A Vogue conversou com Flaviana Matata, Nicole Crentsil, Aurora James e Otegha Uwagba, quatro mulheres que, através da filantropia, da educação, da cultura, da moda e do conhecimento, estão a espalhar uma nova imagem de África pelo mundo.
Mudar o mundo pode significar várias coisas para várias pessoas. Para Flaviana Matata, mudar o mundo é olhar para uma comunidade e oferecer-lhe a solução que ela precisa para crescer. Para Nicole Crentsil, mudar o mundo é criar um espaço onde mulheres negras, de todas as idades, orientações sexuais e crenças religiosas, se possam juntar para celebrar quem são. Para Aurora James, mudar o mundo é pôr o mundo nos pés de quem o quiser mudar com ela. Para Otegha Uwagba, mudar o mundo é partilhar experiências, ideias e conhecimentos. A Vogue conversou com estas quatro mulheres sobre a nova imagem de África que estão a construir, quer seja através da filantropia, da educação, da cultura, da Moda e do conhecimento - e sobre o modo com isso está, consequentemente, a mudar o mundo.
Flaviana Matata
Flaviana Matata ©D.R.
Flaviana Matata ©D.R.
Fundou a Flaviana Matata Foundation em 2011. O que a motivou a fazê-lo? Aquilo que me inspirou foi perceber que existia uma necessidade. Começou comigo a ajudar uma pessoa, e agora são mais de 4500. Para mim, não havia opção - fui educada a perceber que existia uma necessidade na minha comunidade, e consegui ajudar a encontrar uma solução. É impossível comparar o sentimento de comunidade que existe na Tanzânia com qualquer outro, é algo que nunca experienciei em mais nenhum ambiente. Graças a esse sentimento [de comunidade], eu sabia que a minha plataforma iria sempre passar por investir na comunidade que me viu crescer. Para mim, não havia outra opção que não esta.
A sua fundação trabalha no sentido de garantir que jovens raparigas e mulheres têm acesso aos recursos e oportunidades que necessitam para concluir os seus estudos. O que é que a educação significa para si?Para mim, a educação representa oportunidade. Se queres impactar uma comunidade, educa uma rapariga. Se queres mudar uma nação, educa uma rapariga. E se queres transformar uma geração, educa uma rapariga. É uma oportunidade que vai para além da rapariga que a recebe, porque afeta a economia, a comunidade, a nação e a geração em que essa rapariga se insere. A educação mudou a minha vida. Foi um dos maiores presentes que recebi. Hoje, o meu dever é dar esse presente ao maior número de raparigas possível.
Para além de oferecer apoio a raparigas e jovens mulheres a nível de propinas, material escolar e uniformes, a FMF também presta apoio com produtos de higiene femininos. Sente que a menstruação ainda é um assunto tabu no mundo, e particularmente nos países africanos?É um problema que ainda afeta muitos países subdesenvolvidos devido à falta de apoio, recursos e informação. Existe tanto estigma e vergonha associado a algo que é um processo natural. Oferecer um espaço seguro e recursos que ensinam às raparigas a verdade sobre a menstruação e o corpo feminino pode salvar a vida e redefinir o futuro de uma rapariga. Apesar de não ser o único motivo, a menstruação é algo que leva a que milhares de raparigas faltem à escola e não recebam uma educação de qualidade por causa disso. Para além de oferecer estes recursos, a Fundação também ajuda a construir latrinas nas escolas.
Qual foi o momento mais recompensador do seu trabalho com a Fundação?Para mim, um dos momentos mais recompensadores foi ver as primeiras quinze raparigas completarem o ensino secundário e começarem o seu primeiro ano de Universidade. Saber que estamos a ter sucesso na nossa missão de oferecer oportunidades através da educação é algo que faz a minha alma sorrir, e sinto-me honrada por estar nesta posição.
