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Levantado do chão

18 Jun 2020
By Mónica Bozinoski

Tiros de guerra, crises humanitárias, desastres ambientais. Às vezes, o mundo não é um lugar bonito. Mas entre o fogo e a poeira, podemos contar com as duas mãos da indústria da Moda para, tijolo a tijolo, ajudar a reconstruí-lo.

Tiros de guerra, crises humanitárias, desastres ambientais. Às vezes, o mundo não é um lugar bonito. Mas entre o fogo e a poeira, podemos contar com as duas mãos da indústria da Moda para, tijolo a tijolo, ajudar a reconstruí-lo. 

From the ground up 

Manifestação durante a Fashion Revolution Week, Berlim, 2018. ©Getty Images
Manifestação durante a Fashion Revolution Week, Berlim, 2018. ©Getty Images

“Todos nós temos a expectativa que a Moda mude no decorrer de uma década. Frequentemente, aquilo que em tempos era excitante e fresco transforma-se em algo que, dez anos depois, é obsoleto e ligeiramente embaraçoso. Mas no curso da década que estamos prestes a deixar para trás, não foram só as silhuetas que mudaram; vamos dizer adeus a estes últimos dez anos com uma perceção da indústria completamente renovada. A sustentabilidade já não é uma questão à margem da Moda, mas antes um dos maiores desafios – e oportunidades – da atualidade.” As palavras foram escritas por Sophie Benson num artigo da revista AnOther, publicado em dezembro do ano passado, que arregalava os nossos olhos com a recordação de uma das maiores e mais devastadoras catástrofes diretamente relacionadas com a indústria da Moda – o colapso do complexo de fábricas têxteis Rana Plaza, em Daca, no Bangladesh, que matou mais de 1100 pessoas e deixou mais 2500 feridas. Dos destroços daquele que foi o quarto maior desastre industrial da História nasceu o Fashion Revolution, um movimento global composto por players e cidadãos do mundo com o objetivo de transformar a indústria da Moda num espaço mais clean, seguro, justo, transparente e responsável pelas suas ações. “Os problemas da indústria da Moda não são culpa de uma só pessoa, marca ou empresa. É por isso que nos focamos em usar as nossas vozes para arrancar o sistema pela raiz. Através de mudanças sistémicas e estruturais, a indústria da Moda consegue tirar milhares de pessoas de situações de pobreza e dar-lhes uma vida decente e digna. É capaz de preservar e restaurar o nosso planeta. É capaz de juntar as pessoas e ser uma fonte de felicidade, criatividade e expressão para indivíduos e comunidades”, pode ler-se no site do Fashion Revolution. “Nós acreditamos numa indústria da Moda capaz de conservar e restaurar o ambiente e valorizar as pessoas ao invés do crescimento e do lucro.” Apesar desta reconstrução ser um processo que está longe de terminado, o movimento do qual nasceu a Fashion Revolution Week (celebrado todos os anos no aniversário do colapso do Rana Plaza) e a campanha #WhoMadeMyClothes têm despertado a vontade de fazer melhor, não só em prol de uma indústria melhor, mas também de um mundo melhor. “Desde que o Fashion Revolution começou, pessoas de todo o mundo estão a usarasuavozeoseupoder para dizer às marcas que as coisas têm de mudar. E está a resultar. A indústria está a começar a mudar. São cada vez mais as marcas que estão a falar abertamente sobre os sítios onde as suas roupas são feitas. São cada vez mais os fabricantes que estão a tornar as suas fábricas mais seguras. São cada vez mais os produtores que estão a ser vistos e ouvidos.” Do Fashion Pact assinado por mais de uma centena de marcas em 2019 aos esforços coletivos de designers e consumidores para evitar o desperdício associado aos mais diversos processos da indústria, tomar decisões mais conscientes e responsáveis a nível ambiental e ético, e procurar soluções cada vez mais inovadoras, criativas e eficazes para tornar o ciclo verdadeiramente sustentável a todos os níveis, têm sido vários os passos que a Moda tem dado no sentido de um todo melhor – e quando o todo da Moda é melhor, o mundo todo é melhor também.

