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Loucas por compras

17 Aug 2020
By Mathilde Misciagna

Será que as compras se podem apoderar de nós ao ponto de nos levar à “loucura”? Saiba que há uma perturbação da psique que justifica esse sentimento. A Vogue foi investigar com a seriedade que o assunto merece.

Será que as compras se podem apoderar de nós ao ponto de nos levar à “loucura”? Saiba que há uma perturbação da psique que justifica esse sentimento. A Vogue foi investigar com a seriedade que o assunto merece.

©Getty Images
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Louco: “que tem um comportamento absurdo, excessivo, contrário ao bom senso ou ao que é considerado razoável; descontrolado.” in Dicionário Priberam da Língua Portu- guesa. Porque é que cabe às mulheres o papel de loucas por compras? Vivendo numa sociedade de consumo, é razoável que o indivíduo, independentemente do sexo, sucumba com facilidade ao desejo de comprar. Na ausência de uma religião unificadora da sociedade, a compra é, desde a segunda metade do século XX, algo sagrado e, enquanto ato social simbólico, assume hoje em dia uma importância quase vital para o indivíduo. Não é a necessidade do objeto em si, mas a da realização do ato. A compulsão pela transação. A realização pessoal através desse gesto. Tem-se vindo a observar que a necessidade de consumir, mesmo durante a pandemia, fez disparar as vendas online de uma forma nunca antes observada. No meio da preocupação com salários e desemprego e considerando a hipótese de os trabalhadores na linha da frente ficarem infetados pelo simples facto egocêntrico de querermos uma blusa nova (ainda mais para ficar em casa), justificar este tipo de “necessidade” tornou-se difícil. A palavra “essencial” tem vindo a ser tão usada desde o início desta situação que comprar mais um vestido desencadeia um diálogo de consciência mais ao menos nesta linha: “Isto é essencial agora?” E obviamente que a resposta é sempre não. Economia de sensações A Moda, segundo Gilles Lipovetsky, filósofo que a analisa como tendência histórica e os seus efeitos a longo prazo, já não está apenas circunscrita à roupa ou à música. Infiltrou-se no mundo da produção. Os smartphones, os automóveis, o turismo, ou até mesmo os produtos alimentares, obedecem hoje a uma lógica de Moda. Isto é, de renovação acelerada e perpétua, de mudança. Dito de outro modo, a Moda está hoje no coração do capitalismo do consumo. Não é algo periférico, mas sim algo central que transforma os nossos modos de vida e de consumo. O monótono é aborrecido, por isso é preciso mudar constantemente, produzir novo e consequentemente comprar novo. Ao renovar a estética dos objetos, as empresas estimulam os desejos das pessoas, o desejo de mudar – de comprar. A Moda é tudo aquilo que nos trouxer desejo de possuir ou de querer viver. A questão que se coloca então é se serão os objetos centrais na busca de felicidade. Vivemos numa sociedade em que a publicidade parece dizer-nos que a nossa felicidade depende da viagem que vamos fazer, da casa que vamos comprar, do próximo automóvel que vamos ter, do vestido que reflete a última tendência... Os objetos proporcionam-nos pequenos momentos de felicidade. No momento em que (os) compramos é possível que sintamos que há uma preocupação que desaparece. Há, para todos os efeitos, uma relação entre o consumo e a satisfação. Mas a ilusão reside na crença de que é na compra permanente que preenchemos a nossa vida. Os objetos tomam uma tal proporção na sociedade que a ideia da privação dos mesmos nos impossibilita de viver. Não é a simples posse dos objetos que nos traz felicidade, mas sim o contrário, ou seja, a impossibilidade de aquisição de determinado objeto que nos pode tornar infelizes. O capitalismo desenvolveu então, segundo Lipovetsky, o que podemos chamar de “mercados da sensibilidade.” Vemos que a economia nos dias de hoje já não é só uma economia de produtos úteis, mas uma economia de sensações. É evidente que o indivíduo não se reduz a um mero consumidor, mas o consumo não cessa de ganhar importância crescente na nossa vida – que se torna cada vez mais materialista, afetando cada vez mais o nosso comportamento. “É certo que cuidarmos de nós é fundamental na relação que estabelecemos connosco e com os outros. Em determinados momentos poderá ser positivo ir ao cabeleireiro, fazer