Fotografia de Anouk Kruithof
Nas redes sociais, a partilha sempre foi a palavra de ordem. Mas uma nova geração de influencers reconstrói o seu propósito original. Porquê revelar quando se pode esconder?
“De onde é o casaco?” “Onde compraste as calças?” “De que marca é essa camisola?” Estas perguntas são omnipresentes na grande maioria dos TikToks que me aparecem à frente. A minha FYP (for you page para os menos educados em brain rot, a timeline da aplicação chinesa) é comandada pelo meu amor à Moda. Naturalmente, sinto-me inspirado pelo que vejo no pequeno ecrã que me mostra o mundo. Ainda que me considere sábio em matérias de Moda, é incrível a quantidade de produtos que vejo à frente que não faço qualquer género de ideia de onde vêm. A minha ignorância cria em mim a necessidade de saber — é daqui que me salta a coragem para perguntar: “de que marca são esses sapatos?” As minhas questões raramente têm resposta. No melhor dos casos, tenho outros utilizadores a comentar ou a gostar do comentário. Estes pequenos incentivos não passam de vozes tão desesperadas como a minha, sedentas de um comentário que lhes sacie a curiosidade. Mas, ainda que a minha irritação seja latente, concedo que existe algo para lá da minha frustração. Seguramente, estes gatekeepers não o fazem por prazer sádico. Tem de haver uma razão. “Não percebo porque é que me estão sempre a perguntar de onde vem a roupa que uso ou os acessórios com os quais me adorno.” Letao Chen, uma artista experimental baseada em Londres e microinfluencer nos tempos livres, expressa a sua frustração quando nos encontramos para almoçar. Conhecida pelas produções de vídeo que faz, onde a ironia de slang online é intercetada com espiritualidade virtual, a artista tem visto sucesso na plataforma de vídeos. Entre análises culturais a simples fit checks, Chen alcançou o que muitos cobiçam: encontrou o seu nicho. O seu espírito artístico é o protagonista dos seus TikToks. Os seus vídeos mais populares são paródias inteligentes da tendência de “jane birkinfying” uma carteira. Para quem não se encontra cronicamente online, explique-se: a sensação online baseia-se nas fotografias icónicas de Jane Birkin com a sua carteira homónima e a forma como esta a decorava — repleta de pequenos objetos e cheia até ao limite. A tendência, que se baseia no instinto de decorar os nossos bens de forma orgânica, atingiu o ponto do ridículo. Em vez de utilizarem souvenirs ou outros objetos pessoais, utilizadores do TikTok compram-nos em massa “de forma a decorar malas da forma menos individual possível.” Chen, com o propósito de compensar o que a tendência se tornou, comprou duas carteiras Birkin falsas que decorou de forma pessoal. A artista usou a sua descendência chinesa como fonte de inspiração e criou porta-chaves extremamente pessoais. O que Chen fez é tocante. Inspirada pelas suas memórias de infância, a artista criou uma série de objetos que pendura nas suas carteiras. “Eu cresci numa casa de imigrantes chineses nos Estados Unidos. Na nossa casa, a funcionalidade sempre foi priorizada sobre a estética. Isto sempre foi algo que me custava aceitar na minha infância, era algo que nenhum dos meus amigos tinha. A minha casa tem colunas de som penduradas na cozinha com fio nas paredes, conectadas ao computador na sala. É funcional, mas a estética é de certa forma artística. Inspirada por isto, criei um porta-chaves que é um gua sha, um objeto funcional, usado de uma forma meramente estética. No buraco do gua sha pendurei uma bracelete que a minha avó me deu e uma trança de uma peruca porque a minha mãe costumava vender perucas.” Chen explica o seu processo de forma aberta, mas discute uma frustração escondida. “Nos comentários do vídeo em que expliquei o objeto que criei, tenho pessoas a perguntar-me se os podem comprar. Não faz sentido nenhum para mim, acabei de explicar como este objeto é tão representativo de quem sou, e o primeiro instinto de algumas pessoas é comprá-lo.” O propósito do TikTok de Chen não era vender um produto, mas inspirar. “Porque é que, em vez de tentar comprar algo que outra pessoa fez, não utilizamos filosofias semelhantes para criar algo?” Chen ensinou a metodologia por detrás do seu processo, mas a sua audiência não estava disposta a aprender. “Acho que a beleza destes objetos é que são pessoais. Era tão bom se conseguíssemos entender que a nossa identidade não se compra, faz-se.”
