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José Gutierrez Xtravaganza: “O voguing foi criado do sonho de seres alguém quando o mundo inteiro te dizia que não podias ser”

17 Jun 2020
By Mónica Bozinoski

Quando o pedido “come on, Vogue, let your body move to the music” se fez ouvir pela primeira vez na rádio, o mundo inteiro mudou. Pela voz de Madonna, o voguing emergiu dos ballrooms de Nova Iorque para todas as salas do mundo, levando a comunidade que o criou diretamente para o topo das tabelas. E José Gutierrez Xtravaganza esteve lá para tudo.

Quando o pedido “come on, Vogue, let your body move to the music” se fez ouvir pela primeira vez na rádio, o mundo inteiro mudou. Pela voz de Madonna, o voguing emergiu dos ballrooms de Nova Iorque para todas as salas do mundo, levando a comunidade que o criou diretamente para o topo das tabelas. E José Gutierrez Xtravaganza esteve lá para tudo. 

Fotografia de Luigi & Iango ©Cortesia de José Gutierrez Xtravaganza
Fotografia de Luigi & Iango ©Cortesia de José Gutierrez Xtravaganza

Eram quatro da tarde de uma quarta-feira quando enviei o primeiro e-mail a José Gutierrez Xtravaganza. Não vou mentir e dizer que não estava nervosa no momento em que carreguei naquele botão azul mágico – estava, muito, talvez até demais, talvez até ao ponto de se tornar insuportável para quem estava ao meu lado. Passadas vinte e quatro horas daquele momento inquietante, eis aquilo que qualquer pessoa que conheça o peso daqueles três nomes sonha em ler: “Parece-me fantástico, adorava. Estou no Brasil neste momento, e só voltarei a Nova Iorque no final do mês. Mas podes enviar-me as tuas perguntas e responderei a tudo.” 

Senti-me capaz de vogue the house down, não estivéssemos nós a falar de uma lenda viva, de um pioneiro do movimento, de uma figura influente desde os tempos dos 10’s across the board nos ballrooms nova-iorquinos aos momentos em que dançou ao lado de Madonna em alguns dos maiores palcos do mundo, passando pelos dias de hoje, ocupados no papel de pai da emblemática House of Xtravaganza e no cargo de consultor no fenómeno televisivo de Ryan Murphy, Pose. Já referimos que José Gutierrez Xtravaganza é também uma das mentes criativas por detrás da coreografia que vemos imortalizada a preto e branco nos visuais de Vogue? E uma das figuras que dão corpo aos movimentos dessa mesma coreografia nesses mesmos visuais da Material Girl, impecavelmente vestido num fato, com uma aura tão fierce quanto sublime, aura essa que só um verdadeiro mestre de voguing poderia transmitir? E um dos bailarinos de uma das tours mais ambiciosas, revolucionárias e chocantes da artista norte-americana? 

“O meu primeiro encontro com a Madonna foi surreal”, conta Gutierrez sobre o rendez-vous que viria a mudar, para sempre, a história da cultura pop. “Percebi isso no momento em que lhe disse ‘olá’ – senti-me completamente arrebatado pelo facto de ela estar a conversar apenas comigo, no meio daquela discoteca. Foi a Debi Mazar, que, na altura, era hairstylist dela e minha amiga, que nos apresentou. Eu conhecia a Debi das nossas saídas aos clubs, e ela dizia-me sempre, ‘falei sobre ti à Madonna.’ Um dia, a Madonna acabou mesmo por aparecer na discoteca e fomos apresentados. E foi ali, naquele preciso momento e a pedido dela, que lhe mostrei o meu voguing na pista de dança.” 

José Gutierrez Xtravaganza, que começou a dançar pela casa em criança, inspirado pelos programas de variedades que a mãe via na televisão – “penso que foi aí que descobri que ser bailarino era aquilo que eu queria fazer... aos sete anos de idade já queria ser um dos Solid Gold Dancers, que era um desses programas muito populares nos Estados Unidos da América” – descobriu a arte do voguing na sua primeira ida aos Christopher Street Piers, um grupo de cais na margem do rio Hudson, em Nova Iorque. “Era aí que a comunidade gay se costumava juntar”, recorda Gutierrez. “Foi aí que vi o voguing pela primeira vez. Senti-me completamente surpreendido pelo movimento, pela atitude de quem estava a dançar. Foi hipnotizante. As poses, tão complexas, tão precisas, tão incisivas. Foram essas coisas que me fizeram ficar apaixonado pelo voguing.” 

