o Voltaire não queria dizer especificamente isto, obviamente. E nós estamos a pensar assim novamente. E só por pensarmos assim, e só por Portugal pensar assim naquela altura - por n razões, nomeadamente uma taxa de analfabetismo gigante -é que permitiu que uma ditadura se perpetuasse durante 40 anos. Se tiveres um povo com espírito crítico e que percebe que a satisfação básica das suas necessidades não é a segurança e a alimentação, mas é a capacidade empática e de relacionamento com o outro, e a liberdade de se relacionar com o outro, facilmente um regime não consegue aguentar, a menos que seja através de uma forte repressão, durante 40 anos. Portanto eu acho que é imprescindível olhar-se para esta série e tentar posicioná-la nos dias de hoje, e pensar que aquilo que nós temos como garantido é muito frágil, é extremamente frágil. E mesmo num ambiente em que nós consideramos democracia, precisamos de estar muito atentos e sermos focos de resistência. Como aquelas mulheres foram num contexto, eu diria, muito mais adverso. A questão é que naquela altura nós conseguíamos identificar o inimigo, e agora o inimigo está muito mais diluído. Acho que as Três Mulheres acontecem num momento para contrariarmos o medo. Acho que é isso.

Três mulheres que a inspiram?

[risos] Acho que já disse. Obviamente, Natália Correia, Snu Abecassis e Vera Lagoa.

 

Irina Chitas By Irina Chitas

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