uma massagem ou comprar uma peça de roupa”, denota a Prof.a Doutora Ana Paula Amaral, especialista em psicologia clínica e da saúde e psicoterapeuta cognitivo comportamental. E acrescenta: “Porém, o autocuidado relaciona-se com a nossa capacidade de cuidarmos de nós, relativamente ao nosso bem-estar físico e mental e não depende, em exclusivo, das compras que fazemos. Há muitas formas de investir na autoimagem, algumas saudáveis, outras menos saudáveis. Há pessoas que vão às compras todos os dias e continuam com uma baixa autoimagem e baixa autoestima. Há pessoas que apenas vão às compras quando precisam e têm uma boa autoimagem e elevada autoestima. A perceção que temos de nós próprios e a estima que temos por nós próprios dependem mais de fatores intrínsecos do que extrínsecos, como ‘ir às compras’. Há pessoas que nunca se sentem bem ou bonitas, independentemente da roupa que vestem!”  Quando pensamos no termo shopaholic, é provável que nos venha à memória a imagem de Isla Fisher na pele de Rebecca em Confessions of a Shopaholic ou mesmo de uma colega de trabalho cuja secretária está sempre cheia de caixas e caixinhas de todas as lojas e mais alguma. Uma coisa é certa, para quem sofre desta perturbação do comportamento, a realidade é muito menos atraente do que a versão hollywoodesca interpretada por Fisher. Os chamados shopaholics sofrem na verdade de oniomania ou incapacidade de comprar de forma moderada. A perturbação foi descrita pela primeira vez em 1924 pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin, a quem é atribuída a primeira referência clínica aos maníacos por compras. Numa primeira abordagem, este comportamento pode ser visto como uma rotina inofensiva, porém, trata-se de um transtorno com o qual a pessoa não consegue lidar sozinha. Embora possa parecer uma adição mais trivial, quando comparada com toxicodependência ou álcool, por exemplo, Ana Paula Amaral realça a importância da procura de ajuda especializada: “No caso das compras excessivas estarem associadas a quadros ansiosos e/ou depressivos é fundamental a procura de ajuda, dado que é essencial o tratamento da perturbação associada. Por último, quando se trata de um comportamento compulsivo é muito importante que a pessoa procure ajuda profissional especializada, dado que é uma situação que não consegue resolver sozinha. Nessa situação, a pessoa não consegue controlar o seu comportamento, comprando mais do que pode ou precisa e apesar do ato de comprar compulsivamente aliviar momentaneamente a ansiedade, também origina sofrimento emocional (por exemplo, culpa e vergonha) e interfere no funcionamento social e ocupacional, muitas vezes resultando em problemas financeiros.”  Normalmente a compra serve para mascarar uma emoção negativa proporcionada por uma frustração, funciona como um shot de prazer ou “compensação relativamente a uma sensação de ‘vazio’ que não conseguimos preencher. Muitas vezes por excessiva dependência da opinião dos outros e baixa autoestima, aliadas à facilidade com que ‘se compra e deita fora’, na sociedade de consumo em que vivemos”, refere a especialista. As pessoas que sofrem deste distúrbio comportamental vão às compras sozinhas, por vergonha da sua impulsividade e mentem sobre os valores gastos, escondendo também os sacos para evitar julgamentos. Estão frequentemente preocupadas com compras de uma forma geral e dedicam uma quantidade de tempo significativa a este hábito. Muitas reportam uma sensação de urgência, euforia ou ansiedade, que só pode ser aligeirada no ato da compra – que lhes provoca uma excitação intensa, quase sexual. O que move o comprador compulsivo não é o artigo adquirido, mas o ato em si. Segundo a investigadora entrevistada pela Vogue, “quando compramos algo que satisfaça uma necessidade, algo que desejamos há muito (para nós ou para outros), é normal sentirmos prazer com a realização da compra. Quando a compra é compulsiva, à semelhança de outras compulsões (por exemplo alimentar), é seguida de vergonha e/ou culpa.” A culpa pode ser tão avassaladora que sentem necessidade de comprar novamente. Vivendo num mundo como o nosso, em que as compras são parte da vida, é difícil não alimentar o vício – quando todos os dias oferecem um novo estímulo na forma de adicionar mais objetos ao carrinho (quer este seja físico ou digital). Basta uma reflexão breve para concluir que, ao longo