Nascido nos ballrooms de Nova Iorque na década de 80, o voguing encontrou inspiração não só nos movimentos de ginástica e nos hieróglifos do Antigo Egito, mas também – e talvez mais notoriamente – nos vários números da revista Vogue. Foram as modelos nas páginas da publicação que, com as suas poses, a sua feminilidade, a sua beleza e a sua elegância, influenciaram a comunidade queer a strike a pose. “A Moda teve um papel muito importante na minha vida”, conta o bailarino e coreógrafo, que ao longo da sua carreira trabalhou com um rol de nomes impressionantes da indústria, entre eles Steven Meisel, Herb Ritts, Peter Lindbergh e Jean Paul Gaultier. “Desde pequeno que tive uma queda para a Moda. Adorava roupa! Sempre gostei de me vestir para ir para a escola, e aprendi as minhas lições sobre Moda muito cedo, graças às minhas primas e a outros familiares que tinham sentido de estilo. As minhas tias trabalhavam todas como costureiras em fábricas, e faziam roupas para mim e para as minhas primas. Aos 14 anos já sabia quem era o Gaultier. Ele era, e é ainda hoje, um dos meus favoritos. Imagina o sonho concretizado quando tive oportunidade de trabalhar com ele.” Gaultier leva-nos até ao corpete com cones, o corpete com cones leva-nos até Madonna, e Madonna leva-nos de volta a 1990, mais precisamente à Blond Ambition Tour. Verdadeiramente subversiva, a tour mundial da cantora norte-americana foi um exercício de liberdade de expressão, de provocação desmedida e de um espírito inclusivo, autêntico e real, que ficará para sempre imortalizado no documentário Madonna: Truth or Dare e na memória daqueles que a viveram de perto, ao vivo e a cores.

 

"O voguing é um estilo de vida."

“O melhor momento, e aquele de que me lembro vivamente, foi o primeiro concerto da tournée, no Japão”, partilha José Xtravaganza. “Apesar de estarmos na época das monções, o concerto foi realizado no exterior, para uma plateia esgotada, à chuva. Os gritos do público, quando mal tínhamos posto um pé no palco, aquela adrenalina, aquele entusiasmo, foram emoções que nunca tinha sentido antes. Imagina teres 18 anos e experienciares aquilo tudo. Sentia que o meu coração ia saltar do meu peito a qualquer momento de tanto entusiasmo.” Nesse mesmo ano, um mês depois do concerto de encerramento da tournée, Madonna e os seus backup dancers turned superstars rumaram a Los Angeles para a entrega de prémios MTV Video Music Awards, onde toda aquela performance ao estilo Marie Antoinette do tema Vogue – com direito a leques, perucas grandes e vestidos ainda maiores – aconteceu. Outra coisa que aconteceu? A nomeação de José Gutierrez Xtravaganza e Luis Camacho para Melhor Coreografia. “Foi um momento icónico, que ficará para sempre na história da cultura pop. Foi algo inovador, que quebrou barreiras. Enquanto bailarino, o teu sonho é receberes distinções pelo teu trabalho, é vê-lo ser reconhecido. Às vezes, trabalhas a tua vida inteira para alcançares isso. E eu estava ali, com 18 anos, a ver o sonho de qualquer artista acontecer. Mesmo em frente aos meus olhos.” Janet Jackson e Anthony Thomas acabaram por levar o troféu para casa com Rhythm Nation – mas a revolução provocada pelo Vogue, estatuetas e distinções à parte, deixava um sentimento de vitória no ar.  

Ainda assim, e apesar do voguing criado pela e para a comunidade LGBTQIA+ estar, de repente, na agenda de todo o mundo, o movimento em tempos underground continuava a ser muito mais do que uma sequência de poses glamorosas, ensinadas num qualquer estúdio de dança ou dançadas numa qualquer discoteca. Ainda assim, e apesar de ser um produto mais do que presente na nossa cultura pop – do emblemático documentário dos anos 90, Paris is Burning, ao sucesso vencedor de Emmys que é RuPaul’s Drag Race –, pergunto a José Xtravaganza se sente que as origens do voguing ainda não são totalmente compreendidas, se ainda existe quem olhe para esta arte como uma simples forma de dança ou uma tendência criada por Madonna. “Sem dúvida, e o voguing é tão mais do que isso!”, defende. “Apesar da Madonna lhe ter dado uma plataforma, um palco, o voguing não foi criado por ela. Talvez tenha sido uma das primeiras a fazer isso, mas o voguing é um estilo de vida. Aqueles jovens que o criaram não tiveram o luxo de ver a forma como tudo evoluiu até aos dias de hoje. Muitos deles já não estão entre nós. E são tantas vezes esquecidos. Ninguém faz o trabalho de casa para saber quem foram os pioneiros do movimento. O voguing foi criado do sonho de seres alguém quando o mundo inteiro te dizia que não podias ser, por causa das tuas preferências. Por causa de quem escolhias amar. O voguing nasceu da esperança e do sonho daquela que era vista como a classe mais renegada da comunidade gay; nasceu dos jovens que eram rejeitados pelas suas famílias, devido às suas preferências, numa sociedade que, na altura, olhava para eles como os culpados pela SIDA. Apesar de tudo, nós, a comunidade, decidimos continuar a viver com liberdade e a expressar-nos através desta forma artística.”