Enquanto modelo, sente que a indústria da Moda está cada vez mais inclusiva e representativa, ou ainda existe discriminação para com mulheres de cor?Acredito que existem pessoas que acreditam e trabalham no sentido de incorporar a beleza tão diversa das mulheres de cor. No entanto, enquanto indústria, penso que ainda temos muito para progredir. Até tudo isto ser a norma, há trabalho para fazer.
Em 2018, escreveu um artigo para a Teen Vogue onde abordou o tema da discriminação de género na indústria da Moda. Qual seria o seu conselho para mulheres que lutam contra este tipo de discriminação e julgamento? Gostaria de lhes dizer aquilo que digo a mim mesma. O julgamento e discriminação que estas pessoas têm para contigo são um reflexo da imensa insegurança delas próprias. Elas sentem-se intimidadas pela tua luz, mas faz tudo para continuares a brilhar, sempre.
Nicole Crentsil
Nicole Crentsil ©Fotografia de Krystal Neuvill
Nicole Crentsil ©Fotografia de Krystal Neuvill
Em colaboração com a Paula Akpan, fundou o Black Girl Fest, o primeiro festival no Reino Unido criado com a intenção de celebrar e empoderar jovens e mulheres negras. Como é que este conceito surgiu? A ideia surgiu depois de uma chamada telefónica de três horas entre mim e a Paula. Eu tinha estado num evento com muitas outras mulheres negras e sentia-me verdadeiramente inspirada pela energia daquele espaço. Quando expliquei este sentimento à Paula, a ideia do festival nasceu. Ainda não tínhamos visto nada desta dimensão nos espaços por onde navegávamos. Já tinham existido alguns eventos incríveis, com uma escala mais pequena, mas nada que os unisse a todos num só. Aquilo que queríamos fazer era criar um espaço onde pudéssemos juntar a nossa família e os nossos amigos todos debaixo de um só teto. Criar um espaço intergeracional e acessível é algo muito importante para nós. A força por detrás do Black Girl Fest foi a vontade de criar algo que gostaríamos de ter tido quando éramos mais novas.
Desde a criação do Black Girl Fest, qual foi o momento ou experiência que a marcou mais? Trabalhar com a Paula, que é a minha melhor amiga. Tudo o que fazemos é uma aprendizagem nova sobre quem somos, tanto individualmente como em equipa. A Paula traz tanto conhecimento, experiência e paixão ao festival, e tudo isso ajuda a que este processo seja fluído e simples. Também significa que podemos trabalhar rapidamente e de forma colaborativa em diversos projetos, como o nosso recente takeover da revista TimeOut London. Conseguimos não só reunir cuidadosamente fotógrafos, ilustradores e autores para essa edição, mas fomos também capazes de partilhar algumas histórias incríveis de algumas pessoas igualmente incríveis da nossa comunidade. Conseguimos reunir conversas inspiradoras entre mulheres pioneiras de diferentes gerações, um guia para o cenário queer em Londres, e diversas escolhas do Black Girl Fest a nível de comida, vida noturna e teatro. É um dos momentos de que mais me orgulho.
Sente que as jovens raparigas e mulheres negras, bem como a cultura negra como um todo, ainda são incompreendidas pela sociedade? Penso que, hoje, as jovens raprigas e mulheres negras existem num espaço onde são hiper-visíveis e simultaneamente invisíveis. Posto isto, acho que não é só um caso de serem incompreendidas, mas também de serem erradamente representadas e, às vezes, de não serem representadas de todo. O amplo contributo das mulheres negras para a cultura popular fascina-me profundamente porque, indiscutivelmente, é algo que não é identificado - quando, na realidade, as mulheres negras são the source to the sauce [são as responsáveis por uma parte significativa da cultura popular]! As mulheres negras não são um monólito - existem tantas dimensões e camadas, e é engraçado quando as pessoas pensam que só existe um tipo de mulher negra. Para mim, essa é uma das ideias mais erradas da sociedade.
