Gorda. Esquelética. Uma tábua. Boazona. Não interessa o tipo de corpo, se não vive numa gruta ou tem Internet já sofreu body shaming. E o mais provável é que também já o tenha feito (a começar por si própria).
Gorda. Esquelética. Uma tábua. Boazona. Não interessa o tipo de corpo, se não vive numa gruta ou tem Internet já sofreu body shaming. E o mais provável é que também já o tenha feito (a começar por si própria).
Primeiro era demasiado gorda. Matulona, desproporcional. Depois passei a ser “magra demais”. Agora preciso de ir ao ginásio. No que toca ao meu corpo, ao nosso corpo, a sociedade é como um bom capricorniano: nunca está satisfeita. E não tem problemas em demonstrá-lo. Mas também, porque haveria eu de ser poupada se até Rihanna já passou de deusa do corpo de sonho a possível grávida de cinco meses, tudo na mesma semana? Um estudo recente do FitRated descobriu que o body shaming (“comentários e atitudes inapropriados e negativos sobre o peso ou tamanho de alguém”, define a bodyshaming.org, ou bullying, por outras palavras) afeta toda a gente – homens e mulheres, muito embora nós sejamos as privilegiadas, claro (e as que demoram mais tempo a esquecer aquele comentário que um namorado nos fez aos 15 anos sobre as nossas pernas, de cada vez que vestimos uma minissaia). Junte a isto tudo uma tecnologia que nos permite fazer o que quisermos sem mostrar a cara e boom – bem‑vindos ao mundo encantado de “o teu corpo é da minha responsabilidade”.
E essa é logo uma das premissas mais questionáveis do body shaming (e uma das mais irritantes): desde quando se tornou permitido comentarmos livremente a fisionomia de alguém? Dificilmente vamos opinar sobre o seu estado amoroso ou as suas condições financeiras, mas livre-se de perder três quilos e não ouvir logo um “está mais magra, não está?” do Manuel da contabilidade (aquele cuja interação mais próxima foi um “está à espera de usar a impressora?” há três semanas). As razões divergem. Primeiro, pelo óbvio: qualquer alteração corporal está visível aos olhos dos outros. Depois, “na sociedade atual, cada vez mais a imagem física é reforçada e é exigido um corpo bonito, jovem e treinado. Um corpo que deverá responder aos parâmetros estéticos correntes. É aceite que se critique a outra pessoa em termos corporais, quando não estiverem dentro deste cânones físicos exigidos”, diz Célia Francisco, psicóloga clinica. Ok – então se tivermos um six pack, as coxas não balançarem ao sabor do vento e os glúteos forem hirtos e firmes como uma barra de ferro, ninguém nos irá apontar o dedo. Só que experimente ir ao Instagram de algumas das mulheres mais reconhecidas de Portugal e verá que o body shaming é tão consensual quanto uma coleção da Prada: há algo para todos os gostos.
Confessemos: este é o tipo de comentários que qualquer mulher não gostaria de ouvir. Não: este é o tipo de comentários que qualquer mulher não gostaria de ouvir a dias de ser mãe. Demasiado mau para ser verdade? Entre no Instagram de Carolina Patrocínio e verá que ela é mais bem servida no que toca a comentários negativos do que em barritas da Prozis (#notanad). Imagino ao vivo. “Nunca ao longo da minha carreira, e comecei aos 16 anos e hoje tenho 30, tive qualquer abordagem pessoal em que me fosse dito algum tipo de comentário depreciativo sobre o meu corpo ou o meu aspeto físico. Isto é um fenómeno que se esgota na comunicação da rede social em questão, o Instagram”, diz Carolina.
Surpreendido? Nós também não. Carolina não consegue muito bem perceber aquilo que move os seus haters (refere que Portugal é um País conservador e que “parece que tinha de ir presa por ter demonstrado alguma vaidade durante a gravidez”), mas consegue observar que muitas vezes duas fotografias com um espaço de horas recebem um feedback completamente diferente. “Eu se quiser fazer uma fotografia em que pareça musculada, consigo fazê-la em ambiente de ginásio ou depois de algum tipo específico de treino. Se eu aparecer nos Globos de Ouro com a maquilhagem, o cabelo, um vestido, ninguém diz que estou demasiado magra ou musculada. O que separa estas fotografias? Nada. Mas a primeira é uma fotografia que está a receber um destilar de ódio e a segunda não. É um tipo de linguagem que provoca este tipo de situações. Mas cabe-me a mim saber que este tipo de comentários tem a importância que nós lhe dermos. Sabendo isto, tudo é mais fácil.”
