Se há coisa que o cinema tem de bom é dar-nos a conhecer mulheres como Vicky Krieps.
Se há coisa que o cinema tem de bom é dar-nos a conhecer mulheres como Vicky Krieps.
Vicky Krieps é Alma em Linha Fantasma © Focus Features
Vicky Krieps é Alma em Linha Fantasma © Focus Features
A forma como Anderson nos apresenta o amor nesta bandeja de espinhos é tão dilacerante, e alheia, e expetacular, e complexa, e estragada, que pode muito bem ser o mais perto que já encontrámos de um retrato ultrarrealista do que é amar. Com ou sem veneno. E Vicky Krieps é tudo isto e ainda mais, numa complexidade limpa e despojada de quem diz o que pensa sem filtros. A honestidade desarmante é sempre o melhor cartão de visita.
Ouvi dizer que há uma história engraçada por detrás da audição para este filme.
Eu não esperava nada como um email do Paul Thomas Anderson. Quando recebo emails destes, quero ter o máximo de atenção ao guião, por isso não leio nomes porque não quero ser induzida em erro quando penso nos nomes, quero que as palavras falem por elas próprias. É isso que eu faço, e foi isso que fiz neste caso. Tive uma ligação muito forte com este texto, tão forte que ia a caminho de Berlim, no autocarro, e pensei “ok, assim que chegar vou gravar isto”, e gravei, mas, por alguma razão, não voltei atrás para ler o email, provavelmente estava ocupada com outra coisa (risos). Depois, quando a minha agente me ligou para dizer que o realizador tinha ‘ficado muito, muito contente e está a pedir o teu número de telefone’ e eu disse ‘tudo bem’, mas como eu estava tão calma ela disse ‘Vicky? Sabes de quem estamos a falar?’ e eu ‘Oh não, tens razão, eu não li o nome, é um filme de estudantes em Inglaterra, certo?’, porque, pelo meio, a minha mente tinha construído isto, os meus olhos tinham passado pela palavra Londres e não era um guião completo, era só um extrato, um pedaço de monólogo, pensei que alguém ainda estava a acabar o guião, ou a fazer uma curta, e foi assim que aconteceu.
Como é que ele a encontrou?
Ele viu um filme chamado The Chambermaid, é um filme alemão do Ingo Heab, e ele adorou o filme, viu-o duas vezes, e foi por isso que me pediu para fazer a audição. Muito simples.
Mas é um filme alemão muito pequeno, como é que ele o encontrou?
Ele viu-o no iTunes. Essa é a melhor coisa sobre isto tudo, e é a melhor coisa na minha história, e é a história que eu gostaria que alguém me tivesse contado. Todas as pessoas me diziam que, enquanto atriz, eu ia ter de ir a eventos, e eu não queria, eu não aceitava isto, eu queria só fazer o meu trabalho e o meu trabalho vai levar a mais trabalho. Não vou ter a minha foto tirada numa estreia de um filme que não é meu, só para aparecer, porquê? Por isso eu ultrapassava o photocall. E vocês não me conheciam antes, por isso eu era muito boa nisto (risos). É verdade, eu acreditava mesmo nisto. E não é fácil acreditar nisto. No nosso mundo, as pessoas dizem-nos muitas coisas, e é um mundo muito superficial de muitas formas. Quando eu soube que ele tinha visto o meu filme, que até na Alemanha as pessoas tinham ignorado, para mim foi uma maravilha.
O que é que a moveu para este trabalho? Porque é que quis ser atriz?
