Outubro 2024
A vanguarda na Moda não se reduz à sua forma. Tem sido, também, sempre aliada à sua função.
Outrora, os acessórios tinham compartimentos secretos porque os tempos e as normas sociais assim o exigiam, nem que fosse pela sofisticada discrição da aristocracia. O mistério que se impõe é: para onde fugiu esse truque de magia nas bolsas e jóias dos dias de hoje?
O secretismo exigido de objetos pessoais valiosos - seja em termos literais ou sentimentais - fez com que um rol de peças de mobiliário escondessem compartimentos apenas acessíveis por quem os conhecia. Podiam estar escondidos em qualquer parte de uma caixa ou secretária, sob pisos falsos, atrás de paredes e painéis falsos, colapsáveis no topo de gavetas, atrás de espelho ou mesmo à vista de todos, fundindo-se com a estrutura circundante. Mesmo o descobrir a localização de um possível compartimento dissimulado é apenas metade da tarefa; é necessário obter acesso. Paredes e pavimentos com molas, botões ocultos, pavimentos e painéis de parede deslizantes, cabeças de parafusos falsas são apenas alguns dos métodos utilizados para revelar estes compartimentos, cuja mestria se tornou, com o tempo, até um ex-libris na arte do design. Estas zonas dissimuladas com acesso privilegiado, de certa forma, criavam um certo sentimento especial para quem os conhecia, como se aquele recanto fosse só seu. Talvez por isso, além da necessidade social, tenha sido natural que esta funcionalidade se tivesse tornado portátil.
Um dos mais populares acessórios a responder a tal ideia foi a joalharia, que, com os seus pendentes, permitiam esconder e levar consigo itens como chaves, fotografias, bilhetinhos e, enfim, até substâncias proibidas. As joias com compartimentos secretos sempre exerceram um certo fascínio nas pessoas. Explora a nossa curiosidade inata e o amor pelos mistérios. Mas não se trata apenas do elemento surpresa; há mais além do que aquilo que se vê.
A história dos compartimentos ocultos nas joias remonta a séculos, com histórias intrigantes associadas à sua utilização. Têm sido um símbolo de secretismo, proteção e até de rebelião, mas também de amor proibido. Por exemplo, fala-se da história de uma jovem, Elizabeth, durante o Renascimento, que estava profundamente apaixonada por um pretendente proibido. Para expressar o seu carinho, Elizabeth encomendou um colar com um compartimento secreto, onde colocou uma madeixa de cabelo do seu amante, uma lembrança tangível do seu amor condenado pela sociedade. Assim, sempre que usava o colar, era como se o tivesse junto ao seu coração, escondido dos olhares indiscretos.
A presença de um compartimento secreto acrescenta uma camada adicional de significado e profundidade emocional às joias, nomeadamente àquelas que são passadas de geração em geração, ligando o passado ao presente e futuro, contando histórias de outrora sem proferir uma palavra.
Mas a joalharia com "secretismo" serviu também para propósitos revolucionários: têm sido uma ferramenta para espiões ao longo da história, ao proporcionar uma forma oculta de comunicação em tempos de turbulência política. As peças tornaram-se símbolos de resistência, usadas com orgulho por quem luta por uma causa. Como aconteceu com Marie, conta-se, uma espia durante a Segunda Guerra Mundial que usava uma pulseira com um compartimento secreto que continha microfilmes com informações vitais sobre os movimentos das tropas inimigas. Esta joia discreta tornou-se o seu bem mais valioso, permitindo-lhe reunir informações e ajudar no esforço de guerra.
Nos dias que correm, o seu uso parece datado - afinal, encontrámos outras formas encriptadas de "esconder" atos de amor e/ou rebelião, mas talvez seja a nossa a sociedade que continua a necessitar deste tipo de mistério. Numa era em que a partilha desenfreada parece ser a palavra de ordem - se não há um share, não aconteceu? -, sair das redes e do digital para criar um refúgio secreto cria não só o mistério que parece ter-se perdido entre a disseminação do social media, como também uma privacidade que parece há muito perdida. Numa sociedade que exige frequentemente transparência e abertura, as joias com compartimentos secretos oferecem um santuário para pensamentos e emoções pessoais.
Embora as joias sejam as peças que mais facilmente se associam a compartimentos escondidos, pela sua facilidade de design e materiais em inclui-los, muitas outras peças de moda, nomeadamente acessórios, usufruíram desta funcionalidade. Mesmo que não fosse totalmente oculta seria, pelo menos, de acesso privilegiado. Em setembro passado, numa oportunidade especial de visitar os Arquivos da marca Dior, pude testemunhar uma carteira dos anos 40/50 da maison que incluía, no fundo, uma "gaveta" passível de se trancar com um cadeado. A "gaveta" permitia fechar a sete chaves conteúdo sensível como documentos - algo deveras útil numa era que ressacava a II Guerra Mundial -, mas também valores de beleza como batons, para o qual o compartimento tinha uma zona específica.
É verdade que hoje em dia as carteiras e bolsas se multiplicaram em compartimentos para albergar cosmética e documentos e telemóvel e carteira, para facilitar o acesso a cada um destes must-haves do quotidiano, mas nenhum deles é secreto. Não despertam fascínio. Não encorajam a privacidade que é, talvez, a comodidade mais preciosa dos tempos que correm. Talvez esteja na altura de recuperar fundos falsos em sacos ou aberturas em solas de sapatos, nem que seja para guardar aquele anel que herdou da sua avó ou o bilhetinho de bons dias que a sua cara-metade lhe deixou.
*Artigo integrado no âmbito da edição The Mistery Issue, disponível na nossa e-shop.