É um sentimento bem documentado em Strike a Pose, o documentário de 2016 que oferece uma espécie de “onde estão eles agora?” sobre Gutierrez e os restantes bailarinos da Blond Ambition Tour, mostrando a forma como a liberdade e a esperança conviviam, no mesmo palco, com a incerteza e o medo da epidemia que assombrava a comunidade. “A dança era o meu escape, sem dúvida”, conta o bailarino e coreógrafo. Falando dessa dança, que desde então mudou e evoluiu, pergunto a Gutierrez se sente que a essência do voguing se foi “perdendo” ao longo dos anos. “Bom, penso que, agora, depende muito dos sítios onde vais para descobrir o voguing”, defende. “Hoje, é ensinado em academias de dança em todo o mundo, por alguém que viu no YouTube, que tem as capacidades para o fazer, mas que provavelmente não sabe o que é, não sabe como nem de onde nasceu.” Para Gutierrez, aquilo que era “uma forma da comunidade alcançar algo artístico”, numa altura em que a mesma não tinha acesso à arte, “transformou-se num negócio” – “mas, às vezes, é uma oportunidade [de negócio] para alguém que não sabe nada sobre o voguing, enquanto dança, ou para alguém que nunca viu o Paris Is Burning.”

 

Referente àquele que é o documentário quintessencial da ballroom scene nova-iorquina dos anos 80 e 90, envio a José Gutierrez Xtravaganza a seguinte citação da Interview Magazine: “Passaram-se 29 anos desde que Paris is Burning introduziu a cultura ballroom de Nova Iorque no resto do mundo, e foram precisos 29 anos para o mundo (ainda que só mais ou menos) acompanhar.” Não lhe vou perguntar o porquê de ter demorado tanto tempo. Parece-me bastante óbvio, e acredito que todos nós saibamos o porquê. Também não lhe vou perguntar qual o impacto deste filme, tão bem documentado e analisado. Em vez disso, e tendo em conta que se passaram 29 anos desde então, pergunto a José Gutierrez Xtravaganza quais são as lições que a nova geração ainda pode aprender com este lendário marco cinematográfico da história queer. “Podem aprender muito sobre a vida e sobre o que significava ser gay naquela altura. Podem ver o modo como lutámos pelos nossos direitos, conhecer os nossos irmãos e irmãs que começaram este movimento – um movimento ao qual qualquer pessoa pode pertencer, hoje, sem os problemas que existiam antes.” Realizado por Jennie Livingston e trazido à luz do dia em 1990, no mesmo ano em que o Vogue de Madonna chegou às rádios, às televisões e aos palcos, Paris is Burning é um tesouro visual nu e cru das histórias da comunidade queer e trans, contadas pela presença de algumas das suas figuras mais proeminentes, entre elas Pepper LaBeija, Kim Pendavis, Dorian Corey, Willi Ninja, Venus Xtravaganza e Angie Xtravaganza. 

Questiono Gutierrez sobre o momento em que chegou a esta casa lendária, fundada por Hector Valle e Angie Xtravaganza em 1982 – digo lendária porque, numa época em que mesmo o ballroom podia ser restrito àqueles fora da comunidade afro-americana, a House of Xtravaganza ficou notável por ser uma casa predominantemente Latinx. “O meu primeiro encontro com os Xtravaganza foi no cais”, recorda. “Achava que eles eram estrelas de rock e pensei, ‘eu quero ser assim, eu quero ser feroz e fabuloso como eles.’ Integrei-me bastante rapidamente, e fui convidado a ser membro da casa no primeiro ball em que participei. Para mim, os melhores momentos eram aqueles em que estava a competir. Era aí que eu prosperava. Era algo que eu realmente queria. Eu queria aquela vitória para a minha casa. Por isso, sempre que caminhava num ball, estava determinado a vencer. Vestia um show outfit e tudo. Depois de ver os Xtravaganza durante um verão inteiro, [caminhar no ball e integrar a casa] foi um sonho tornado realidade. Na altura, era o membro mais novo. Era o bebé, e foi assim que fui tratado.” 