O tema de gatekeeping é bem mais complexo do que a simplicidade que um porta-chaves possa indicar. A questão de Letao, assim como a de uma crescente comunidade online, é que mercantilizámos a originalidade. A tendência de adicionar charms a carteiras, popularizada por marcas como Miu Miu ou Balenciaga, é proposta como o derradeiro sinal de decadência cultural. Com discursos que abrangem tudo, desde literatura académica a reality tv, o fenómeno de porta-chaves que se compram é considerado um sinal do estado de capitalismo em que nos encontramos. Estas vozes são convincentes. Um porta-chaves é, de certa forma, a representação mais genuína da originalidade. Estes são compostos por pequenos amuletos que colecionamos nas nossas viagens, prendas de amigos, bugigangas que achamos na rua — objetos insignificantes que escondem histórias que definem quem somos, com quem nos damos e por onde andamos. Ao comprar um porta-chaves intencionalmente aleatório que é produzido em massa, esvaziamos qualquer significado que este possa ter. A necessidade de comprar e vender substitui a pequena, delicada humanidade que estes objetivos representavam. Letao faz deste objeto o sujeito de todo um manifesto. E, ainda que hesite em chamar-se a si mesma de influencer, o que esta descreve é uma categoria de influencers que negam o seu propósito original enquanto vendedores glorificados.
Ok, perdoe-se a rant que está prestes a começar. Mas, após ouvir Letao, o conceito de influencer na sua atual forma é progressivamente difícil de aceitar. Pede-se a cortesia de entender que, no seu cerne, a questão não se prende com nenhuma pessoa em específico, mas com o conceito abstrato de uma profissão que atrofia a forma como socializamos para nos vender produtos que raramente precisamos. A nossa cabeça, ainda tão presa à sua condição animal, é incapaz de reconhecer que as pessoas que vemos nos nossos pequenos ecrãs não são nossas amigas. O cérebro de animais sociais, precondicionado para a formação de laços interpessoais, é incapaz de entender que as pessoas que estão connosco a caminho do trabalho, em salas de espera e até na cama, não partilham uma intimidade real. É essa a genialidade de influencers. Aproveitando-se da familiaridade e confiança que as relações parassociais convidam, estas pessoas “recomendam” produtos — leia-se, vendem-nos tudo o que conseguem. Esta é, assumidamente, uma visão bastante cética da questão, mas, após falar com Letao, é difícil não nos sentirmos radicalizados.
O que influencers como Letao propõem é, neste sentido, bastante refrescante. Recusando-se a promover qualquer marca que seja, estas são pessoas que escolhem pensar na sua presença nas redes sociais de forma diferente. Quer seja um mero hobby, uma forma de expressão artística ou um outlet criativo, uma nova geração de influencers procura abrandar o controlo comercial das redes sociais. Chamem-lhes gatekeepers se for preciso, eles não se importam. É importante que se realce que a maioria destes influencers que observo têm uma rede de influência relativamente pequena. Nada nos diz que se (ou quando) a sua audiência crescer — aumentando também a possibilidade de rendimento para a promoção de produtos — estes não viram as casacas. Até mesmo Letao, com todo o fervor dos seus argumentos, aceitou fazer uma promoção a uma marca após esta lhe enviar um par de carteiras. Não que este facto anule o que nos disse, mas põe a sua opinião em contexto — quando confrontados com a tentação de monetização, poucos são aqueles que mantêm a lealdade à moral. Claro que existe uma componente de gatekeeping que se prende menos com estes valores tão esotéricos e intelectuais e mais com mesquinhez adolescente — argumentos de “se publicar, vão-me todos copiar.” Custa admitir que este género de pensamento ocupa a mente de alguns adultos, mas alguns não têm mais que fazer. Ainda que gostasse de poder descontar todo este género de atitude a uma mentalidade adolescente, Moira Gonzalez, diretora de comunicação visual da Charles Jeffrey Loverboy e autoproclamada vibes curator, pensa em gatekeeping de forma diferente. “Já tive várias situações onde partilhei as minhas ideias ou a minha opinião sobre certas coisas e me ‘roubaram’ a ideia antes que a conseguisse executar.” O que Gonzalez descreve é um medo específico de uma geração que sabe a facilidade com a qual se usurpam ideias. “Com os meus amigos sou sempre honesta e aberta sobre o que gosto ou onde encontro inspiração, mas, se estamos a falar de estranhos, ou online, então é algo que escolho ativamente não partilhar.” O sentimento é ecoado por muitos online. Numa era em que um outfit é monetizável, partilhar a informação de como o alcançamos pode ser um desperdício de dinheiro. “Acho que tudo parte de uma necessidade de nos protegermos,” adiciona Gonzalez. “Não é suposto ser malicioso, é apenas algo que faço porque sei que, se vejo potencial em algo, quero ser eu a receber os benefícios.” O que Gonzalez e Chen relatam não é distante. Nenhuma das duas nega ou ressente a inspiração que podem servir a terceiros — é isso que querem provocar nas pessoas que as observam. A mentalidade promovida pelo TikTok que o sentido pessoal de estilo não se constrói, mas se compra, é aborrecida. Chen sumariza a sua filosofia impecavelmente. “Quero que o que faço inspire outros a fazer o mesmo, mas se me copiarem, acho que todos perdemos.”
Retirado da edição What's Next da Vogue Portugal, publicada em dezembro de 2024 e disponível aqui.
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