Acho que queria ser atriz antes de saber que queria ser atriz. Sou do Luxemburgo, e quando és de um lugar pequeno, é muito difícil acreditares em ti no que toca a algo como a arte. Nunca me atreveria a pensar que me tornaria numa atriz. As atrizes, para mim, vinham de Paris, ou de cidades grandes, não de Hesperange, Luxemburgo, que é em lado nenhum. Não consigo dizer o que é que dentro de mim me levou a isto, talvez porque eu sempre fui muito curiosa por pessoas, e pela vida. Vejo-me como uma cientista interessada na natureza humana, a compreendê-la, porque é que estão a fazer aquilo? Como é que o estão a fazer? Comove-me tanto como é que os humanos são tão doces, têm a sua pequena sala com aquele candeeiro, e o outro tem aquela mesa, como é que fazem a sua vida, todos os dias, acordam de manhã e têm uma vida, sabes? Acho tão fascinante, posso pensar nisto durante horas, e talvez seja por isto que me tornei atriz. Para compreender as pessoas, e como as pessoas se entendem a si próprias.
É verdade que não conheceu o Daniel até ele estar caracterizado no set?
Conheci-o uma vez antes, no Covent Garden Hotel, para fazer uma leitura do guião. Foi no fim de junho, e não o vi outra vez até estarmos no set. Disseram-me que era assim que ele queria trabalhar, e eu aceitei-o como uma oferta. Não sabia o que estava para vir, mas sabia que tinha de estar preparada de uma maneira para a qual não te podes preparar. Por isso decidi não me preparar e ser uma tela em branco, onde a história se pudesse desenhar, e tentei esquecer-me do que gostaria de atingir num filme, no que gostaria de atingir a trabalhar com alguém como o Daniel Day-Lewis, esqueci-me de quem ele era, ou quem era suposto ele ser. Mas aquela reunião, a primeira, não acho que tenha sido desimportante. Lembro-me que, nesse dia, estávamos os três, eu, o Paul e o Daniel, e foi importante para mim, pelo que sou, por onde venho, que tivéssemos a sensação que algo era óbvio naquela reunião, quando lemos o guião parecia que o filme estava na sala. Usei isto, claro, para me dar força e coragem, a pensar ‘Ok, talvez eu consiga fazer isto’.
O que é que achou mais difícil de compreender na Alma?
O amor dela pelo Reynolds (risos). Mas essa foi uma grande oportunidade para entender a natureza humana, e como é que funciona, o que é o amor. O amor nunca te pede para vir, ele simplesmente vem. Não vem para te fazer sentir bem, ou confortável, apenas vem - e é maioritariamente desconfortável, e inconveniente e nunca no momento certo. Aprendi muito sobre isso, a tentar entender a Alma. E, claro, compreender porque é que envenenas alguém se o amas. Ou porque amas alguém, envenena-lo. Isto tive de entender. E acho que nunca entendi bem, no fim. Acho que o Paul, quando o escreveu, não o fez para que o entendêssemos, ou para alguém entender, talvez nem ele entenda. Porque o amor não é algo para ser entendido. Sobre o que as pessoas lutam, ou que jogos jogam, ou que fetiches têm, ou o que somos… toda a gente é diferente e toda a gente deve ser diferente.
Descobriu quem era a Alma, o quão similar é de si, ou o quanto se afasta de si?
Acho que tenho a mesma força de vontade, e tenho a minha própria opinião, e gosto de ter a minha própria opinião. Acho que isso foi o que eu dei à Alma, e que ela talvez não tivesse no início, não tão determinadamente. Tive de realmente compreender como é que ela ama este homem, ser tão paciente, ficar tão quieta, usar os seus vestidos e ficar tão feliz, uf… eu não estaria quieta durante dois minutos, tenho sempre de me mexer, tenho sempre de fazer qualquer coisa.
A Vicky sempre teve força de vontade, aquele discurso que deu quando deixou a escola, a dizer que não gostava do sistema de educação no Luxemburgo.
