O título deste texto não pretende ser ofensivo. Pretende, antes, ser elucidativo. Vamos a factos: estamos em pleno século XXI e continuamos a (tentar) esconder o mamilo feminino como se de uma arma de destruição maciça se tratasse. Algo de muito errado se passa connosco. O que é que pode justificar a perseguição (constante) aos seios das mulheres, seja na vida real ou virtual? Nada. Rigorosamente nada. Lamentamos desiludir os fãs de teorias da conspiração, mas são apenas mamas.
© Getty Images
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Atentado ao pudor. Exposição indecente. Comportamento lascivo. Falta de decoro e/ou bom senso. A relação da sociedade, e da história, com o mamilo feminino é rebuscada e traiçoeira. Por um lado, é a partir dele, do mamilo feminino, que tudo começa — é dele que vem o leite materno, que alimenta os mesmos homens e mulheres que, anos mais tarde, o condenam. Por outro, parece que ele, o mamilo feminino, está condenado a ser visto como algo erógeno, pornográfico, sexual, provocatório, e nunca, mas nunca, como uma zona anatómica transversal a homens e mulheres, desde o momento do seu nascimento — até aos que, anos mais tarde, o condenam. Pequeno parêntesis para evitar mal entendidos: o mamilo feminino é sexy? É. Deveras.
Ainda por cima, há-os para todos os gostos, há-os de todas as formas, tamanhos e feitios, e não tem como se lhe ficar indiferente. Eles, ou elas — porque nisto da atração o género é tão relevante como a opinião dos outros, conta zero — podem ficar “de quatro” somente com a ideia de terem por perto (ou à distância de um ecrã) um mamilo feminino. Há quem prefira rabos, há quem tenha fetiche com pés, há quem sinta o coração bater mais forte com narizes, com pernas, com mãos, you like it, you name it. Escrito isto, levante-se o réu (leia-se, o mamilo feminino) e pergunte o juiz que preside a este tribunal de doidos: afinal de contas, quantas guerras é que já começaram por causa de alguém ter avistado, a dada altura da sua existência, o Sr. Mamilo Feminino? Nenhuma, meritíssimo, nenhuma. Bem nos queria parecer.
E no entanto, aqui estamos nós, de novo, a bater no ceguinho. Há precisamente um ano, a Vogue publicou um artigo sobre este tema: Nip(ple) & Tuck dava o mote a uma reflexão sobre a revoltante, porém urgente, batalha pela libertação do mamilo feminino, que se tornou conhecida através do movimento Free the Nipple — que é também o nome de um filme realizado por Lina Esco, cuja estreia em 2014 abalou para sempre a perceção de como o mundo tem dois pesos e duas medidas quando o assunto são mamas. Porque é disso que se trata. Mamas. M-a-m-a-s. M-A-M-A-S. É repetir até não chocar mais. E, no entanto, aqui estamos nós, de novo, a bater no ceguinho. Porque, vários meses depois, pouco ou nada mudou. Em vários pontos do globo, as mulheres continuam a ser presas, ou acusadas de “perturbação da paz”, por fazerem topless. A hashtag #nipple continua a não existir — #nipplepiercing, #nipplecovers, #nipplerings, sim, agora #nipple…
A “causa” continua a necessitar de aderentes, de gente que grite, alto e bom som, “free the f****** nipple.” O fosso entre o que se pode ou não mostrar, e em que circunstâncias, piorou, porque os deuses da censura conseguiram incutir, em grande parte das mulheres, a sensação de que andar sem soutien na rua é crime, ou que publicar uma selfie em que os seios sejam tão protagonistas como o rosto é “estar a pedi-las” — e, na verdade, até é, porque qualquer rede social tratará de a apagar em menos de nada. As justificações para essa censura permanecem, contudo, vazias, como se tivessem sido redigidas por um ser humano do século XVI. Ainda é culturalmente aceite partilhar imagens que incluam objetos potencialmente perigosos, como pistolas, facas, armas de qualquer tipo, ou vídeos com os discursos alienígenas de Jair Bolsonaro, mas mamas — porque são mamas, senhores, nunca é demais repeti-lo — mamas é que não. E não são umas mamas quaisquer, são mamas de mulher, visto que essas é que causam grandes males ao mundo. É mais ou menos assim que pensam os algoritmos (criados por pessoas, não sejamos inocentes) por trás das redes sociais onde passamos grande parte dos nossos dias.