Quem vai à guerra 

Uma modelo veste um fato preto feito a partir de um casaco de veludo antigo, 1941. ©Getty Images
Uma modelo veste um fato preto feito a partir de um casaco de veludo antigo, 1941. ©Getty Images

Com o espoletar da Segunda Guerra Mundial, a indústria da Moda viu-se obrigada a repensar e reinventar todos os códigos que, até então, haviam traçado o caminho – uma necessidade que Audrey Withers, na época editora da edição britânica da Vogue, não demorou a reconhecer. Num clima onde as dificuldades de produzir uma revista de Moda cresciam ao minuto – dos bombardeamentos da Alemanha contra o Reino Unido, que obrigavam o seu staff a esconder-se numa cave sempre que o alarme soava e que, eventualmente, acabaram por destruir o edifício que servia de casa à sua equipa editorial, sem esquecer o racionamento  do papel, o racionamento da roupa e as opções de transporte limitadas – Withers percebeu que a publicação assumia um compromisso não só na vida das mulheres que a liam, mas também no resultado do conflito. Assim que os bombardeamentos cessaram, numa página acompanhada por fotografias dos destroços, Audrey Withers declarou: “Existe Vogue apesar de tudo”. O resultado? Páginas que encorajavam as mulheres, frequentemente referidas como “soldados sem armas”, a fazerem a sua parte para apoiar a causa, louvores às mulheres que estavam na linha da frente, conselhos sobre como tirar o melhor proveito  da roupa disponível e seguir a filosofia do make do and mend, transformando estilos antigos em peças de vestuário novas, e uma série de depoimentos sobre a guerra, escritos e fotografados pela audaz correspondente Lee Miller. Um mês depois do conflito armado ter chegado ao fim, Audrey Withers dedicou a edição de outubro de 1945 à ideia de “paz e reconstrução”, num poderoso testemunho de que a Moda, aliada a uma consciência política e feminista, também seria um pilar do novo mundo.

Uma modelo com o New Look de Christian Dior, 1947. ©Getty Images
Uma modelo com o New Look de Christian Dior, 1947. ©Getty Images

Dúvidas restassem de que a Moda poderia ser uma força pela mudança, Christian Dior esclareceu-as todas no dia 12 de fevereiro de 1947, a data em que o couturier apresentou ao mundo o seu New Look. Um estilo novo que, como escreveu James McAuley no jornal The Washington Post, não assentava só a uma nova mulher, mas também a uma nova França. “Os designs que ele [Christian Dior] apresentou nesse desfile eram significantes em e por si mesmos: depois de anos de guerra e ocupação – quando, para dizer o mínimo, a utilidade tinha suplantado a beleza como a métrica que importava – ali estavam, enfim, designs extravagantes que celebravam a decadência e a sensualidade, e que lembravam os dias de glória da Belle Époque e dos Ballet Russes”, atestou o jornalista. “Contudo, e independentemente das roupas, aquilo que aconteceu nessa altura foi um momento crucial de imaginação e reconstrução da cultura francesa depois da completa devastação da Segunda Guerra Mundial. Christian Dior foi um designer de Moda, mas também foi um dos principais arquitetos da ascensão da França no pós-guerra, que guiou o país na sua transição da miséria à majestosidade.” Com o corte e costura numa mão e com o sonho, a fantasia e a sedução na outra, Christian Dior ajudou a levantar Paris das cinzas deixadas por um dos maiores conflitos da História – e deixou para trás um poderoso testemunho do poder que a Moda pode ter na reconstrução de um mundo mais belo, mais unido, mais em paz.

Serviço comunitário 

©Louis Vuitton
©Louis Vuitton

Falar sobre tudo aquilo que a indústria da Moda tem feito em prol do bem comum ao longo da História também passa por abordar o momento em que nos encontramos – um momento em que, talvez mais do que nunca, a indústria da Moda se uniu para combater um inimigo que não passa ao lado de ninguém. Da queda sentida pelo setor de luxo à sobrevivência duvidosa de marcas independentes, das lojas fechadas aos desfiles cancelados, o futuro da Moda é verdadeiramente incerto. Mas uma coisa é certa – este momento ficará para a História como o momento em que a indústria não baixou os braços e usou todos os seus recursos para reconstruir um mundo que, a cada dia que passa, rui um pouco mais. Das doações de Donatella Versace e Miuccia Prada à campanha começada por Chiara Ferragni, que não só conseguiu reforçar unidades de cuidados intensivos em Milão como doar 250 mil euros a vários hospitais italianos, o mundo da Moda não ficou parado face à pandemia do novo coronavírus. Em vez disso, agradeceu àqueles que estão na linha da frente com iniciativas que provam que a bondade existe, mesmo nos tempos mais obscuros – mais do que isso, reinventou-se para agradecer àqueles que estão na linha da frente. Enquanto o grupo LVMH disponibilizou as suas fábricas de cosméticos para a produção de desinfetantes à base de álcool para auxiliar as autoridades de saúde francesas, a Louis Vuitton começou a produzir batas no seu atelier de pronto-a-vestir, em Paris. Ao mesmo tempo, a britânica Burberry transformava a sua fábrica de gabardines num local para produzir equipamentos de proteção para os pacientes nos hospitais do Reino Unido, e a francesa Chanel começava a produzir máscaras cirúrgicas para os hospitais do seu país. Num momento em que somos um por todos e todos por  um, num momento em que estamos mais voltados que nunca para as nossas comunidades, para as nossas equipas e para os nossos parceiros, num momento em que as necessidades do outro são ouvidas e correspondidas com uma avalanche de empatia e solidariedade, torna-se quase impossível monitorizar todas as iniciativas que a indústria da Moda tem anunciado nos últimos meses. De marcas independentes que deram uma nova vida aos seus tecidos para criar máscaras reutilizáveis aos esforços de nomes como H&M, Tommy Hilfiger, Bottega Veneta, Loewe, Michael Kors, Gucci, Giorgio Armani, Bulgari, Vestiaire Collective, Net-a-Porter e tantos outros, sem esquecer o lançamento de A Common Thread, uma iniciativa conjunta do CFDA e da Vogue para angariar fundos e apontar um holofote para a comunidade de Moda norte-americana, impactada pela crise da COVID-19, o momento que atualmente passamos veio reforçar (ainda que com um twist) aquilo o que Audrey Withers declarou nos anos 40. Apesar de tudo, a Moda continua. Apesar de tudo, nós continuamos. Aqui, unidos, prontos para ajudar a construir. E a reconstruir também.