Mais fácil, sim – mas não menos incomodativo. Os comentários negativos podem ter uma força esmagadora direta na nossa autoestima, como confirma Célia. “A segurança que tenho aos 30 anos não a tinha aos 18 ou aos 19”, confessa Carolina. “Quando tinha 20 anos, a Maria Rueff fazia um programa sobre figuras públicas e houve um episódio que foi sobre mim. Ela gozava com o programa que eu fazia na altura, que era uma espécie de diário no Fama, e ela pegou naquilo, legitimamente, e gozou. O que verdadeiramente me magoou não foi ela estar a brincar com o registo do programa. É que ela imitava-me a andar com as pernas arqueadas que eu tenho e sempre terei, e é uma coisa com que hoje vivo bem, mas acabou por de forma inocente me magoar. E isso pode destruir uma pessoa que está sozinha. Eu felizmente nunca tive, mas nunca sabemos o que se passa e quando digo que não me afeta não gosto de desvalorizar a questão. Já passei por isso e poderei ajudar outros que não conseguem criar esta capa, por falta de bases, de amor, de ajuda ou de pessoas que lhes digam que não interessa nada. Quando me perguntam como consigo não me ir abaixo com estas coisas, em grande parte é uma questão de amor, de uma pessoa sentir-se amada desde cedo, de não ter problemas de autoconfiança e de me terem incutido autoestima. Mas nisso nem toda a gente está em pé de igualdade.” Para Carolina, o seu trabalho antibullying, ou antibody shaming, começa em casa, com as suas filhas (além de ter jurado a si mesma nunca ficar refém dos comentários). Mais do que ensiná-las a pousar os talheres, a apresentadora esforça-se por lhes dar algo com mais alimento, um boost de confiança.
A psicóloga corrobora a ideia: “Se tivermos pais e uma família positivos e reforçadores, crescemos com amor e com uma visualização positiva daquilo que somos como pessoas. Aprendemos que não somos perfeitos, que podemos errar, mas gostamos de nós e valorizamos constantemente a pessoa que somos, apesar das imperfeições” – ou até as imperfeições.
“Jéssica: se queres desfilar em beachwear, faz mais abdominais e controlo nesses hidratos de carbono.” Outubro de 2014. Jessica Athayde incorporava o batalhão de modelos que desfilava para a Cia. Marítima na ModaLisboa, a convite da marca. Até aqui tudo certo. E depois surgiu o comentário acima. E outro, e mais outro, numa espécie de “quem conta um conto acrescenta um ponto” versão ‘quem vê a fotografia acrescenta um defeito”. A história é sobejamente conhecida. Jessica respondeu no seu blogue e o ódio transformou-se numa corrente de apoio e amor que abriu portas à atriz para falar sobre os problemas alimentares que sofreu na adolescência e início da vida adulta. Os problemas com que se depara cada vez que o espelho lhe responde com um “estás mais gorda”, como aqueles comentários de há quatro anos.
“As pessoas acham que podem dizer tudo o que querem, sem pensar muito bem nas consequências que isso pode trazer à outra pessoa. Tu nunca sabes o que a outra pessoa está a passar. E as palavras são poderosas. Há pessoas que conseguem geri-las de forma a que não as afete, mas nem toda a gente é de ferro. Eu ouvi várias vezes: estás magra demais ou estás com um ar doente. Fica-te mal na cara. Comentários de pessoas que não sabiam o que eu estava a passar.” Aquele homem que está acima do peso? É um pai de família extraordinário, diretor de uma empresa, e não arranja tempo nem agenda para ir ao ginásio ou ter refeições decentes. Aquela miúda que é demasiado magra? Pode estar a tentar ganhar peso há meses sem sucesso. Jessica Athayde? Era a sua própria bully. “Nós somos as nossas maiores inimigas”, diz. “Se o episódio da ModaLisboa tivesse acontecido 10 anos antes teria sido horrível. Hoje olho para essas fotografias e tenho o maior orgulho. Tenho estrias e celulite, mas é o meu corpo. E sou feliz assim.” As modelos sofrem porque dizem que não comem. Quem anda no ginásio é obcecado pelo corpo. Quem tem peso a mais é porque não se cuida e não é saudável, enumera Jessica. “Preferia ter o corpo da Jessica ao dos esqueletos das passerelles”, lia-se entre os comentários de apoio em 2014. O que nos leva a outra importante lição a retirar desta história. Se quer criticar body shaming, por favor não faça através de... body shaming.
“Já perdi a conta às vezes que me mandaram ir comer um hambúrguer, que me chamara anorética ou esqueleto, etc. Tantas foram as vezes que se calhar já devia estar habituada, no entanto, sempre que leio essas palavras dói”, escreveu Sara Sampaio no seguimento do episódio ModaLisboa no Facebook. “Aquele slogan de ‘a mulher verdadeira tem curvas’ sempre me aborreceu. Desculpem, e agora vou ser um pouco rude, mas a mulher verdadeira, como eu aprendi, tem uma vagina.”