(risos) Sim, sim, sempre fui assim. Mas sabes, o meu avô, também era assim, acho que fiquei com isso dele. A verdade é que a maior parte das pessoas sofre no liceu, honestamente, e o nosso sistema de educação é muito antigo - agora mudou, felizmente, mas quando eu estava na escola era maioritariamente baseado no século XIX. Era decorar, mesmo que não entendesses. É claro que eu era contra isto, como toda a gente era. Quando eles me estavam a dar aquele diploma eu senti-me tão falsa, era mentira se chegasse lá e só dissesse ‘Obrigada’. Era mentira! Por isso pensei que tinha de dizer alguma coisa, mas o que é que eu podia dizer? Foi só no local que eu me lembrei das palavras. Peguei no diploma e disse ‘Bom, gostava de agradecer a toda a gente por ter aqui a prova que sei decorar, copiar, e calar a boca.” Foi tudo o que fiz, mas foi o suficiente para criar polémica no Luxemburgo.
Foi pelo seu discurso que mudaram o sistema.
(risos) Quem me dera, quem me dera. Há algumas pessoas que dizem que sim, que há uma nova escola, mas eu não acho.
Quão importante acha que foi fazer da Alma uma imigrante?
Absolutamente importante. Acho que é uma das coisas mais importantes. Quando eu estava a tentar compreendê-la, como é que ela podia ser tão forte, como é que ela podia ser tão contida, estas coisas todas ao mesmo tempo, uma rapariga, mulher, tão boa, tão humilde, mas tão forte… virei-me e olhei para trás, porque não conseguia encontrar nada à minha volta, e encontrei as minhas avós, que já morreram, e tudo o que tive de fazer foi perceber alguém que tinha vivido na guerra enquanto menina, vendo pessoas morrer à sua volta, ter de deixar o seu país, ir para um lugar novo, ser uma imigrante, começar do zero, nos anos 50, porque a mãe dela morreu, ter de cozinhar para o seu pai, o irmão, as irmãs, lavar a roupa, sair, trabalhar numa casa de chá, voltar e fazer tudo outra vez. Milhares de mulheres têm feito isto nos últimos séculos. E eu percebi o quão fortes estas mulheres eram e são, e o quão forte a Alma conseguia ser, e que esta força não precisa de reconhecimento, não precisa de aprovação. Quando estava à procura do nome, encontrei Alma porque significa alma, mas também porque eu e o Paul falámos da mulher do Hitchcock, que se chamava Alma, e eu vi este vídeo no Youtube em que ele ganha o Lifetime Achievement Oscar, e ele levanta-se da mesa, e acho que é a primeira vez que ele fala nela, e agradece-lhe à frente das pessoas. Se vires a cara dela, percebes que ele provavelmente nunca lhe disse ‘obrigado’ uma vez. Obviamente nunca em público, talvez nunca em privado. Esta mulher é a essência da humildade, e consegues perceber que ela lhe tem dado toda a energia que ele precisa para ser quem ele era. E vês isto naquela pequena cena.
O que é que sentiu a experimentar todos aqueles maravilhosos vestidos que ele fez para a Alma?
A primeira prova de guarda-roupa foi em novembro. Eu não sou uma rapariga que use muitos vestidos. Quando eu era pequenina, a minha mãe era uma feminista hippy e eu estava sempre descalça, sempre descalça, sempre de cabelo curto. Tive de encontrar o meu caminho nisto. E também quis que a Alma tivesse um bocadinho da minha experiência, pensei que era bom para ela, que isto não devia ter aquele efeito Disney de ‘Wow, ela está tão perfeita no vestido’. Quando fizemos os fittings, eu recusei-me a ver-me no espelho. E agora arrependo-me porque algumas das toiles nunca se chegaram a tornar vestidos, e eram tão bonitas, e nunca me vi nelas. Mas foi o maior desafio que já tive até hoje, mas também foi o maior dom, porque era algo que eu podia explorar, aprender, encontrar o meu caminho até, e dentro de, e através de, e com.
Ficou com algum dos vestidos?