do ano, não existe uma única pausa no que toca ao encorajamento externo para o ato de comprar – quer seja pelo Dia de São Valentim, do pai, da mãe, promoções de meia estação, saldos, Black Friday, Natal, Páscoa, etc. As marcas investiram muito dinheiro na monitorização dos nossos hábitos de consumo, de forma a tornar o ato da compra o mais simples possível. Enquanto que antes teríamos de entrar em diversas lojas para encontrar o vestido ou o casaco perfeito, na cor ideal e dentro do nosso orçamento, as marcas (sobretudo de fast fashion) tentam agora retirar qualquer esforço mental do processo de compra – o que só piora a situação das pessoas que sofrem de oniomania.  É normal ter prazer em comprar? Sim. Comprar algo de que se gosta liberta endorfinas, que causam uma sensação de bem-estar, tal como comer algum alimento que se adore ou ter relações sexuais. É importante distinguir comportamentos excessivos daqueles que decorrem dentro dos padrões considerados normais. Os gastos avultados, mas episódicos, que ocorrem em ocasiões especiais não configuram necessariamente este diagnóstico, principalmente se não estiverem associados à preocupação ou angústia. “Comprar sem necessidade não é saudável, mas pode não ser patológico, depende de vários fatores, entre os quais destacamos a frequência com que esse comportamento ocorre e a incapacidade resultante. Ou seja, se for uma situação pontual que não traga prejuízo pessoal ou financeiro para o indivíduo, não é saudável, mas não se considera patológico”, refere Ana Paula Amaral. O dinheiro é uma questão feminista – e, no entanto, as mulheres ainda sentem relutância em falar sobre o assunto. Na sociedade patriarcal em que vivemos, as mulheres estão programadas para se preocupar mais com todas as compras de uma forma geral: para a casa ou não. Por vezes são também as mulheres que compram as roupas dos maridos e filhos (até muito depois destes ganharem a sua própria independência financeira). E é-lhes transmitido desde muito cedo o gosto por ir às compras com a mãe ou as amigas, transformando o consumo num acontecimento social. Estima-se que esta condição de oniomania afete cerca de 6% da população, sendo que a maioria dos estudos apontam efetivamente para que 90% desta amostra sejam mulheres. Alguns investigadores associam estes resultados a níveis mais baixos de serotonina. Pesquisas sobre atividade cerebral da Utah Valley University, nos Estados Unidos, apontam para uma ligação entre a serotonina e o comportamento compulsivo. Enquanto neurotransmissor à base de aminoácidos, a serotonina ajuda a retransmitir impulsos entre os neurónios no cérebro. Baixos níveis de serotonina têm sido associados a vários distúrbios no que diz respeito ao controlo de impulsos, e o tratamento com medicamentos que aumentem os níveis de serotonina parece aliviar esses distúrbios em muitos pacientes. Para além destes fatores, a Ana Paula Amaral refere que “existem alguns quadros psicopatológicos em que a prevalência é superior no sexo feminino, podendo esta diferença estar relacionada com fatores biológicos e/ou socio ambientais”. Segundo o site da revista Psychology Today, as mulheres são mais suscetíveis que os homens a problemas de saúde mental, nomeadamente a transtornos de ansiedade ou depressão. Isso pode ser resultado de fatores como vulnerabilidade genética, os tipos de traumas que as mulheres experienciam e a forma como lidam com eles e diferenças de processamento cerebral. Embora shopaholic e retail therapy sejam termos muito comuns e usados despreocupadamente, em alguns casos podem banalizar um vício sério. De facto, uma das formas mais preponderantes, embora duvidosa, de self-care é precisamente a retail therapy. Mas toda a narrativa do treat yourself é feita para convencer os consumidores a comprar coisas que provavelmente não precisam ou não podem pagar, tudo em nome da obsessão que a sociedade tem em cuidarmos de nós próprios. A mensagem parece ser: compre para que a sua dor desapareça. Saudável? Provavelmente não. Contas feitas, é verdade que o capitalismo pode criar ou piorar os problemas mais complexos da sociedade, mas também promete resolvê-los – em troca de uma pequena quantia, é claro. Artigo originalmente publicado na edição de julho/agosto de 2020 da Vogue Portugal.

Mathilde Misciagna By Mathilde Misciagna

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