“As mulheres são más umas para as outras”, diz Jessica. “Mesmo depois daquele comentário continuo a receber outros. É importante tornarmo-nos solidárias umas com as outras”, até porque já bem nos basta termos todas as outras estatísticas contra nós.
Da próxima vez que for soltar um “estás tão magra”, pense no seguinte: Beyoncé não aprovaria.
"Não tens corpo para usar calças brancas.” “Foi um post que fiz há uns três anos. Falei de calças brancas e fui totalmente ‘morta’ por duas ou três pessoas. Claro que não podia usar calças brancas porque não era A Pipoca Mais Doce e nem outra blogger que não me lembro.” Pense em influencer e o seu cérebro inunda-se de imagens de comida de fazer salivar, um arsenal de produtos de Beleza, um feed de uma vida tão perfeita que nenhum dos nossos filtros será capaz de igualar. Esta imagem não inclui as 374 fotografias que RIP no rolo da câmara, os dias em que também não têm nada para vestir, os desgostos, as dúvidas, as críticas. Mas porque é que seguimos alguém em primeiro lugar? Mafalda Beirão tem mais de 20 mil seguidores e suponho que uma larga fatia se deixe “influenciar” pelo seu discurso body positive. “Essa exposição e abertura com o desconforto surgiu de uma série de situações em que me senti frustrada. Marcas com as quais saí prejudicada em relação a outras influencers por causa da minha imagem física. Ir a eventos e tirar fotografias com o resto das bloggers e achar que estava desenquadrada. Foi um acumular e foi por isso que o expus. A partir daí a coisa quase que se inverteu. Hoje em dia tenho miúdas que dizem: ‘Graças a ti já fui capaz de ir buscar aquela saia, percebo que não tenho de usar roupa superbásica e que há espaço para mim nas lojas.’ É claro que eu sei que há peças que não me vão ficar bem, não porque a sociedade diz, mas porque me sinto desconfortável. É uma questão de conforto e de autoestima.”
Autoestima, essa espinha entalada. Foi cedo que Mafalda começou a sentir-se diferente. Menos magra do que as amigas. Menos bonita. Menos engavetada nos padrões de Beleza. “Foi um caminho que percorri e ainda o faço todos os dias. Existem todos os corpos possíveis e imaginários e não é usar um 44, por exemplo, que faz de mim mais ou menos que qualquer outra pessoa. Tenho quase a certeza de que as pessoas para as quais comunico não têm o corpo de uma modelo ou da maioria das pessoas que idolatram no Instagram. Claro que me sinto feliz por fazer parte desta fatia diferenciadora. Se é uma posição fácil e se me apetece sempre fazê-lo? Não. Porque também tenho dias em que odeio o corpo em que estou.” E é nesses dias que os comentários negativos a magoam e destabilizam. É um dedo na ferida (um estudo publicado no jornal da The Obesity Society, diz que as pessoas que estão a lutar contra o excesso de peso são estereotipadas como preguiçosas, incompetentes, pouco atrativas, com falta de força de vontade e são culpabilizadas pelo seu corpo. E o que acontece quando as pessoas se sentem envergonhadas pelo seu peso? Evitam o exercício e consomem ainda mais calorias para lidar com o stress).
“E depois, há uma coisa que me faz muita confusão. No outro dia publiquei uma foto frente ao espelho e recebi imensas mensagens a perguntar ‘o que estás a fazer? Estás mais magra? Estás bem?’ e eu respondi ‘não, eu sei os meus ângulos, truques’ e quase inevitavelmente a resposta foi ‘estás tão gira’. Porque é que o estás mais magra tem de ser um elogio e gorda uma ofensa? Eu conheço pessoas que tratam as amigas por gorda ou gordinha. Porque tem de ser uma forma carinhosa de tratar alguém quando para algumas pessoas é incomodativo? Se tu já tens body issues basta uma coisinha e é o suficiente para te marcar.”
Privilegiar saúde e bem-estar – não ao peso, não à imagem, não à cor de umas calças. “Cresces a pensar que o que aparece na revista ou na televisão é que é o bom e correto e que toda a gente deve ser assim. É uma questão de educação. Acho que estamos a caminhar para lá. Se eu conseguir contribuir para isso e influenciar nem que seja 10 pessoas, já fui feliz. Porque já sei que aquelas 10 pessoas já vão ser um bocadinho mais felizes e mais tolerantes com o que há à volta.” Calças brancas incluídas.
*Artigo originalmente publicado na Vogue Portugal de julho 2018.
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