Era uma vez uma década revolucionária, que mudou para sempre a forma como o mundo, principalmente as mulheres, encara a Moda: os maravilhosos, e inesquecíveis, anos 20.
Era uma vez uma década revolucionária, que mudou para sempre a forma como o mundo, principalmente as mulheres, encara a Moda: os maravilhosos, e inesquecíveis, anos 20.
Ilustração de Gerda Wegener © Getty Images
Ilustração de Gerda Wegener © Getty Images
Não foi um adeus às armas, mas quase. Entre 28 de julho de 1914 e 11 de novembro de 1918, a Primeira Guerra Mundial consumiu os esforços, e as esperanças, de homens e mulheres um pouco por todo o planeta: eles, na frente de batalha, elas, no comando do dia a dia, arregaçando as mangas para levar avante as escolas, os hospitais, as explorações agrícolas, o comércio. Quando o conflito terminou, nem eles nem elas eram os mesmos. Eles porque perderam a inocência que uma batalha, mesmo se vencida, sempre acarreta. Elas porque renasceram enquanto membros da sociedade – o mundo voltou costas à guerra, preparou-se para celebrar e começar de novo, mas elas não voltaram à casa de partida, porque a partir de então seriam muito mais do que apenas “domésticas” e “esposas de”.
O facto de terem sujado as mãos durante quatro longos anos deu-lhes a liberdade, há muito ansiada, para disporem das suas vidas, das suas decisões, e dos seus corpos, como bem entendessem. Como explica a historiadora de Moda Jayne Shrimpton no livro Fashion In The 1920s, “o desenvolvimento de um guarda-roupa feminino mais conveniente e moderno foi uma tendência importante da década de 1920 e foi alcançado através da simplificação progressiva do vestuário à medida que a década avançava – uma rejeição da formalidade e das múltiplas camadas a favor do conforto e de um efeito mais natural e mais leve.” Uma rejeição que, sublinhe-se, estava há muito escrita nas cartas. A rebelião visual vivida há cem anos atrás foi impulsionada pela Primeira Guerra Mundial, que obrigou o guarda-roupa a tornar-se mais simples e prático, mas que acabaria por acontecer de uma forma ou de outra. Porque aquilo que as mulheres desejavam, acima de tudo, era um corte com o passado, e a possibilidade de terem uma voz. E foi isso, sem mais nem menos, que a Moda lhes proporcionou.
"Aquilo que as mulheres desejavam, acima de tudo, era um corte com o passado, e a possibilidade de terem uma voz."
Os braços ficaram à mostra pela primeira vez. As pernas mostraram-se tal e qual vieram ao mundo. Os decotes tornaram-se pronunciados. Os tecidos delicados, como a seda, tornaram-se os mais procurados. O chapéu, até então de uso obrigatório, passou a ficar guardado no fundo do armário. Ninguém o decretou oficialmente, mas sentiu-se um burburinho de mudança no ar que empurrou para o panteão da antiguidade tudo o que tinha cheiro a mofo: os espartilhos, os corpetes, as saias compridas, os vestidos volumosos e travados.
A Moda transitava de uma realidade onde tudo seguia uma ordem para um novo cosmos, onde a atitude era assumidamente anything goes, e que acabaria por rotular a década de Roaring Twenties (em português, “loucos anos vinte”): veja-se a ousadia dos cabelos cortados (é aqui que, pela primeira vez, surge o famoso look “à la garçonne”), o brilho dos flapper dresses (vestidos mais curtos, leves e elegantes, com um corte reto que facilitava os movimentos frenéticos exigidos pelo charleston, dança que preenchia as noites longas da época), as bainhas subidas para níveis nunca vistos (no final da década, o criador francês Jacques Doucet teve a indecência de mostrar as ligas rendadas das mulheres), as novíssimas cigarette holders (entre nós conhecidas como “boquilhas”), o batom carmim (não raras vezes em forma de coração), a maquilhagem carregada nos olhos (com especial destaque para as sombras negras), até o apreço por uma nova silhueta, sem curvas, mais “direita.”
Este novo estilo, ou esta nova mulher, encontrou em Coco Chanel o reflexo perfeito de todas as suas nuances. Além dos blazers, dos cardigans, das camisolas inspiradas no vestuário masculino, entre tantas outras peças imortais, em 1926, a designer francesa lançou o famosíssimo little black dress (LBD), que ficaria para a eternidade como um símbolo de emancipação feminina. Até então associado a padres, viúvas, e criadas, o “vestidinho preto” tornou-se um básico do guarda-roupa, passível de ser usado de mil e uma formas. Na edição de outubro da Vogue, o LBD era referido como “The Ford”, numa comparação inteligente com o imensamente popular “Model T.”, o automóvel lançado pela Ford em 1908 que revolucionou a indústria automóvel e sobre o qual Henry Ford fez o curioso comentário: “Available in any colour... as long as it’s black” (disponível em qualquer cor... desde que seja preto).
E por falar em revolução. O sportswear, que só existia nas páginas das (poucas) revistas daquele início de século, saltou para a vida real. O ténis tornou-se o desporto de eleição das mulheres, que cada vez mais escolhiam o conforto em vez da estética, e que queriam exercitar-se, mexer-se, ser ativas. Uma das maiores estrelas dos courts, Suzanne Lenglen, era vestida por Jean Patou e o seu estilo dentro e fora das quatro linhas inspirava as massas. Tal como escrevia a revista Tatler, em 1928, “as roupas desportivas são desenvolvidas de forma a poderem ser usadas num almoço nos restaurantes da moda; na verdade, elas até costumam ser usadas na hora do cocktail.”
As mulheres não só escolhem as suas roupas, como dançam (muito), bebem (demasiado) fumam (mais ainda), e vão contra todas as regras que durante décadas as colocaram numa posição redutora, inferior. Pelos clubes e boîtes das grandes cidades, de Paris a Chicago, passando por Berlim, as noites misturam-se com os dias, ao som do jazz e de uma liberdade recém-conquistada, que se celebra a cada piscar de olho. A democratização da Moda, termo agora repetido até à exaustão, tornava-se uma realidade. E não mais parou. É um ato contínuo, em permanente evolução, que não tem fim. De certa forma, temos isso a agradecer a esses inquietantes, mas fabulosos, années folles. Qualquer semelhança com os ’20 que agora vivemos é – para já – pura coincidência.
Artigo originalmente publicado na edição de julho/agosto de 2020 da Vogue Portugal.
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