Já pensaram em expandir o Black Girl Fest para outros países? Adorávamos levar o festival para outros países e contactar com mais mulheres negras, numa escala global. Existem tantas mulheres incríveis com histórias e experiências poderosas!
Numa entrevista de 2018, defendeu que "a identidade das mulheres negras é frequentemente ignorada e escrutinada pela sociedade." Como é que isso pode mudar? Não é uma resposta simples, mas penso que aquilo que poderia ajudar seria uma mudança significativa na sociedade. As mulheres negras transgénero são, literalmente, excluídas de muitas conversas e, ainda assim, são alvo de escrutínio. Uma mudança intersecional que sente todas as mulheres na mesma mesa é a mudança que eu gostaria de ver.
Pensando no poder da educação e da cultura, qual seria o seu conselho para ajudar todas as mulheres negras a sentirem-se mais empoderadas? A tua voz é a tua arma mais poderosa! Encontra-a, usa-a e, coletivamente, vais ver que ela é capaz de mudar o mundo. Reforça a tua voz através da educação, desenvolve a tua voz ao ouvir a de outras pessoas, e utiliza a tua voz no sentido de transformares tudo isto numa ação.
Aurora James
Aurora James ©Brother Vellies
Aurora James ©Brother Vellies
Em 2015, foi reconhecida com o CFDA/Vogue Fashion Fund. O que mudou desde então para a Brother Vellies? Existiram imensas mudanças para a marca desde o Fashion Fund mas, ao mesmo tempo, houve muita coisa que se manteve. Tem sido realmente fantástico manter a minha visão e ver a forma como ela tem vindo a crescer e a expandir-se ao longo do tempo. Temos uma nova loja em Brooklyn e estamos a trabalhar com artesãos em muitos outros países, e isso tem sido incrivelmente recompensador. Acabei de regressar de uma viagem ao México, onde estamos a trabalhar nas nossas Doodle Boots e Huaraches.
A sua linha de calçado é inspirada no design tradicional africano. Sente que espalhar a cultura africana através da Moda é uma forma de educar as pessoas sobre ela? Sim, sem dúvida. Penso que a oportunidade de aprendermos mais sobre outras pessoas é algo que nos torna mais atenciosos para com os outros e para com o planeta em geral. Há muito tempo que as pessoas olham para a mesma imagem de África, e estou verdadeiramente determinada em pintar um cenário diferente, que seja um pouco mais fiel à África de hoje.
Os modelos da Brother Vellies são feitos à mão em países como África do Sul, Etiópia, Quénia e Marrocos, ajudando a criar e manter os trabalhos artesanais em África. O que a inspirou a seguir este rumo? A Moda tem uma longa história de ir beber inspiração a determinadas culturas, mas não contacta com esses grupos marginalizados no processo. Penso que as melhores pessoas para fazer determinadas coisas são aquelas que, efetivamente, criaram essas coisas. Faz sentido que uma Babouche seja feita no Norte de África, e que uma Huarache seja feita no México. Aquilo que quis fazer foi levar um pouco da Moda às suas origens e empoderar as pessoas neste processo de crescimento.
Qual tem sido o impacto disso? Educar os consumidores sobre estas culturas e sobre as práticas de negócio sustentáveis tem sido um ponto alto para mim. Existem pessoas que têm vindo a investir em peças de criador durante anos, mas que nunca pararam para pensar no modo com essas peças foram feitas ou nas pessoas que as fizeram. Penso que as mulheres devem começar a perceber o seu poder de compra e devem exigir mais das marcas onde investem o seu dinheiro.
Sente que a Brother Vellies tem ajudado a moldar uma nova imagem de África, e da própria cultura africana? Espero que sim! Penso que tem levado as pessoas a pensarem de forma diferente sobre aquilo que os artesãos conseguem fazer e sobre aquilo que define um produto de luxo. Penso que África é um lugar muito bonito e mágico e acho que os nossos sapatos ajudam a transmitir essa mensagem às pessoas. Por outro lado, tenho esperança que o trabalho que desenvolvemos ajude os artesãos a perceber que o talento deles é extremamente valioso e merecedor de estar num palco mais global, ao lado de outras marcas. Espero que essa arte seja transmitida a gerações mais novas.