Não. Podia ficar com algumas roupas do dia-a-dia, mas as peças de couture eu não quereria ficar porque são como personagens. São mesmo. Porque trabalhei tanto com elas, falávamos sobre o vestido branco de renda rosa, o de renda preta, ou o de passagem de ano. O vestido com que danço na passagem de ano, só o usei ali, foi feito para aquele momento. Em todos estes momentos estes vestidos foram tão importantes, tenho uma relação muito grande com os eles também.
Esteve envolvida na criação dos vestidos?
Envolvi-me eventualmente, sim. No início, não. E nem sei se era suposto, mas tornou-se algo em que gradualmente eu ia dizendo ‘Acho que nesta cena preciso de sapatos rasos’, e davam-me sapatos rasos, porque eu sabia que eventualmente iria ter de correr ou assim. E à medida que fui conhecendo o Reynolds percebi que podia ir dizendo ‘Vai estar frio, podias dar-me um casaco’, sabes? Fui percebendo-o, e o que um vestido significava para ele, porque não há nenhuma cena de amor, ou de cama, por isso tudo o que tínhamos sobre este tópico, toda a comunicação era feita através da roupa. O que é que eu estava a usar, como é que estava a usá-lo. Eu usava isso para comunicar com ele. Foi aqui que comecei a ter o meu próprio diálogo com a figurinista. Os vestidos que agora são mais vistos, como o do poster, só existem por causa deste diálogo. Houve um momento em que me perguntei ‘Porque é que não temos um único vestido sem ombros? Porque é tão anos 50 e tão bonito’. Então fui ter com a costume designer e perguntei porque é que as mulheres no filme estavam sempre tão tapadas. ‘É por causa do Reynolds, ele não gosta, acha vulgar’. Por isso fui, enquanto Alma, ter com o Reynolds, e perguntei ‘Então achas que estes vestidos são vulgares? Eu acho que eles são tão bonitos, bla bla bla’, e ele disse ‘Não, eu não disse isso. Talvez o tenha dito, mas não é verdade para ti.’ Então eu voltei à costume designer muito contente, ‘Ele disse que sim!’. E usámos dois vestidos, o cor de rosa com a renda, e o verde.
Como é que é trabalhar com o Daniel, de perto, e vê-lo habitar uma personagem como o Reynolds?
No início, na verdade, eu estava muito intimidada. Por isso tentava estar no momento e encarar tudo com normalidade e naturalidade, não me questionar constantemente ‘Este é o Daniel Day-Lewis’, só aceitá-lo. É este tipo, e é assim, e é o Reynolds. Tentava pensar apenas no Reynolds. Mas agora, nas entrevistas, percebi que trabalhar com ele no filme foi totalmente fascinante, porque pude observar alguém que estava tão no seu tempo, podia ouvi-lo durante dez horas seguidas e ele contava-me sobre Londres, quando ele era uma criança - e isto era a experiência do Daniel, claro, mas era muito próxima à do Reynolds, porque estávamos nos anos 50 -, falava-me sobre a Inglaterra, sobre os anos 50, sobre a cultura, sobre todas estas coisas, e eu podia observar o quanto ele era meticuloso na sua forma de ser este couturier, como é que ele pegava na agulha, como é que ele a movia, a sua linguagem corporal era tão interessante de ler, porque eu podia ver o quão diferente era de como ele normalmente andaria. Tudo à volta dele tornou-se tão interessante, nunca estive sequer perto de estar aborrecida.
É estranho estar com ele agora?
Não, é muito bom, porque vejo que ele é muito mais divertido, parece ter menos 50 anos.
Como é que vê a relação da Alma com a Cyril?
Isto é algo sobre o qual nós não falávamos. Eu e a Leslie não falávamos sobre isto e tudo cresceu durante o filme. Enquanto filmávamos, havia, aqui e ali, um olhar. E estes olhares tornaram-se mais, e nós começámos a torná-los maiores, e foi assim que a relação cresceu. De repente, conseguia vê-la começar a gostar de mim, podia vê-lo, e senti-lo, mas nunca falávamos disto. Foi muito bonito.