O fosso entre o que se pode ou não mostrar, e em que circunstâncias, piorou, porque os deuses da censura conseguiram incutir, em grande parte das mulheres, a sensação de que andar sem soutien na rua é crime, ou que publicar uma selfie em que os seios sejam tão protagonistas como o rosto é “estar a pedi-las”
“As publicações recentes com #freethenipple foram ocultadas porque não seguiram as Normas da Comunidade do Instagram.” É esta a mensagem que surge no topo das mais de 4 milhões de imagens partilhadas no Instagram com o hashtag #freethenipple. Muitas mais seriam, não fossem as tais “normas”, tão ambíguas como o funcionamento do cérebro de Donald Trump. Vamos diretos ao assunto, porque nem Mark Zuckerberg (que comprou a app em 2012), ocupadíssimo na gestão dos seus milhões, nos conseguiria explicar isto. O tópico número dois desta lista de regras tem como título “Publica fotos e vídeos que sejam apropriados para um público diversificado”, algo tão inócuo como dizer “be yourself, but not like that.” E desenvolve-se da seguinte forma: “Sabemos que, por vezes, as pessoas podem pretender partilhar imagens com nudez de natureza artística ou criativa. No entanto, por vários motivos [que cabe a cada utilizador adivinhar], não permitimos nudez no Instagram. Isso inclui fotos, vídeos e alguns conteúdos criados digitalmente que contenham relações sexuais, genitais, e nádegas em grande plano completamente expostas. Também inclui algumas fotos de mamilos femininos, exceto no contexto de amamentação, parto e pós-parto, situações relacionadas com saúde (por ex: pós-mastectomia, sensibilização para o cancro da mama ou cirurgia de confirmação de género) ou um ato de protesto. A nudez em fotos de pinturas e esculturas também é aceitável.”
Long story short, publica fotos e vídeos que sejam apropriados para um público diversificado — que ninguém sabe bem o que/qual é — só não publiques fotos de mamas em situações banais. Tipo, aquele momento em que estás em frente ao espelho, pós banho, e percebes: “Ena. Três filhos, 43 anos, e estas mamas ainda estão para as curvas.” Isso sim, dá cabo do sistema. É o fim da linha.
Para muitos artistas, que se servem desta plataforma para darem a conhecer o seu trabalho, pode não ser o fim, mas é uma gigantesca dor de cabeça. Alina Gross é fotógrafa e colaboradora regular da Vogue. Nasceu na Ucrânia, mas mudou-se para a Alemanha ainda jovem. É de lá que nos conta a sua experiência com as “community guidelines” das redes sociais. “Uso o Instagram com mais frequência desde 2018. O meu trabalho The Nipple Instinct, por exemplo, foi censurado. Uma das fotos mostrava uma flor a crescer a partir do seio. Simboliza a força vital e o leite para o bebé recém-nascido. A foto foi censurada por causa do mamilo. No final de 2020, a minha conta foi banida durante um mês.” Um mês em que foi obrigada a servir-se da ajuda de outros utilizadores para garantir que os seus editoriais continuavam a ter visibilidade. “À medida que o meu trabalho [é partilhado] em contas maiores, o número de seguidores frequentemente aumenta a olhos vistos.