F de Filantropia 

Uma das áreas ardidas durante os incêndios na floresta da Amazónia, no Brasil, agosto de 2019. ©Getty Images
Uma das áreas ardidas durante os incêndios na floresta da Amazónia, no Brasil, agosto de 2019. ©Getty Images

Há quem diga que as crises despertam o melhor que há na humanidade, e a indústria da Moda parece confirmar essa mesma teoria. Nos últimos anos, diversas marcas, organizações e conglomerados têm aliado o seu nome a uma série de associações e causas humanitárias, desde o combate à SIDA ou ao cancro da mama até à garantia dos direitos das mulheres, crianças e comunidades marginalizadas em todo o mundo. E, se a filantropia já é evidente em situações ditas normais, torna-se ainda mais evidente quando a sociedade e o planeta precisam de uma mão amiga, seja para reestruturar um marco da sua história ou preservar a natureza que lhe enche os pulmões, todos os dias. Quando o mundo parou em frente aos seus telemóveis, computadores e televisores para chorar o devastador incêndio na Catedral de Notre-Dame, que consumiu uma parte considerável de um dos símbolos mais proeminentes de Paris e do mundo no dia 15 de abril de 2019, a indústria da Moda não tardou a munir-se com todas as ajudas possíveis para reparar os danos. Um dos primeiros socorros veio da família Pinault, detentora do conglomerado Kering – que alberga gigantes como Gucci, Saint Laurent, Bottega Veneta, Balenciaga e Alexander McQueen –, que doou 100 milhões de euros em prol dos esforços de reconstrução da catedral. “A tragédia de Notre-Dame é um golpe para o povo francês, bem como para todos aqueles com valores espirituais. Face a esta tragédia, todos nós desejamos ressuscitar esta joia da nossa herança o mais cedo possível”, declarou, na altura, François-Henri Pinault, CEO do grupo Kering. “A família Arnault e o grupo LVMH, em solidariedade com esta tragédia nacional, estão empenhados em ajudar na reconstrução desta catedral extraordinária, símbolo da França, da sua herança e da sua união”, comunicou o conglomerado liderado por Bernard Arnault, que contribuiu com 200 milhões de euros. “Nesse meio tempo, o grupo LVMH deixa a sua equipa – incluindo criativos, arquitetos e financeiros – à disposição do Estado e das autoridades relevantes, de modo a oferecer uma ajuda no longo trabalho  de reconstrução e angariação de fundos.” A ajuda também não ficou esquecida quando o Brasil e a Austrália foram arrasados com incêndios de proporções devastadoras. A par com Stella McCartney, o grupo LVMH, que contribuiu com uma doação para ajudar no combate aos incêndios da Amazónia, marcas como H&M e a empresa VF Corporation, detentora de nomes como The North Face, Timberland e Vans, anunciaram as suas próprias medidas para minimizar o seu impacto na destruição dos “pulmões da Terra.” E durante aquele que foi o pior período de incêndios florestais na Austrália, marcas como Christopher Esber, Zimmermann, She Made Me, Réalisation Par e Alex Perry uniram forças para apoiar bombeiros, comunidades e organizações focadas na proteção da vida animal. Porque reconstruir o mundo também é isso mesmo: é mostrar empatia, união e solidariedade, é ajudar as pessoas a ajudar, é ter esperança num amanhã onde, todos juntos, podemos fazer a diferença.

Mónica Bozinoski By Mónica Bozinoski

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