De bebé a pai dos Xtravaganzas, qual foi a melhor lição que aprendeu com os membros da casa? E o ensinamento que, hoje, transmite àqueles que fazem parte dela? “Aquilo que aprendi foi o valor da família, especialmente para aqueles que foram rejeitados pelas suas próprias famílias [ao contrário de muitos jovens da comunidade, José cresceu numa família que o apoiou e aceitou]. Aprendi a amar profundamente. Aprendi a partilhar, mesmo quando não tinha o suficiente para o fazer. Aprendi a ter confiança e orgulho. Mesmo nos momentos em que não tinha nem um dólar no meu bolso, aprendi a agir como se tivesse. Numa altura em que ser gay não era aceite como hoje, eu aprendi a ser forte. Estas lições ajudaram-me em todos os momentos da minha vida. Hoje, como pai, são estas  as tradições que passo. Sejam leais, amem-se uns aos outros, apoiem-se uns aos outros. Se não existir mais voguing, se não existir mais ballroom, se não existir mais Pose, existirá sempre a House of Xtravaganza, graças aos valores em que foi cimentada.” 

"Aquilo que ela [Madonna] fez foi dar ao voguing uma plataforma para que todo o mundo visse. E isso foi uma coisa fantástica."

Falar de Pose é falar de uma nova geração que, pela lente de Ryan Murphy, se está a apaixonar pela cultura ballroom e pelo voguing como se fosse 1980, e a compreender a complexidade do movimento como se fosse 1990. “Sim! Sem dúvida nenhuma!”, remata José no momento em que lhe escrevo isto. “Aquilo que o Ryan Murphy fez pela nossa comunidade foi uma verdadeira dádiva. Ele está a ajudar-nos não só a contar as nossas histórias, mas também a oferecer-nos uma oportunidade de mostrarmos os nossos talentos. Ele foi até à comunidade para encontrar estas histórias, para encontrar estas personagens da comunidade. O elenco é autêntico e os figurinos fazem parte da cultura. Acho que é algo que nunca tinha sido feito antes. Não existem atores ‘famosos’ na série. Agora, sim, deram-nos uma oportunidade de sermos nós a ter fama.” Essa procura pela fama é um sentimento bem retratado na segunda temporada da série, que explora os anos Vogue da cultura e o impacto dos mesmos no estado de espírito da comunidade. No primeiro episódio da mesma, ao ouvir a voz da rainha pop dizer a todos que estava na altura de get up on the dance floor and vogue, a personagem Blanca (interpretada por Mj Rodriguez) diz: “A Madonna está a pôr um holofote brilhante em nós. Tudo está a mudar. E isto é apenas o início.” 

Será que José sentiu o mesmo? “Sem dúvida. Quando a Madonna pôs este movimento em primeiro plano eu pensei: ‘Uau, é agora. Daqui vamos para o Lincoln Center.’ Aquilo que ela fez foi dar ao voguing uma plataforma para que todo o mundo visse. E isso foi uma coisa fantástica. Honestamente, se não tivesse sido ela, quem mais poderia ter sido? Ela é a rainha da nossa comunidade, e lutou por nós com uma força imensa, numa altura em que mais ninguém estava disposto a fazê-lo.” 

Na última das minhas muitas questões a Gutierrez faço-lhe chegar a seguinte resposta da realizadora de Paris is Burning, quando questionada sobre o propósito do mesmo pela Interview: “Dar às pessoas neste filme uma oportunidade de dizerem aquilo que tinham a dizer como indivíduos e em nome da sua cultura.” Pergunto-lhe se este lado ativista é importante. “Sim, sem dúvida! Sendo um homem gay dos ghettos de Nova Iorque, soube desde o primeiro dia que as probabilidades estavam contra mim. Eu tenho uma responsabilidade para com a minha comunidade. Vou continuar a liderar e a lutar pelos meus. Pelos nossos. Vou continuar a ser esse pilar para a minha comunidade.”

Artigo originalmente publicado na edição de outubro de 2019 da Vogue Portugal.

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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