Também há likes e comentários. Há também mais comentários negativos, até verdadeiras tempestades de pessoas que se sentem ofendidas com o conteúdo, real ou imaginário, das imagens. Podem ser oponentes do estilo de vida, ou do suposto estilo de vida, dos artistas, e da sua arte, podem ser outros artistas. Até os oponentes da amamentação às vezes consideram as imagens pacíficas de bebés a serem amamentados como algo extremamente terrível. Em que fase está a guerra quando o máximo já está ocupado pela amamentação? Bem, [está na fase da] cultura de indignação. Por fim, o Instagram informou-me que a conta seria excluída em 48 horas porque as seguintes regras foram violadas: seguidores e likes artificiais; posts protegidos por direitos de autor; venda de produtos de imitação; nudez e conteúdo sexual.” Alina acabou por recuperar a conta — depois de um longo, e penoso processo, o que a faz criar uma backup account, caso volte a ver-se proibida de publicar certas imagens, o que acontece recorrentemente — mas assume que tudo isto é cansativo e desmoralizador. “A censura força os artistas a usarem um espartilho. Tens de censurar o teu próprio trabalho para o publicares no Instagram. Não preciso mencionar o quão importante o Instagram se tornou como plataforma de imagem para artistas. Especialmente em tempos de pandemia, a vida social é cada vez mais moldada pelas redes sociais. Um artista que não tem permissão para mostrar a sua arte está em desespero.” E relembra: “Para mim, não há nada mais natural do que mamilos femininos. Isso aplica-se ao corpo humano em geral. O mesmo vale para outras pessoas, idades e culturas: o seio não devia ser tão chocante, afinal de contas, a história da humanidade está repleta de imagens de seios. O Instagram também faz uma exceção: arte que é ‘antiga’ ou reconhecida como ‘arte visível’ pode mostrar nudez. Acredito que através da educação, mas também através da irritabilidade pessoal e da beligerância, muitas pessoas veem as mesmas coisas que as outras, mas só as percebem sexualmente. Durante as compras, podes ver abóboras e pepinos e pensar no Halloween e na salada — ou podes pedir aos donos da mercearias que os vegetais não estejam expostos, de todo.”
"Acho estranho quando alguém entra na minha vernissage, no meu estúdio ou na minha conta do Instagram para ficar irritado com o que está a ver e me venha pedir para o esconder."
É por isso que, para Alina, o movimento Free the Nipple continua a ser tão relevante. “Fico estupefacta que os mamilos masculinos possam ser mostrados e os mamilos femininos não. Porque não deveriam ser mostrados? Pelo menos em arte e ilustrações. Eu considero o público — isto é, ruas, por onde andas — um tipo de público diferente do de um museu, do que vai ao meu estúdio ou do que segue a minha conta de Instagram. Acho que esses [locais] são um espaço mais protegido, uma espécie de espaço semipúblico. Acho estranho quando alguém entra na minha vernissage, no meu estúdio ou na minha conta do Instagram para ficar irritado com o que está a ver e me venha pedir para o esconder.”
O truque é tapar, tapar, tapar. Seja com emojis, com photoshop, com as malfadadas barras pretas… Ou então, insistir, insistir, insistir. Em maio de 2020, Madonna, always the queen, partilhou uma fotografia na sua conta pessoal onde aparecia sentada no sofá envergando apenas um soutien transparente e umas cuecas pretas. Os mamilos (ou um deles) revelou-se em todo o seu esplendor e a rainha da pop antecipou-se aos haters: “And for those of you who are offended in any way by this photo then I want to let you know that I have successfully graduated from the University of Zero F*^ks Given.” Até nos dá um certo gozo traduzir isto: “E para aqueles que se sentirem de alguma forma ofendidos com esta foto, quero que saibam que acabei de me licenciar com sucesso na universidade do estou-me nas tintas” — para sermos politicamente corretos. A imagem continua lá, com mais de 1 milhão de likes. Pura sorte ou, nessa noite, o algoritmo que censura mamilos femininos estava a dormir? Nunca saberemos.
Em todo o caso, e tal como previsto, nenhum cometa atingiu a Terra, e o sol continuou a nascer todas as manhãs. É caso para dizer, foi um pequeno passo para a humanidade e um gigantesco salto para o mamilo feminino. O que nos conduz a esta breve reflexão final. Se um mamilo feminino incomoda muita gente, quatro mil milhões*, mais coisa menos coisa, incomodam muito mais. Imaginemos, por isso, este cenário: um dia destes, as quatro mil milhões de mulheres, mais coisa menos coisa, que habitam este maravilhoso planeta, decidiam tirar o soutien, rasgar a t-shirt, despir a camisola de gola alta, e saíam rua fora com os seios à mostra, tal qual vieram ao mundo, enquanto paravam para tirar fotografias do momento e as partilhavam em tudo o que é rede social. Ah! Aí é que a casa, perdão, o castelo da moral e dos bons costumes, vinha abaixo. Ia ser lindo de ver. Talvez num universo paralelo. Até lá, não custa relembrar o básico. São apenas mamas, estúpido. Até tu, que te incomodas com a sua presença, tens umas.
*O número, aproximado, refere-se ao total de mulheres que, atualmente, existem no mundo, de acordo com o site The World Bank.
Artigo originalmente publicado na Forbidden Issue da Vogue Portugal, de abril de 2021.