O que é que a herança significa para si nos dias de hoje? A palavra herança é muito poderosa. Especialmente quando a relacionamos com o modo como pertence à América neste momento. Penso muitas vezes sobre isso. Temos o dever de apoiar e proteger as tradições e os modos de vida que existem - mesmo que sejam diferentes dos nossos. A herança de alguém é algo muito pessoal e muito real para essa pessoa, independentemente do modo como é vista ou interpretada pelo resto do mundo. Existe um provérbio africano sobre o qual reflito várias vezes: "Enquanto o Leão tiver um historiador, o Caçador será sempre o Herói."
Otegha Uwagba
Otegha Uwagba ©D.R.
Otegha Uwagba ©D.R.
Lançou a sua empresa, Women Who, em 2016. O que a motivou a dar este salto e criar o seu próprio projeto? Iniciei este projeto porque queria criar uma rede de apoio para mulheres que, individualmente, pensam nas mesmas coisas quando acordam de manhã - e que essa rede ajudasse essas mulheres a conhecerem-se e a partilharem o seu conhecimento e as suas ideias. O Women Who surgiu numa altura da minha vida em que me estava a sentir perdida a nível profissional, e sentia que precisava de criar estas ligações com outras mulheres. Senti que esta experiência de isolamento não podia ser a única e decidi fazer algo sobre isso.
O projeto Women Who foi pensado como uma comunidade para mulheres criativas. Sentes que a Internet ajudou a moldar um espaço melhor para as mentes criativas partilharem as suas ideias? A Internet é uma benção e uma maldição para os criativos. Por um lado, facilita a promoção do nosso trabalho, ajuda-nos a criar novas ligações e ter acesso a informação verdadeiramente vital, e isso é um luxo. Por outro, a Internet mudou o contexto em que os criativos existem, e é muito importante que os criativos que operam na era digital percebam este novo contexto. Algo que refiro no meu livro Little Black Book é o facto das redes sociais e da Internet terem vindo simplificar a partilha do nosso trabalho num espaço público, mas também terem vindo contribuir para que ele se perdesse de nós - e para que outras pessoas se servissem dele e dos frutos dele. Enquanto criativo, as tuas ideias e aquilo que tu produzes são as tuas melhores qualidades, por isso é muito importante que tomes as medidas necessárias para protegê-las.
Sente que a sociedade ainda tem dificuldade em aceitar que as mulheres negras podem ser empreendedoras e criar projetos de sucesso? Infelizmente, sim - para as mulheres negras, é inacreditavelmente difícil conseguir investimentos para as suas empresas e, em grande parte, essa dificuldade prende-se com o preconceito sistemático.
Em 2017, escreveu Little Black Book, um guia profissional para todas as mulheres. Enquanto mulher trabalhadora e empreendedora, qual seria o ensinamento mais importante que transmitiria a uma mulher que ainda não encontrou o seu lugar a nível profissional? Conversa com o maior número de pessoas possível. Entra em contacto com pessoas que trablham em áreas ou indústrias pelas quais te sentes interessada, e faz-lhes perguntas: por exemplo, como é um dia normal no trabalho delas? O que é que fizeram para chegar até ali? Penso que este processo de reunir informação é uma parte verdadeiramente crucial quando estás a construir a carreira que queres ter.
Aos 27 anos, foi incluida na lista 30 Under 30 da Forbes. O que é que o sucesso pessoal significa para si? Para mim, o sucesso está a tornar-se cada vez menos sobre perceções externas ou "listas" com prestígio e mais sobre o nível de autonomia do trabalho que faço, do modo como o faço e das pessoas com quem o faço; e também de sentir que o faço cada vez melhor. Enquanto sentir isso, estou feliz.